Três narrativas em disputa sobre o segundo governo Trump.
Jedediah Britton-Purdy e David Pozen
Boston Review
![]() |
Imagem: Mandel NGAN/AFP via Getty Images |
O julgamento político ocorre dentro do tempo político. E o tempo político é menos uma questão de cronologia do que de gênero. Que tipo de momento estamos vivendo? Nosso sistema de governo está passando por uma oscilação cíclica, uma transformação existencial ou algo entre os dois? Nove meses após o início do segundo governo Trump, os americanos se deparam com três respostas muito diferentes para essas perguntas.
A incerteza sobre onde nos encontramos no tempo político — “de volta para o futuro”, de volta ao Partido Republicano de 1989, ou de volta à Alemanha de meados da década de 1930 — vai além do que qualquer checagem de fatos poderia resolver.
Uma das visões, dominante neste momento entre liberais e centristas do mainstream, é a de que os Estados Unidos entraram em uma nova e perigosa era de crise autoritária. Seguindo o roteiro usado na Hungria de Viktor Orbán, na Turquia de Recep Tayyip Erdoğan e em outros regimes iliberais, o governo Trump está atacando instituições independentes como a mídia e as universidades, transformando o Departamento de Justiça e outras agências governamentais em instrumentos de extorsão e retaliação, manipulando dados oficiais, concedendo perdão a aliados violentos, desumanizando comunidades marginalizadas, declarando emergências sem fim e preparando o exército para reprimir “o inimigo interno”. A crise autoritária emergente é também uma crise constitucional, à medida que um poder executivo cada vez mais audacioso e presidencializado marginaliza o Congresso e o funcionalismo público, mobiliza tropas em território nacional contra a vontade de autoridades estaduais e locais, e flerta com a ideia de ignorar decisões judiciais. Enquadrando a ameaça de várias formas — autocracia, cleptocracia, fascismo, patrimonialismo, gangsterismo ou outro parente do autoritarismo —, essa visão insiste que as coisas deixaram de ser “normais”. A democracia americana está começando a se desintegrar.
Uma segunda visão, defendida por vozes proeminentes da esquerda e também por alguns libertários, sustenta que Trump não inaugurou uma nova ordem, mas apenas destacou e agravou patologias preexistentes. É basicamente mais do mesmo. Seguindo um roteiro republicano padrão, sua administração adotou amplos cortes de impostos, uma desmontagem seletiva das regulamentações econômicas e ambientais e hostilidade ao aborto e às ações afirmativas. Com algum endurecimento do discurso e o recrudescimento das políticas anti-imigração, poderíamos estar na América de Ronald Reagan. Essa continuidade, contudo, não é motivo de consolo. Seja descrito como fascismo doméstico, fascismo racial ou simplesmente o núcleo não resolvido da ideologia política americana, “mais do mesmo” significa mais repressão migratória (como na “Operação Wetback” de Eisenhower ou no recorde de deportações de Obama), mais difamação de dissidentes (como nas “Caças às Bruxas” ou na “Lista de Inimigos” de Nixon), mais expansão do aparato de segurança nacional e mais déficits crescentes que não enfrentam a desigualdade crescente. O verdadeiro escândalo constitucional não é a súbita chegada da “ilegalidade executiva” — a Guerra ao Terror já tinha isso de sobra —, mas uma podridão antiga e persistente que corroeu a capacidade do sistema de produzir uma governança responsiva, criando assim as condições para o Trump 2.0.
De acordo com uma terceira visão, adotada por muitos dos assessores e apoiadores de Trump, a política norte-americana está de fato passando por uma transformação — mas de modo familiar, ou ao menos não sem precedentes —, como parte de um processo de mudança de regime constitucional. A vitória decisiva de Trump no Colégio Eleitoral em 2024, após uma campanha com disputas mais claramente definidas do que em 2016, conferiu um selo popular (ainda que não exatamente majoritário) a essa mudança. Seguindo um roteiro desenvolvido durante o New Deal e aprimorado na era dos direitos civis, a equipe de Trump está utilizando todas as ferramentas à sua disposição para remodelar o equilíbrio de poder entre Estado e sociedade, em linha com as promessas de campanha de conter a imigração ilegal, reduzir o funcionalismo federal, restaurar a religião na esfera pública e promover uma concepção “daltônica” de igualdade racial. É claro que algumas dessas mudanças podem parecer alarmantes para aqueles formados sob o regime anterior. Mas é isso que acontece em uma democracia constitucional quando os eleitores escolhem o outro lado. E, se houve algum exagero ou erro de cálculo, bem, o mesmo poderia ser dito de qualquer mudança de regime. Essa revolução no direito e na governança, além disso, é em essência uma “contrarrevolução” — não tanto uma guinada rumo a algum modelo estrangeiro, mas um retorno a princípios que prevaleciam antes dos ataques do wokeism e do liberalismo da Corte Warren, da ascensão do Estado administrativo e da proliferação dos direitos identitários.
As apostas desse desacordo são altas, e sua configuração é desorientadora. Dentro de cada um desses roteiros, as pessoas dos outros tendem a parecer perigosamente complacentes ou ridiculamente histéricas. Os americanos estão profundamente divididos não apenas em preferências partidárias ou “fatos alternativos”, mas sobre a direção e o significado fundamentais de sua própria política.
A incerteza sobre onde nos encontramos no tempo político — “de volta para o futuro”, de volta ao Partido Republicano de 1989, ou de volta à Alemanha de meados da década de 1930 — vai além do que qualquer checagem de fatos poderia resolver.
Uma das visões, dominante neste momento entre liberais e centristas do mainstream, é a de que os Estados Unidos entraram em uma nova e perigosa era de crise autoritária. Seguindo o roteiro usado na Hungria de Viktor Orbán, na Turquia de Recep Tayyip Erdoğan e em outros regimes iliberais, o governo Trump está atacando instituições independentes como a mídia e as universidades, transformando o Departamento de Justiça e outras agências governamentais em instrumentos de extorsão e retaliação, manipulando dados oficiais, concedendo perdão a aliados violentos, desumanizando comunidades marginalizadas, declarando emergências sem fim e preparando o exército para reprimir “o inimigo interno”. A crise autoritária emergente é também uma crise constitucional, à medida que um poder executivo cada vez mais audacioso e presidencializado marginaliza o Congresso e o funcionalismo público, mobiliza tropas em território nacional contra a vontade de autoridades estaduais e locais, e flerta com a ideia de ignorar decisões judiciais. Enquadrando a ameaça de várias formas — autocracia, cleptocracia, fascismo, patrimonialismo, gangsterismo ou outro parente do autoritarismo —, essa visão insiste que as coisas deixaram de ser “normais”. A democracia americana está começando a se desintegrar.
Uma segunda visão, defendida por vozes proeminentes da esquerda e também por alguns libertários, sustenta que Trump não inaugurou uma nova ordem, mas apenas destacou e agravou patologias preexistentes. É basicamente mais do mesmo. Seguindo um roteiro republicano padrão, sua administração adotou amplos cortes de impostos, uma desmontagem seletiva das regulamentações econômicas e ambientais e hostilidade ao aborto e às ações afirmativas. Com algum endurecimento do discurso e o recrudescimento das políticas anti-imigração, poderíamos estar na América de Ronald Reagan. Essa continuidade, contudo, não é motivo de consolo. Seja descrito como fascismo doméstico, fascismo racial ou simplesmente o núcleo não resolvido da ideologia política americana, “mais do mesmo” significa mais repressão migratória (como na “Operação Wetback” de Eisenhower ou no recorde de deportações de Obama), mais difamação de dissidentes (como nas “Caças às Bruxas” ou na “Lista de Inimigos” de Nixon), mais expansão do aparato de segurança nacional e mais déficits crescentes que não enfrentam a desigualdade crescente. O verdadeiro escândalo constitucional não é a súbita chegada da “ilegalidade executiva” — a Guerra ao Terror já tinha isso de sobra —, mas uma podridão antiga e persistente que corroeu a capacidade do sistema de produzir uma governança responsiva, criando assim as condições para o Trump 2.0.
De acordo com uma terceira visão, adotada por muitos dos assessores e apoiadores de Trump, a política norte-americana está de fato passando por uma transformação — mas de modo familiar, ou ao menos não sem precedentes —, como parte de um processo de mudança de regime constitucional. A vitória decisiva de Trump no Colégio Eleitoral em 2024, após uma campanha com disputas mais claramente definidas do que em 2016, conferiu um selo popular (ainda que não exatamente majoritário) a essa mudança. Seguindo um roteiro desenvolvido durante o New Deal e aprimorado na era dos direitos civis, a equipe de Trump está utilizando todas as ferramentas à sua disposição para remodelar o equilíbrio de poder entre Estado e sociedade, em linha com as promessas de campanha de conter a imigração ilegal, reduzir o funcionalismo federal, restaurar a religião na esfera pública e promover uma concepção “daltônica” de igualdade racial. É claro que algumas dessas mudanças podem parecer alarmantes para aqueles formados sob o regime anterior. Mas é isso que acontece em uma democracia constitucional quando os eleitores escolhem o outro lado. E, se houve algum exagero ou erro de cálculo, bem, o mesmo poderia ser dito de qualquer mudança de regime. Essa revolução no direito e na governança, além disso, é em essência uma “contrarrevolução” — não tanto uma guinada rumo a algum modelo estrangeiro, mas um retorno a princípios que prevaleciam antes dos ataques do wokeism e do liberalismo da Corte Warren, da ascensão do Estado administrativo e da proliferação dos direitos identitários.
As apostas desse desacordo são altas, e sua configuração é desorientadora. Dentro de cada um desses roteiros, as pessoas dos outros tendem a parecer perigosamente complacentes ou ridiculamente histéricas. Os americanos estão profundamente divididos não apenas em preferências partidárias ou “fatos alternativos”, mas sobre a direção e o significado fundamentais de sua própria política.
Os três roteiros começaram a tomar forma há quase uma década, durante o primeiro governo Trump. Havia uma visão de “resistência”, que via Trump como uma ameaça autoritária desde o início; uma resposta cética, que considerava sua quebra de normas “mais barulho do que ação”; e uma esperança, à direita, de que sua presidência se revelaria um marco constitucional. Essa esperança não se concretizou. Mesmo após as devastações causadas pela COVID-19 e os distúrbios de 6 de janeiro de 2021, Joe Biden assumiu o cargo dentro de uma ordem constitucional que permaneceu essencialmente intacta.
Hoje, parece claro que algo maior está em curso. Mas ainda não está claro até que ponto os roteiros do primeiro mandato de Trump conseguem acompanhar o ritmo vertiginoso dos acontecimentos. A incerteza sobre onde nos encontramos no tempo político — sobre se esta presidência nos está levando “de volta para o futuro”, de volta à política republicana de 1989 ou de volta à Alemanha de meados da década de 1930 — tem várias causas e se manifesta em múltiplos níveis.
Para começar, ainda estamos nos primeiros dias. As coisas podem se desdobrar de várias maneiras, especialmente considerando que a taxa de aprovação de Trump entre os eleitores independentes atingiu um recorde mínimo e que o partido do presidente tende a perder terreno nas eleições de meio de mandato. A situação também é complicada pela dimensão e pela complexidade do sistema de governo americano, incluindo o papel importante dos estados. Enquanto o partido governante em sistemas menores e mais unificados, como o da Hungria, pode definir uma única direção a seguir, o panorama geral nos Estados Unidos inevitavelmente será heterogêneo.
Mais fundamentalmente, assim como em outros aspectos da polarização americana, os roteiros concorrentes refletem diferenças de visão de mundo que vão além do que qualquer checagem de fatos poderia resolver. O desacordo entre “crise autoritária” e “mais do mesmo” se resume à continuidade versus descontinuidade: se esta presidência representa uma ruptura decisiva com as práticas do passado ou apenas uma versão mais bruta e intensa delas. Esse julgamento, por sua vez, depende de como se enxerga o passado.
Subjacente à maioria das versões da visão de crise autoritária está a premissa de que os Estados Unidos alcançaram um grau especial de legitimidade moral e política — e uma distância aparentemente segura do autoritarismo — após o caso Brown v. Board of Education, a Lei dos Direitos de Voto de 1965 e a chamada Segunda Reconstrução. As eleições eram, em geral, livres e justas. O Judiciário era amplamente respeitado e genuinamente apartidário. Um emaranhado de salvaguardas processuais e doutrinas jurídicas garantia que a imprensa, os escritórios de advocacia e outras instituições privadas gozassem de ampla autonomia em relação ao governo. Os funcionários do Poder Executivo entendiam que estavam perseguindo um interesse público distinto do interesse de seu partido — ainda que nunca fosse totalmente claro o que esse interesse público envolvia. O país talvez não tenha alcançado a “comunidade amada” sonhada por Martin Luther King, mas essas estruturas e práticas constituíam uma aproximação louvável da democracia e do Estado de Direito — valores que agora se veem cambaleantes, à medida que essas mesmas estruturas e práticas passam a estar sob o controle de Trump.
Hoje, parece claro que algo maior está em curso. Mas ainda não está claro até que ponto os roteiros do primeiro mandato de Trump conseguem acompanhar o ritmo vertiginoso dos acontecimentos. A incerteza sobre onde nos encontramos no tempo político — sobre se esta presidência nos está levando “de volta para o futuro”, de volta à política republicana de 1989 ou de volta à Alemanha de meados da década de 1930 — tem várias causas e se manifesta em múltiplos níveis.
Para começar, ainda estamos nos primeiros dias. As coisas podem se desdobrar de várias maneiras, especialmente considerando que a taxa de aprovação de Trump entre os eleitores independentes atingiu um recorde mínimo e que o partido do presidente tende a perder terreno nas eleições de meio de mandato. A situação também é complicada pela dimensão e pela complexidade do sistema de governo americano, incluindo o papel importante dos estados. Enquanto o partido governante em sistemas menores e mais unificados, como o da Hungria, pode definir uma única direção a seguir, o panorama geral nos Estados Unidos inevitavelmente será heterogêneo.
Mais fundamentalmente, assim como em outros aspectos da polarização americana, os roteiros concorrentes refletem diferenças de visão de mundo que vão além do que qualquer checagem de fatos poderia resolver. O desacordo entre “crise autoritária” e “mais do mesmo” se resume à continuidade versus descontinuidade: se esta presidência representa uma ruptura decisiva com as práticas do passado ou apenas uma versão mais bruta e intensa delas. Esse julgamento, por sua vez, depende de como se enxerga o passado.
Subjacente à maioria das versões da visão de crise autoritária está a premissa de que os Estados Unidos alcançaram um grau especial de legitimidade moral e política — e uma distância aparentemente segura do autoritarismo — após o caso Brown v. Board of Education, a Lei dos Direitos de Voto de 1965 e a chamada Segunda Reconstrução. As eleições eram, em geral, livres e justas. O Judiciário era amplamente respeitado e genuinamente apartidário. Um emaranhado de salvaguardas processuais e doutrinas jurídicas garantia que a imprensa, os escritórios de advocacia e outras instituições privadas gozassem de ampla autonomia em relação ao governo. Os funcionários do Poder Executivo entendiam que estavam perseguindo um interesse público distinto do interesse de seu partido — ainda que nunca fosse totalmente claro o que esse interesse público envolvia. O país talvez não tenha alcançado a “comunidade amada” sonhada por Martin Luther King, mas essas estruturas e práticas constituíam uma aproximação louvável da democracia e do Estado de Direito — valores que agora se veem cambaleantes, à medida que essas mesmas estruturas e práticas passam a estar sob o controle de Trump.
Sob a perspectiva do “mais do mesmo”, essa imagem de um país exemplar que recentemente teria decaído revela menos sobre a realidade da história dos Estados Unidos do que sobre “a imagem narcisista que a América tem de si mesma”. Apesar dos avanços do movimento dos direitos civis, onde esteve o devido processo legal em um sistema de imigração há muito conhecido por ser bizantino, atrasado e cronicamente carente de advogados; em um sistema criminal em que a polícia atua de forma mais intensa sobre comunidades pobres e racializadas e em que a imensa maioria das ações termina em acordos coercitivos; ou em um sistema civil que empurra a maioria dos trabalhadores e consumidores para a arbitragem obrigatória? Quão representativo é um sistema político no qual “as preferências da grande maioria dos americanos” exerceram “praticamente nenhum impacto sobre as políticas que o governo adota ou deixa de adotar”? Ou um sistema que entregou a presidência ao perdedor do voto popular nacional duas vezes entre 2000 e 2016 — uma delas com ajuda da Suprema Corte? Falando na Corte, não podemos esquecer que, desde Brown v. Board of Education, os juízes foram incapazes ou se mostraram relutantes em impedir a resegregação escolar e o “autoritarismo racial” de modo mais amplo, ou que todo um subcampo da ciência política fornece evidências de que “as preferências políticas pessoais são a influência mais forte” em suas decisões. Se há uma crise autoritária nessa visão, é uma crise longa — talvez com mais de dois séculos — e certamente não uma gêmea do Project 2025. Em vez de demonstrar a virtude dos Estados Unidos antes de Trump, “o estudo de regimes iliberais e antidemocráticos” nos leva, ironicamente, de volta “às tendências autoritárias dos próprios regimes liberais democráticos”.
A interpretação baseada na mudança de regime constitucional concorda que os últimos cinquenta anos não têm nenhuma reivindicação especial à democracia e ao Estado de Direito, mas por uma razão diferente: porque foram uma era de hegemonia liberal. Todas essas eras acabam, enfatiza essa visão, e o sistema constitucional ajuda a encerrá-las pacificamente. A base de apoio do presidente Trump não considerava particularmente democrático um regime em que tribunais federais impunham novos direitos não escritos à autonomia sexual e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; em que agências federais tratavam de temas tão amplos quanto o aquecimento global sem autorização legislativa explícita, emitindo regulamentações controversas sobre tudo — das vacinas à identidade de gênero; e em que as profissões fomentavam uma cultura de elite que mantinha os conservadores constantemente em posição defensiva. O movimento MAGA deseja desmontar não apenas uma política aqui ou uma doutrina ali, mas todo um edifício de leis, normas e valores que considera terem sido impostos pelos liberais por meio de seu dogma do “constitucionalismo vivo” e de sua influência sobre órgãos reguladores, universidades, fundações e veículos de mídia tradicionais. Embora uma agenda de reformas “radical” dessa escala possa não soar muito conservadora, nada menos do que isso bastaria, segundo essa perspectiva, para derrubar as forças predominantes de controle institucional e ideológico.
A interpretação baseada na mudança de regime constitucional concorda que os últimos cinquenta anos não têm nenhuma reivindicação especial à democracia e ao Estado de Direito, mas por uma razão diferente: porque foram uma era de hegemonia liberal. Todas essas eras acabam, enfatiza essa visão, e o sistema constitucional ajuda a encerrá-las pacificamente. A base de apoio do presidente Trump não considerava particularmente democrático um regime em que tribunais federais impunham novos direitos não escritos à autonomia sexual e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; em que agências federais tratavam de temas tão amplos quanto o aquecimento global sem autorização legislativa explícita, emitindo regulamentações controversas sobre tudo — das vacinas à identidade de gênero; e em que as profissões fomentavam uma cultura de elite que mantinha os conservadores constantemente em posição defensiva. O movimento MAGA deseja desmontar não apenas uma política aqui ou uma doutrina ali, mas todo um edifício de leis, normas e valores que considera terem sido impostos pelos liberais por meio de seu dogma do “constitucionalismo vivo” e de sua influência sobre órgãos reguladores, universidades, fundações e veículos de mídia tradicionais. Embora uma agenda de reformas “radical” dessa escala possa não soar muito conservadora, nada menos do que isso bastaria, segundo essa perspectiva, para derrubar as forças predominantes de controle institucional e ideológico.
Críticos da visão de crise autoritária, tanto à esquerda quanto à direita, concordam, portanto, que a história recente dos EUA apresentou muito mais poder arbitrário do que os centristas estão dispostos a admitir. Eles discordam apenas sobre quem estava sob a bota. Sob ambas as perspectivas, aqueles que acusam Trump de trair a tradição democrática americana confundem as características de um regime constitucional específico com o constitucionalismo em sentido amplo. A ascensão de Trump representa o fracasso do regime anterior em sustentar sua legitimidade.
A interpretação da crise autoritária surgiu no final da década de 2010 como um guia para a estratégia de oposição — e seus imperativos tornaram-se ainda mais urgentes sob o segundo governo Trump. Sua prescrição básica tem sido uma política pragmática voltada para preservar os pilares centrais da democracia liberal. Na prática, muitos têm interpretado isso como a necessidade de buscar alianças “transpartidárias” sempre que possível (pense em Liz Cheney fazendo campanha por Kamala Harris); mobilizar-se em defesa de instituições não partidárias, como universidades e tribunais (“Preserve a independência de seus tribunais a todo custo”, aconselha o Authoritarian Regime Survival Guide); e combater “fogo com fogo” na questão do redesenho distrital (gerrymandering), ao menos até que o risco de manipulação eleitoral possa ser contido de outras formas. Outros argumentam que os democratas devem se desvincular de posições impopulares sobre policiamento, questões transgênero e fronteira. Especialistas em autoritarismo alertam contra as “distrações”: a centralização e o abuso de poder são as principais ameaças — e, portanto, devem ser o foco central da luta.
Tais táticas de aparência sóbria, contudo, logo enfrentam dificuldades. A campanha “antiautoritária” bipartidária foi tentada em 2024 — e fracassou. Combater fogo com fogo em temas como o gerrymandering (redesenho de distritos eleitorais), por sua vez, pode gerar um paradoxo: recusar-se a lutar significa perder, mas aderir à disputa pode intensificar a polarização e o cinismo entre aqueles que ainda não estão convencidos de que o seu lado trava uma luta justa para salvar a república. Além disso, o desencanto generalizado com as instituições tende a favorecer políticos que prometem romper com o sistema, e não partidos e candidatos que falam em salvá-lo. Diante das condições atuais, alguns integrantes do campo da “crise autoritária” sustentam agora que moderação e bipartidarismo já não trazem benefícios eleitorais significativos aos democratas — e podem, na verdade, ser um fardo. O que fazer, então?
O roteiro do “mais do mesmo” sugere um conjunto de remédios mais ousado, baseado em um diagnóstico mais sombrio: o sistema está quebrado há muito tempo. Em vez de buscar o ocasional conservador “Nunca Trump” para formar uma “grande coalizão” do establishment sitiado, a oposição deveria ultrapassar o presidente pelo seu flanco populista. É preciso enfrentar a oligarquia econômica. Fazer declarações firmes de princípio — por exemplo, sobre os direitos de liberdade de expressão de estudantes manifestantes ou sobre o devido processo e a dignidade humana de não cidadãos — para que todos saibam onde você está. Trump não diz muitas coisas impopulares que, de algum modo, convencem as pessoas de que ele é autêntico? Em vez de romantizar a supremacia judicial sobre a Constituição, é melhor aprofundar a democracia por meio da reforma dos tribunais, como ativistas e acadêmicos tentaram brevemente durante o governo Biden. Não se deve recuar para um liberalismo do medo em um momento em que muitos eleitores decidiram, com razão, que há muito o que temer e detestar no sistema atual. É hora de um populismo da esperança.
Aqui também, contudo, a prática política nem sempre corresponde à teoria. A derrota de Harris foi também uma derrota para o afastamento do governo Biden em relação ao neoliberalismo tradicional — simbolizado por iniciativas pró-sindicais e investimentos ambiciosos em infraestrutura e reindustrialização —, esforços que, no entanto, não renderam dividendos eleitorais. Para além do “bidenismo”, aqueles que recomendam responder a Trump com uma agenda ousada e inversa à dele podem estar moralmente certos, mas politicamente equivocados ao imaginar que é possível sustentar, ao mesmo tempo, um conjunto completo de compromissos com a justiça social e um populismo de tom combativo. Muitos americanos parecem acreditar que os democratas “não estão do seu lado”, em parte por causa desses compromissos — independentemente da plataforma econômica do partido, que é comparativamente mais progressista. Respostas estruturais, como a reforma do Judiciário, tampouco são menos problemáticas. Pode ser verdade, em princípio, que juízes não eleitos tenham poder excessivo no governo dos EUA e que uma democracia saudável e autoconfiante devesse contê-los. Mas também pode ser verdade que a nossa não é uma democracia saudável nem autoconfiante — e que o melhor que os americanos podem fazer é tentar reunir-se em torno das instituições e símbolos existentes — a Constituição, os tribunais —, ainda que sua capacidade de unir esteja se esvaindo.
Ambas as posições, porém, continuam em nítido contraste com a interpretação da mudança de regime constitucional. Sob essa ótica, a tarefa intelectual essencial não é diagnosticar a crise atual nem rastrear suas origens, mas explicar por que o próprio discurso da crise é equivocado. Ao minimizar o descontentamento de liberais e progressistas como mera manifestação da “Síndrome de Derretimento Trump”, a visão da mudança de regime propõe um modo de engajamento completamente distinto: lealdade constitucional combinada com oposição política ordinária. Ninguém precisa concordar com Trump para aceitar que ele tem o direito de governar — e, como presidentes “reconstrutivos” anteriores, de governar à sua maneira. Mudanças nas políticas de imigração, na gestão de agências e na aplicação dos direitos civis são marcas típicas de uma nova administração — apenas ampliadas por um presidente cuja campanha destacou essas questões. A consolidação de autoridade no Executivo é uma tendência de longa data. E, segundo os teóricos constitucionais do movimento MAGA, se alguém tem se recusado a cumprir ordens da Suprema Corte recentemente, não são os supostos tiranos do governo Trump, mas juízes de instâncias inferiores “em busca de holofotes”. Assim como na revolução reaganista, a única resposta sensata talvez seja reconhecer a legitimidade do programa político de Trump — pelo menos em sua maior parte — e continuar tentando derrotar o trumpismo nas urnas.
Essa abordagem, no entanto, também está sendo rapidamente superada pelos acontecimentos. Os defensores da visão da “crise autoritária” alertam que as próprias urnas podem estar se tornando inóperas. Apontando para um padrão de ações difícil de defender sob qualquer fundamento democrático, eles se preocupam não apenas com violações de restrições legais e éticas específicas, mas com uma hostilidade às restrições em si; não apenas com o partidarismo, mas com o uso da lealdade pessoal como critério de seleção; não apenas com prioridades questionáveis de aplicação da lei, mas com o uso dessa mesma lei para recompensar a obediência política e intimidar inimigos percebidos.
O enquadramento da “mudança de regime constitucional” descreve o segundo governo Trump como uma expressão da soberania popular e do Estado de Direito — não como sua antítese. Mas, em qualquer versão, esses princípios pressupõem barreiras reais ao governo personalista. O estilo de governança exibido nos últimos nove meses é abertamente voltado ao autoenriquecimento, à concentração de poder e à fabricação de inimizades — excessivamente descarado para que muitos aceitem que isso seja apenas uma forma de renovação da democracia constitucional.
Além disso, a legitimidade de uma mudança política fundamental — o que alguns teóricos do direito chamam de “momento constitucional” — tem sido tradicionalmente associada a maiorias amplas e duradouras. Franklin Roosevelt as teve, em grau único no século XX, e as utilizou para reformar o Judiciário e o Executivo. Após uma vitória esmagadora sobre Barry Goldwater, Lyndon Johnson contou com supermaiorias em ambas as casas do Congresso para aprovar legislações históricas. Trump venceu uma única eleição popular, pela menor margem de qualquer presidente desde Nixon, e nunca teve apoio majoritário. Um partido de movimento como o atual Partido Republicano, que controla o governo mas aparece atrás na maioria das pesquisas nacionais, tem todo o direito de propor uma nova visão de políticas públicas. Mas, para um presidente como Trump reivindicar um mandato para uma revolução (ou contrarrevolução) constitucional, trata-se de uma ideia revolucionária em si mesma — e com pouquíssimo respaldo na história dos EUA ou na teoria democrática.
Embora pareçam fundamentalmente opostas, há um sentido em que as três interpretações do segundo governo Trump podem ser verdadeiras. O fato de a agenda de uma nova administração indignar seus opositores e abalar normas estabelecidas não significa que ela seja ilegítima. Ao mesmo tempo, o fato de uma mudança constitucional começar em bases razoavelmente democráticas não garante que ela não terminará destruindo tanto o constitucionalismo quanto a própria democracia. O autoritarismo não é apenas uma possibilidade real em uma república rica e madura — estamos vendo sinais inequívocos de sua expansão. No entanto, derrotá-lo de forma decisiva exige enfrentar as tendências estruturais que o alimentam, como a disfunção legislativa e a dominação econômica. Não é solução defender uma ordem anterior que nos conduziu exatamente até aqui.
A persistência dessas narrativas concorrentes por quase uma década, portanto, vai além da inércia conceitual. Por mais que os roteiros entrem em desacordo e se desqualifiquem mutuamente, cada um capta uma verdade política duradoura que está ausente ou é minimizada nos demais. Além disso, nenhum deles conseguiu sustentar apoio majoritário — o que torna ainda mais essenciais os esforços de compreensão mútua e de ampliação das coalizões.
Por mais que os roteiros entrem em desacordo e se desqualifiquem mutuamente, cada um deles capta uma verdade política duradoura que está ausente ou é minimizada nos demais.
Embora os críticos de Trump pertencentes aos dois primeiros campos concordem cada vez mais que os Estados Unidos se moveram — ou se aprofundaram — em direção ao autoritarismo, continuam divididos quanto às causas e à intensidade dessa guinada: se ela é impulsionada pela política identitária, pelo ressentimento racial, pela polarização afetiva, pela desigualdade econômica ou pelo próprio capitalismo. Partes centrais do campo anti-autoritário, por exemplo, veem os mercados financeiros globais como um freio crucial a Trump; já setores do campo do “mais do mesmo” consideram essas mesmas instituições parte da distribuição antidemocrática de poder que o levou ao poder. Essa clivagem ficou evidente quando o fundador do fundo de investimento Ray Dalio aderiu à leitura da “crise autoritária”, comparando Trump aos fascistas dos anos 1930 e citando a aquisição de 10% da Intel pelo governo como principal evidência; Bernie Sanders, em contraste, elogiou a medida — um raro ponto de convergência com o presidente. No front eleitoral, embora alguns democratas eleitos demonstrem entusiasmo com populistas econômicos desafiando republicanos, mostram-se bem mais ambíguos diante da plataforma abertamente de esquerda de socialistas democráticos como Zohran Mamdani, cuja candidatura à prefeitura de Nova York provocou pânico no establishment. Os embates em torno de Mamdani também evidenciaram outra barreira entre os campos: o profundo divisor sobre Israel e a guerra em Gaza — tema explorado avidamente por Trump.
Apesar desses pontos persistentes de conflito, as interpretações da crise autoritária e do mais do mesmo começaram a se fundir e se hibridizar de uma forma inédita desde o primeiro mandato de Trump. É mais comum agora que teóricos do autoritarismo reconheçam causas de longo prazo, como as deficiências democráticas da própria Constituição dos EUA, e menos frequente encontrar populistas econômicos progressistas que realmente duvidem de que a presidência de Trump represente uma ameaça singular aos valores políticos centrais. Como reflete a vitória de Mamdani nas primárias, tem havido uma convergência crescente entre democratas em relação à política dos EUA para Israel e, mais amplamente, um movimento em direção a um sentido compartilhado de propósito — ainda que sem uma agenda unificada. Muito está em jogo nessa síntese incipiente: a questão hoje não é tanto se os dois campos estão dispostos a cooperar, mas se conseguirão fazê-lo de maneira eficaz.
Construir pontes entre os dois primeiros campos e o terceiro é, claro, mais difícil — mas também essencial. Apesar de sua persona autocrática, a viabilidade política do trumpismo ainda depende, em alguma medida, da narrativa da mudança de regime constitucional. Pelo menos por ora, há pouco apoio público a táticas abertamente autoritárias, como deportações sumárias ou o descumprimento de ordens judiciais. O populismo de direita provavelmente continuará sendo uma força política relevante, tanto nos EUA quanto no exterior. Qualquer esperança de conter sua ameaça autoritária depende, em parte, de separar a agenda política geral de Trump — que conta com apoio plural em vários aspectos — de seus abusos de poder mais extremos.
Se os três principais roteiros que os americanos vêm utilizando para compreender esta presidência servirem de indicação, alguma combinação de antiautoritarismo e antioligarquia pode muito bem ser a única plataforma capaz de superar o trumpismo de forma decisiva. Por mais difícil que isso pareça, é ainda mais difícil, no momento, imaginar um modus vivendi constitucional que abranja os três campos — um acordo em que o reconhecimento das divergências legítimas seja equilibrado por limites aceitos quanto aos estratagemas do poder. Na ausência de uma ou outra forma de terreno comum, continuarão a existir disputas agudas — e, por vezes, surreais — sobre as questões cívicas mais fundamentais, incluindo se a república está florescendo ou se desintegrando. Os Estados Unidos permanecerão perdidos no tempo político, sem garantia de uma maioria duradoura nem mesmo para a própria democracia.
Jedediah Britton-Purdy é professor de Direito na Universidade Duke e autor, mais recentemente, de Two Cheers for Politics: Why Democracy Is Flawed, Frightening—and Our Best Hope.
David Pozen é professor de Direito na Universidade Columbia e autor, mais recentemente, de The Constitution of the War on Drugs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário