Rafia Zakaria
The Blaffer
Refugiados perto da ilha grega de Kos, 2015. | Christopher Jahn/IFRC |
Tradução / O Índice de Passaportes Henley atualizou recentemente sua classificação dos passaportes do mundo, com base na “mobilidade global”. Os passaportes mais poderosos do mundo são os que garantem entrada sem visto no maior número de países. Cingapura agora ocupa o primeiro lugar, com o Japão em um empate com outros seis países na terceira posição. Nos últimos cinco anos consecutivos, o Japão esteve no topo. Mas, apesar do bom desempenho do Japão, isso não é exatamente uma via de mão dupla. Sua notória dificuldade com a inclusão de migrantes (os poucos que autoriza) e sua população relativamente pequena e robusto sistema de bem-estar social são bastante parecidos com os países escandinavos, que também têm uma classificação elevada em poder de passaporte. E, como nos países escandinavos, o padrão de vida do cidadão japonês médio está muito mais próximo do europeu ocidental do que do resto do mundo. No final da lista classificatória de 199 passaportes estão a Síria, o Iraque e o Afeganistão.
Tudo isso para dizer que um documento emitido com o fundamento arbitrário da geografia ou da ancestralidade do nascimento de um ser humano ainda determina alguns dos aspectos mais decisivos de sua qualidade de vida e das oportunidades que lhe são oferecidas. Embora isso sempre tenha sido verdade em alguma medida, o momento atual é aquele em que esse status quo é cada vez mais visto como injusto e, mesmo assim, descaradamente promovido por aqueles que acreditam que as fronteiras não devem ser violadas. Os passaportes tornaram-se comuns para residência e viagens nos anos após a Primeira Guerra Mundial. Após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, um conjunto de preceitos liberais foi admitido pela maioria dos países ocidentais e novas formas de proteção à dignidade humana, como a possibilidade de solicitar asilo com base na ameaça de perseguição, foram colocadas em prática.
Hoje, em 2023, o compromisso com os princípios liberais da igualdade e da dignidade humana é mais fraco do que quando foram instituídos. Tomemos, por exemplo, dois eventos separados que ocorreram no litoral da Grécia em um período relativamente curto. Na primeira, um barco pesqueiro com 750 migrantes afundou na costa grega. Os migrantes, do Paquistão, Síria, Egito e Palestina, foram jogados na água e apenas 104 salvaram-se do afogamento. De acordo com uma investigação da CNN, depoimentos de sobreviventes atestam que a Guarda Costeira grega, ao tentar rebocar o navio, fez com que ele virasse. Em 2020, grupos de direitos humanos que monitoram o fluxo de migrantes no Mediterrâneo descobriram que a Guarda Costeira grega estava envolvida em “rechaços” ilegais.
Outro incidente de viagem aconteceu nas ilhas gregas de Rhodes, Evia e Corfu na semana passada. A seca exacerbada, em virtude de temperaturas extremamente altas, provocou incêndios florestais que ficaram fora de controle no domingo. A ampla cobertura de canais de televisão da Europa ao Reino Unido e Estados Unidos mostrou os milhares de turistas e residentes que tiveram que evacuar seus resorts sofisticados. Diante das câmeras, os turistas reclamaram pelo fato de ter que deixar os resorts a qualquer momento. Alguns passaram dias em abrigos improvisados antes de serem retirados das ilhas. Pelo menos alguns dos primeiros pensaram que haveria algum tipo de arranjo especial feito para eles, dado o dinheiro que gastaram. O desastre natural, como tudo mais, tem a obrigação de parar diante dos passaportes poderosos. Os bombeiros helênicos, por sua vez, trabalharam dia e noite para ajudar os turistas, com uma persistência que seria inimaginável há mais de um mês, quando tantas centenas de pessoas foram deixadas para se afogar no mar ao largo da costa grega. Pior ainda, ninguém que cobria os incêndios parecia ver o tratamento diferenciado entre os dois.
Às vezes, os migrantes que entram em contato com os turistas não conseguem acreditar nas pessoas que estão vendo. Uma recente reportagem investigativa da agência de notícias Reuters detalhou como a Região de Darien, um trecho de selva particularmente traiçoeiro no coração da América Central, agora é frequentado tanto por migrantes infelizes tentando chegar aos Estados Unidos quanto por turistas aventureiros que às vezes pagam milhares de dólares apenas pela emoção de estar lá. A reportagem da Reuters entrevistou um migrante que disse ter encontrado um grupo de homens tirando fotos da paisagem enquanto ele viajava pela região. Ele ficou chocado ao saber que eram turistas aventureiros que estavam ali para filmar e produzir conteúdo.
O que poderia ilustrar melhor o puro direito dos ricos e a crescente falta de vergonha moral ou indignação com a redução de um grupo de humanos a uma categoria subordinada, enquanto outros podem se dar ao luxo de reduzir qualquer coisa a uma “experiência” para “criar conteúdo”? Ambas as palavras da moda são exemplos da linguagem mal-ajambrada que deve soar edificante. Não há vergonha moral ligada ao consumo dessas “experiências”, nas quais a natureza “emocionante” ignora a privação que não deixa alternativa para outras pessoas, com documentos diferentes, a não ser lutar.
Existem muitos lugares onde se faz visível essa justaposição entre o sortudo e o azarado – que muitas vezes pode ser lido como o branco e o não-branco, o ocidental e o não-ocidental e assim por diante. Às vezes, o “poder do passaporte” funciona de maneiras estranhas. Um documentário, que foi ao ar pela primeira vez há cinco anos, filmado pelo serviço urdu da BBC, apresentava o perfil de uma cidade estranha a algumas horas de carro de Lahore, no Paquistão. A cidade de Kharian há muito tempo exporta mão de obra, enviando trabalhadores migrantes desde a década de 1960 para ajudar no boom da construção civil na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. O que torna Kharian estranha é seu número incomum de mansões vazias. Ostensivas e chamativas, essas mansões com piso de mármore e decoração ornamental, que têm de oito a dez quartos e banheiros, estão, em sua maioria, vazias, exceto por um ou talvez dois moradores. Algumas estão completamente vazias, vigiadas por caseiros. Em entrevistas, os proprietários idosos confessaram que haviam deixado o Paquistão como trabalhadores migrantes, um deles detalhando a jornada de três meses que fez em 1971 por Afeganistão, Irã e Turquia antes de chegar, finalmente, a Oslo, na Noruega.
Seu sonho, como o de muitos outros trabalhadores, era ganhar muito dinheiro e voltar para casa no Paquistão. Esses homens conseguiram isso, realizando até mesmo o sonho de erguer as mansões que imaginavam para toda a família. O que esqueceram de incluir nessa equação foi os sonhos dos filhos e netos, que tinham pouco interesse em voltar para a pequena cidade paquistanesa. Os sortudos trabalhadores voltaram, construíram suas mansões e as encheram com todo tipo de bugiganga sofisticada que puderam imaginar. Mas, no verão, quando retornam, viajam sozinhos, pois a seus filhos – escandinavos, britânicos ou estadunidenses – falta coragem para suportar uma estação em que a temperatura pode passar de 40ºC e a energia cai o tempo todo sem aviso. Os passaportes que trouxeram mais oportunidades para seus filhos e netos frustraram seus próprios sonhos de voltar para um lar feliz. Eles não conseguem entender as visões de mundo de sua prole. Sua própria mobilidade global exigiu deles um enorme sacrifício, mas sua riqueza e sucesso deram a seus filhos as liberdades atribuídas por um passaporte, que os alçou acima do destino comum dos migrantes.
Tudo isso para dizer que um documento emitido com o fundamento arbitrário da geografia ou da ancestralidade do nascimento de um ser humano ainda determina alguns dos aspectos mais decisivos de sua qualidade de vida e das oportunidades que lhe são oferecidas. Embora isso sempre tenha sido verdade em alguma medida, o momento atual é aquele em que esse status quo é cada vez mais visto como injusto e, mesmo assim, descaradamente promovido por aqueles que acreditam que as fronteiras não devem ser violadas. Os passaportes tornaram-se comuns para residência e viagens nos anos após a Primeira Guerra Mundial. Após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, um conjunto de preceitos liberais foi admitido pela maioria dos países ocidentais e novas formas de proteção à dignidade humana, como a possibilidade de solicitar asilo com base na ameaça de perseguição, foram colocadas em prática.
Hoje, em 2023, o compromisso com os princípios liberais da igualdade e da dignidade humana é mais fraco do que quando foram instituídos. Tomemos, por exemplo, dois eventos separados que ocorreram no litoral da Grécia em um período relativamente curto. Na primeira, um barco pesqueiro com 750 migrantes afundou na costa grega. Os migrantes, do Paquistão, Síria, Egito e Palestina, foram jogados na água e apenas 104 salvaram-se do afogamento. De acordo com uma investigação da CNN, depoimentos de sobreviventes atestam que a Guarda Costeira grega, ao tentar rebocar o navio, fez com que ele virasse. Em 2020, grupos de direitos humanos que monitoram o fluxo de migrantes no Mediterrâneo descobriram que a Guarda Costeira grega estava envolvida em “rechaços” ilegais.
Outro incidente de viagem aconteceu nas ilhas gregas de Rhodes, Evia e Corfu na semana passada. A seca exacerbada, em virtude de temperaturas extremamente altas, provocou incêndios florestais que ficaram fora de controle no domingo. A ampla cobertura de canais de televisão da Europa ao Reino Unido e Estados Unidos mostrou os milhares de turistas e residentes que tiveram que evacuar seus resorts sofisticados. Diante das câmeras, os turistas reclamaram pelo fato de ter que deixar os resorts a qualquer momento. Alguns passaram dias em abrigos improvisados antes de serem retirados das ilhas. Pelo menos alguns dos primeiros pensaram que haveria algum tipo de arranjo especial feito para eles, dado o dinheiro que gastaram. O desastre natural, como tudo mais, tem a obrigação de parar diante dos passaportes poderosos. Os bombeiros helênicos, por sua vez, trabalharam dia e noite para ajudar os turistas, com uma persistência que seria inimaginável há mais de um mês, quando tantas centenas de pessoas foram deixadas para se afogar no mar ao largo da costa grega. Pior ainda, ninguém que cobria os incêndios parecia ver o tratamento diferenciado entre os dois.
Às vezes, os migrantes que entram em contato com os turistas não conseguem acreditar nas pessoas que estão vendo. Uma recente reportagem investigativa da agência de notícias Reuters detalhou como a Região de Darien, um trecho de selva particularmente traiçoeiro no coração da América Central, agora é frequentado tanto por migrantes infelizes tentando chegar aos Estados Unidos quanto por turistas aventureiros que às vezes pagam milhares de dólares apenas pela emoção de estar lá. A reportagem da Reuters entrevistou um migrante que disse ter encontrado um grupo de homens tirando fotos da paisagem enquanto ele viajava pela região. Ele ficou chocado ao saber que eram turistas aventureiros que estavam ali para filmar e produzir conteúdo.
O que poderia ilustrar melhor o puro direito dos ricos e a crescente falta de vergonha moral ou indignação com a redução de um grupo de humanos a uma categoria subordinada, enquanto outros podem se dar ao luxo de reduzir qualquer coisa a uma “experiência” para “criar conteúdo”? Ambas as palavras da moda são exemplos da linguagem mal-ajambrada que deve soar edificante. Não há vergonha moral ligada ao consumo dessas “experiências”, nas quais a natureza “emocionante” ignora a privação que não deixa alternativa para outras pessoas, com documentos diferentes, a não ser lutar.
Existem muitos lugares onde se faz visível essa justaposição entre o sortudo e o azarado – que muitas vezes pode ser lido como o branco e o não-branco, o ocidental e o não-ocidental e assim por diante. Às vezes, o “poder do passaporte” funciona de maneiras estranhas. Um documentário, que foi ao ar pela primeira vez há cinco anos, filmado pelo serviço urdu da BBC, apresentava o perfil de uma cidade estranha a algumas horas de carro de Lahore, no Paquistão. A cidade de Kharian há muito tempo exporta mão de obra, enviando trabalhadores migrantes desde a década de 1960 para ajudar no boom da construção civil na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. O que torna Kharian estranha é seu número incomum de mansões vazias. Ostensivas e chamativas, essas mansões com piso de mármore e decoração ornamental, que têm de oito a dez quartos e banheiros, estão, em sua maioria, vazias, exceto por um ou talvez dois moradores. Algumas estão completamente vazias, vigiadas por caseiros. Em entrevistas, os proprietários idosos confessaram que haviam deixado o Paquistão como trabalhadores migrantes, um deles detalhando a jornada de três meses que fez em 1971 por Afeganistão, Irã e Turquia antes de chegar, finalmente, a Oslo, na Noruega.
Seu sonho, como o de muitos outros trabalhadores, era ganhar muito dinheiro e voltar para casa no Paquistão. Esses homens conseguiram isso, realizando até mesmo o sonho de erguer as mansões que imaginavam para toda a família. O que esqueceram de incluir nessa equação foi os sonhos dos filhos e netos, que tinham pouco interesse em voltar para a pequena cidade paquistanesa. Os sortudos trabalhadores voltaram, construíram suas mansões e as encheram com todo tipo de bugiganga sofisticada que puderam imaginar. Mas, no verão, quando retornam, viajam sozinhos, pois a seus filhos – escandinavos, britânicos ou estadunidenses – falta coragem para suportar uma estação em que a temperatura pode passar de 40ºC e a energia cai o tempo todo sem aviso. Os passaportes que trouxeram mais oportunidades para seus filhos e netos frustraram seus próprios sonhos de voltar para um lar feliz. Eles não conseguem entender as visões de mundo de sua prole. Sua própria mobilidade global exigiu deles um enorme sacrifício, mas sua riqueza e sucesso deram a seus filhos as liberdades atribuídas por um passaporte, que os alçou acima do destino comum dos migrantes.
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