Willy Gianinazzi
Um jovem André Gorz. |
Tradução / Ao longo de sua carreira como escritor, André Gorz esteve envolvido na reflexão crítica sobre a natureza do trabalho e a economia capitalista, o que só cessou com sua morte aos oitenta e quatro anos em 2007. Ele enfatizou as maneiras pelas quais o trabalho estava sendo transformado pelo neoliberalismo com o fim do emprego estável e os estratagemas pós-industriais do capitalismo financeirizado.
Seu inovadortrabalho Adeus ao Proletariado, que argumenta que o trabalho estava se tornando menos significativo como um foco de mobilização política nas sociedades capitalistas mais avançadas, foi mal recebido por escritores da esquerda no momento de sua publicação em 1980. Porém, mais de quatro décadas depois, sua relevância e atualidade se mostram impactantes.
Esse pode parecer um argumento estranho a se propôr, já que o atual clima econômico resultou em uma pronunciada queda no desemprego, com mercados de ações demonstrando uma certa resiliência na Europa assim como nos Estados Unidos. Mas devemos considerar o impacto mais amplo da pandemia de COVID-19.
Muitos jovens viveram o lockdown como um período sem trabalho, o que os fez refletir sobre o significado de suas vidas e a falta dele nos trabalhos que tiveram que fazer até então. “Trabalhos de merda”, como David Graeber os chamou, passaram a ser questionados. O “Êxodo” previsto por Gorz — mais recentemente chamado de “Grande Renúncia” por Anthony Klotz — começou a se tornar uma realidade.
Nos Estados Unidos, um total de quarenta e sete milhões de trabalhadores se demitiram de seus trabalhos em 2021. A rotatividade é comum em tempos de recuperação econômica. A diferença agora é que as pessoas não estão apenas usando uma mudança de trabalho como forma de melhorar suas condições de pagamento e trabalho. Para muitos, é uma oportunidade de repensar seus objetivos de vida.
A opacidade da produção
Em Adeus ao proletariado, Gorz questionou a visão Marxista tradicional de que o desenvolvimento capitalista estava criando as precondições materiais do socialismo, com uma classe trabalhadora que poderia tomar os meios de produção existentes dos capitalistas:
As forças produtivas invocadas pelo desenvolvimento capitalista estão tão profundamente corrompidas por suas origens que elas são incapazes de se acomodar a uma racionalidade socialista. Em caso de estabelecimento de uma sociedade socialista, elas terão que ser completamente redesenhadas.
Para Gorz, tinha sido uma camada específica de trabalhadores qualificados que foi capaz de pensar em assumir controle sobre a fábrica:
A ideia de uma classe-sujeito de produtores unidos capazes de tomar o poder foi específica a esses trabalhadores qualificados orgulhosos de seu ofício. Para eles, o poder não era algo abstrato, mas uma questão de experiência cotidiana: no chão de fábrica, o poder era deles, eles mandavam sobre a produção. Suas habilidades e know-how prático insubstituíveis os colocaram no topo de uma hierarquia fabril que era o inverso da hierarquia social. O chefe, o engenheiro-chefe e os inspetores dependiam do know-how do trabalhador qualificado, que era complementar e por vezes superior ao deles. Eles tinham que confiar na cooperação e nos conselhos dos trabalhadores, e ganhar seu respeito e lealdade, ao passo em que os trabalhadores qualificados por sua vez não precisavam nem do chefe nem dos “oficiais de produção” para produzir.
Porém, o Taylorismo e a automação haviam gradualmente reduzido o tamanho e a influência dessa camada de trabalhadores. Gorz notou o advento do que agora chamamos de neoliberalismo, que liquidou a grande fábrica de estilo Fordista e quebrou as pernas dos sindicatos, enfraquecendo a classe trabalhadora tanto em termos políticos quanto sociológicos. Os anos que se seguiram viram ondas implacáveis de automação, terceirização, deslocamento da produção para outros países, e privatização, combinadas com a retração do estado de bem-estar social, o crescimento dos serviços, e a financeirização da economia.
Isso mostrou aos trabalhadores que eles não tinham controle sobre a produção ou os objetivos que o capitalismo estava perseguindo numa escala global. A ideia de controle dos trabalhadores e autogestão tinha sido um objetivo caro ao movimento trabalhista Ocidental durante os anos 1960 e 70, no auge de seu poder. Ela era agora não mais que uma quimera, segundo Gorz:
Não é mais possível considerar a fábrica como uma unidade econômica. Ela se tornou uma unidade produtiva integrada com outras unidades produtivas por vezes muito distantes, dependente de uma administração centralizada coordenando dúzias de unidades produtivas por seus insumos, seu mercado, suas linhas de produto etc. Em outras palavras, os locais de produção não são mais os locais de tomada de decisão e poder econômico. O processo social da produção se tornou opaco, e essa opacidade veio a afetaro processo de trabalho em cada unidade técnica. A destinação final e até a própria natureza do que é produzido permanece desconhecida. Fora da administração, ninguém sabe exatamente para que servem as coisas sendo produzidas — e de qualquer forma ninguém dá a mínima.
Heteronomia
Gorz descreveu a alienação do trabalho contemporâneo, produzido por uma megamáquina econômica incontrolável, como uma “heteronomia” funcional do trabalhador, que agora pertencia à “não-classe de proletários pós-industriais.” O trabalho em si não podia mais ser o foco de sua identidade social:
O neo-proletariado é geralmente sobrequalificado para os trabalhos que encontra. Ele é geralmente condenado à sub-utilização de suas capacidades quando está em trabalho, e ao próprio desemprego no longo prazo. Qualquer desemprego parece acidental e provisório, todo tipo de trabalho puramente contingente. Ele não consegue sentir nenhum envolvimento com “sua” produção ou identificação com “seu” trabalho. O trabalho não significa mais uma atividade ou mesmo uma ocupação principal; ele é meramente um intervalo em branco nas margens da vida, para ser suportado a fim de ganhar um pouco de dinheiro.
Por três décadas depois que a era neoliberal começou, essa nova configuração social gerou alto desemprego estrutural. O assim chamado “precariado” se tornou a face típica do emprego, e as expectativas de trabalho desabaram.
Ao mesmo tempo, o que Luc Boltanski e Eve Chiapello chamaram de “novo espírito do capitalismo” foi posto em vigor, notavelmente com a introdução de uma nova e mais individualizada abordagem às relações de trabalho, supostamente orientada a um maior envolvimento e autonomia para trabalhadores. Sabemos agora que essas práticas administrativas, longe de liberarem os trabalhadores, os escravizaram ainda mais.
Eles se vêem expostos ao estresse da avaliação individualizada de desempenho e do burnout. “Autonomia” pode envolver o auto-emprego fajuto sem direitos ou benefícios enquanto se permanece sujeito à tirania dos prazos da empresa, ou mesmo à vigilância algorítmica administrativa.
Gorz antecipou essas tendências em Adeus ao proletariado:
Para os trabalhadores, não é mais uma questão de libertarem-se no trabalho, colocando-se no controle do trabalho, ou tomando o poder dentro da estrutura do seu trabalho. A questão agora é libertar-se do trabalho ao rejeitar sua natureza, conteúdo, necessidade e modalidades. Mas rejeitar o trabalho é também rejeitar a estratégia e as formas organizacionais tradicionais do movimento proletário. Não é mais uma questão de ganhar poder como um trabalhador, mas de ganhar o poder de não mais atuar como um trabalhador.
Capitalismo cognitivo
Gorz argumentou que o intelecto geral, como Marx o chamou, estava se tornando a principal força produtiva do capitalismo contemporâneo — ele usou o termo “capitalismo cognitivo” para analisar esse desenvolvimento. Como ele escreveu em 1998:
O capital humano — ou seja, inventividade, criatividade, a capacidade de aprender — é hoje mais importante do que o capital material no processo de valorização, porque de agora em diante o trabalho imediato, como Marx o chamou, representa apenas uma pequena fração do tempo usado pelo poder de trabalho para produzir e se reproduzir.
Essa forma subordinada e altamente supervisionada de “autonomia” tem um lado extraordinário — e potencialmente revolucionário —, porque estimula uma contratendência ao encorajar a aspiração de indivíduos à autonomia em relação à própria economia. Gorz não estava mais apostando na emancipação através do trabalho, e sim na emancipação em relação ao próprio trabalho. “A questão do significado da vida, de fins últimos, da racionalidade é posta de uma nova maneira,” asseverou ele em 1985.
Como um existencialista inverterado, Gorz estava convencido que essa questão não poderia encontrar uma resposta fora do sujeito individual, que sempre manteve uma capacidade inata para rebelião contra a ordem social, apesar da socialização funcional pela qual ele ou ela passou através do trabalho. Ao contrário dos argumentos do amigo de Gorz, o filósofo alemão Herbert Marcuse, a tarefa de reduzir indivíduos ao status de trabalhadores ou consumidores dóceis nunca estava completa.
Em um sistema no qual, como Gorz coloca, “nós não produzimos nada do que consumimos, e não consumimos nada do que produzimos,” é tarefa de cada um e todos nós, nos conectando aos outros como uma massa coletiva, reconquistar o controle sobre o significado do trabalho e sobre a determinação das necessidades que o legitimam. Essa é também a maneira de questionarmos o impacto desastroso que a economia está tendo sobre o ambiente através de sua lógica cega de lucro e crescimento.
Primeiramente, temos que nos livrar da ideologia produtivista do trabalho, que é promovida por empregadores mas também por uma parte importante da esquerda, levando-nos a acreditar que o trabalho é uma coisa natural com seu próprio valor intrínseco, independentemente de seu propósito econômico e impacto ambiental. Segundamente, temos que nos afastar da ordem, promovida via comerciais, de consumir toda e qualquer coisa, independentemente de nossas necessidades ou da qualidade ecológica do produto.
Em Adeus ao proletariado, Gorz criticou os parâmetros usuais estabelecidos para calcular o sucesso econômico:
Apresentam qualquer crescimento na produção e compra como um aumento na riqueza nacional, mesmo que isso inclua a crescente quantidade de embalagens, geringonças e metais descartáveis jogados nos aterros, papel queimado junto com lixo, bens domésticos sem conserto; isso inclui até membros artificiais e cuidados médicos demandados por vítimas de acidentes industriais ou rodoviários. Destruição aparece oficialmente como uma fonte de riqueza já que a substituição de tudo que é quebrado, jogado fora ou perdido dá origem a nova produção, vendas, fluxos monetários, e lucros. Quando mais rápido as coisas são quebradas, desgastadas, tornadas obsoletas ou jogadas fora, maior será o Produto Nacional Bruto e mais ricos as estatísticas dirão que somos. Até doenças e lesões físicas são apresentadas como fontes de riqueza, já que eles incham o consumo de remédios e estabelecimentos de saúde.
Uma civilização ecológica
Gorz delineou sua visão de uma civilização que nos emanciparia das restrições do trabalho em escritos que podem ser encontrados em duas coleções póstumas, Ecologica (2008) e Leur écologie et la nôtre (Aecologia deles e a nossa [2020]). Ele identificou três pilares da transição para esse estado de coisas:
1) Uma redução drástica na jornada de trabalho, com a possibilidade de escolher o trabalho em tempo parcial. Esse seria o primeiro passo no sentido de liberar tempo para aqueles atualmente trabalhando, ao mesmo tempo em que dá aos outros acesso ao emprego, e fazendo o trabalho pouco reconhecido mas socialmente necessário mais suportável.
2) A introdução de uma renda básica universal, o que daria às pessoas uma quantia suficiente para que vivessem em dignidade. Isso significaria que eles não teriam mais que trabalhar para receber uma renda.
3) O tempo assim liberado pavimentaria o caminho para o que Gorz chama de “multi-atividade.” Esta não é o trabalho no sentido capitalista do termo, voltado para a produção de mais-valia e crescimento do PIB.
Em 1985, Gorz desenhou uma figura marcante de tal “multi-atividade,” baseada em laços de cooperação autogerida:
Essas atividades devem fundir-se ao próprio movimento da vida em si, ser o tempo da vida, ter como seu fim não a produção de coisas externas mas a autorrealização de cada indivíduo. Elas são atividades essencialmente relacionais, criando, além e através de seu objeto material, relações humanas, experiências e trocas ricas [...] trabalho profissional assalariado tenderá cada vez mais a se tornar secundário, enquanto atividades autodeterminadas devem ser capazes de transcender a família e a esfera privada para criar uma cadeia de relações sociais cada vez mais densa.
Uma política socialista somente pode existir no futuro se estabelecer para si esse objetivo, que é acima de tudo cultural. Se não queremos que as pessoas se tornem primariamente consumidores de entretenimento e lazer industrializados e computadorizados, atividades autônomas educacionais, artísticas, de artesanato, micro-industriais e cooperativas devem se tornar o conteúdo da vida. Ajuda mútua, trocas emocionais, criar crianças, tomar cuidado de sua própria saúde, administrar a comuna e manter, equipar e moldar o próprio espaço, auto-produção — inclusive de comida — e reparo, usando equipamentos que não precisam ser sempre individuais [...] tudo isso é parte das atividades não econômicas, não mercadológicas do tempo libertado.
A “Grande Renúncia,” “rejeição de carreira,” e o “desejo de mudar a própria vida” são agora o material de manchetes de primeira página de jornais no rastro da pandemia. Poderiam esses limitados, porém gratificantes sinais serem parte de uma batalha travada por jovens para ir além de um sistema que está devagar mas implacavelmente destruindo nossa humanidade e tornando a vida na Terra insuportável?
Colaborador
Willy Gianinazzi é um historiador francês nascido na Suíça, especializado no estudo do sindicalismo revolucionário e outros movimentos radicais. Sua biografia André Gorz: A Life está disponível na Seagull Books.
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