Petista volta à política com menos apoio do establishment e enfrenta, pela 1ª vez, adversário de raiz popular
Ato de lançamento da candidatura de Lula e Alckmin à Presidência da República Marlene Bergamo - 8.mai.22/Folhapress |
[RESUMO] Mais velho, mais centralizador e com menos apoio do establishment, Lula volta à política em tom de tragédia grega para recuperar a forma, enfrentar seu primeiro adversário de raiz popular e provar que ainda é capaz de liderar as massas, escreve autor.
Voltar é uma pulsão. A chance de recomeçar, corrigir, dizer o que ficou na garganta, cumprir o combinado e, desta vez, acertar o pênalti perdido. Na política, a volta ao poder é a oportunidade de demolir o passado e reconstruir-se por sobre os escombros.
"Eu voltarei, mas não como líder de partidos, e sim como líder de massas" prometeu Getúlio Vargas na declaração engendrada pelo jornalista Samuel Wainer para a manchete do jornal Diário da Noite, no Carnaval de 1949. Menos de dois anos depois, ele de fato voltava ao Palácio do Catete, de onde só saiu morto em agosto de 1954. No regresso ao poder, Vargas passou de cruel ditador do Estado Novo a ícone da esquerda nacionalista.
Luiz Inácio Lula da Silva começou a voltar descendo pelas escadas de incêndio os quatro andares do prédio da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. A cada andar, abria a porta de segurança para cumprimentar os antigos carcereiros, quase todos vestindo máscaras no rosto para evitar fotos das centenas de jornalistas que aguardavam a soltura do ex-presidente depois de 580 dias preso.
Lula apertava a mão e mandava lembranças para as famílias dos agentes, como se não tivesse pressa de sair. Às 17h40 de 8 de novembro de 2019, em um discurso ensaiado na cela, ele agitou a bandeira de paz para acalmar antigos adversários: "Saio daqui sem ódio".
"Ele ainda não havia recuperado os direitos políticos e enfrentava uma dúzia de processos, mas nenhum de nós tinha dúvidas: ele queria voltar", contou o advogado Luiz Carlos Rocha, que visitou Lula na prisão todas as manhãs.
"Eu voltarei, mas não como líder de partidos, e sim como líder de massas" prometeu Getúlio Vargas na declaração engendrada pelo jornalista Samuel Wainer para a manchete do jornal Diário da Noite, no Carnaval de 1949. Menos de dois anos depois, ele de fato voltava ao Palácio do Catete, de onde só saiu morto em agosto de 1954. No regresso ao poder, Vargas passou de cruel ditador do Estado Novo a ícone da esquerda nacionalista.
Luiz Inácio Lula da Silva começou a voltar descendo pelas escadas de incêndio os quatro andares do prédio da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. A cada andar, abria a porta de segurança para cumprimentar os antigos carcereiros, quase todos vestindo máscaras no rosto para evitar fotos das centenas de jornalistas que aguardavam a soltura do ex-presidente depois de 580 dias preso.
Lula apertava a mão e mandava lembranças para as famílias dos agentes, como se não tivesse pressa de sair. Às 17h40 de 8 de novembro de 2019, em um discurso ensaiado na cela, ele agitou a bandeira de paz para acalmar antigos adversários: "Saio daqui sem ódio".
"Ele ainda não havia recuperado os direitos políticos e enfrentava uma dúzia de processos, mas nenhum de nós tinha dúvidas: ele queria voltar", contou o advogado Luiz Carlos Rocha, que visitou Lula na prisão todas as manhãs.
A política é um dos poucos lugares em que você pode ressuscitar sem precisar morrer antes. Lula foi dado como morto dezenas de outras vezes. Depois da derrota em sua primeira campanha eleitoral, em 1982, quando ficou em quarto lugar na disputa para o Governo de São Paulo, ele falou em largar a política e só foi convencido do contrário por Fidel Castro, como contou o biógrafo Fernando Morais em "Lula – Volume 1".
Em 1998, depois da terceira derrota seguida para a Presidência da República, isolou-se por semanas no sítio do amigo José Graziano. Lula se dizia cansado das querelas partidárias e tinha o apoio da então esposa, Marisa, para se afastar da política. Quando a cúpula do PT entendeu que Lula falava sério, uma metade se animou a tentar ser o seu sucessor, enquanto a outra fazia romaria para que mudasse de ideia. "Só volto se for do meu jeito", ele afirmou. Foi.
Se Lula vencer neste ano e tomar posse —no Brasil de 2022, eleição e posse talvez não sejam mais processos interligados—, terá 77 anos ao voltar ao Planalto. Será o presidente mais velho a iniciar um mandato. Os cabelos estão mais ralos e brancos, a voz mais rouca. Como um jogador de futebol depois de longa inatividade, está enferrujado. As declarações saem tortas, como chutes a esmo para o gol.
Em abril, em uma frase de improviso sem que ninguém fosse avisado, defendeu que o aborto deveria ser um "direito de todo o mundo" e fosse tratado como política de saúde, tema tabu para todo presidenciável. Depois recuou e se posicionou contra a prática.
Em 30 de abril, em ataque ao presidente Jair Bolsonaro, uma declaração sua deu a entender que policiais não eram gente ("Ele [Bolsonaro] não tem sentimento. Ele não gosta de gente, ele gosta de policial"). No dia seguinte, em ato do 1º de Maio, uma nova retratação.
No lançamento formal da sua pré-candidatura, no último dia 7, Lula leu o discurso de 5.296 palavras, atitude raríssima em 40 anos de campanhas.
Pessoas que conversam com Lula frequentemente o acham hoje mais impaciente com os debates sem fim que fazem parte do folclore petista.
Em encontros recentes, ele reclamou da rede de intrigas que derrubou seu amigo Franklin Martins da comunicação da campanha, das dificuldades do PT em fechar acordos partidários em Minas e no Rio e dos relatórios de monitoramento mostrando a vantagem dos bolsonaristas nas redes sociais.
Lula tornou-se mais controlador, participando de reuniões menores que antes eram relegadas a assessores, como as que decidem as peças de campanha de TV e a agenda de viagens. Em uma campanha presidencial, isso é insustentável.
Parte do problema é da nova postura centralizadora de Lula, mas parte é do mundo político. Todos querem falar com ele, e somente com ele, acreditando que nenhum outro petista tem autoridade para fechar acordos. Hoje, eles têm razão.
O ex-presidente decidiu não ter um coordenador do programa de economia, impedindo o surgimento de um candidato natural a ministro da Fazenda em um eventual terceiro mandato. Quando bancos e empresas convidam um representante do PT para palestrar, Lula indica a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, o senador Jacques Wagner, ex-ministros, como Guido Mantega, ou ainda os deputados federais Alexandre Padilha e Rui Falcão.
O ex-adversário e agora candidato a vice, Geraldo Alckmin, será o interlocutor junto ao agronegócio. Ao indicar tantos porta-vozes, Lula quer dizer que ninguém realmente fala em seu nome.
Nas palestras para o mercado financeiro, a primeira pergunta quase sempre é a mesma: "Qual Lula está voltando, o de 2003 ou o de 2007?". Na premissa dos executivos da Faria Lima, existe um "Lula bom", que montou um time fiscalista com Henrique Meirelles, Marcos Lisboa e Joaquim Levy no primeiro governo, e um "Lula mau", que deixou Guido Mantega e Dilma Rousseff tocarem a política econômica intervencionista a partir de 2007.
A pergunta soa anacrônica. O Lula de 2022 é diferente dos anteriores não apenas porque as condições são novas, mas especialmente porque o adversário é outro.
Jair Bolsonaro é o primeiro político de raiz popular que Lula enfrenta. Em 1989, Fernando Collor era um coronel político disfarçado de caçador de marajás. De 1994 a 2014, os candidatos do PSDB (mesmo José Serra, filho de feirantes) encarnavam o establishment, facilitando o discurso "nós contra eles" do marketing petista. Com Bolsonaro, isso não funciona.
Em 1998, depois da terceira derrota seguida para a Presidência da República, isolou-se por semanas no sítio do amigo José Graziano. Lula se dizia cansado das querelas partidárias e tinha o apoio da então esposa, Marisa, para se afastar da política. Quando a cúpula do PT entendeu que Lula falava sério, uma metade se animou a tentar ser o seu sucessor, enquanto a outra fazia romaria para que mudasse de ideia. "Só volto se for do meu jeito", ele afirmou. Foi.
Se Lula vencer neste ano e tomar posse —no Brasil de 2022, eleição e posse talvez não sejam mais processos interligados—, terá 77 anos ao voltar ao Planalto. Será o presidente mais velho a iniciar um mandato. Os cabelos estão mais ralos e brancos, a voz mais rouca. Como um jogador de futebol depois de longa inatividade, está enferrujado. As declarações saem tortas, como chutes a esmo para o gol.
Em abril, em uma frase de improviso sem que ninguém fosse avisado, defendeu que o aborto deveria ser um "direito de todo o mundo" e fosse tratado como política de saúde, tema tabu para todo presidenciável. Depois recuou e se posicionou contra a prática.
Em 30 de abril, em ataque ao presidente Jair Bolsonaro, uma declaração sua deu a entender que policiais não eram gente ("Ele [Bolsonaro] não tem sentimento. Ele não gosta de gente, ele gosta de policial"). No dia seguinte, em ato do 1º de Maio, uma nova retratação.
No lançamento formal da sua pré-candidatura, no último dia 7, Lula leu o discurso de 5.296 palavras, atitude raríssima em 40 anos de campanhas.
Pessoas que conversam com Lula frequentemente o acham hoje mais impaciente com os debates sem fim que fazem parte do folclore petista.
Em encontros recentes, ele reclamou da rede de intrigas que derrubou seu amigo Franklin Martins da comunicação da campanha, das dificuldades do PT em fechar acordos partidários em Minas e no Rio e dos relatórios de monitoramento mostrando a vantagem dos bolsonaristas nas redes sociais.
Lula tornou-se mais controlador, participando de reuniões menores que antes eram relegadas a assessores, como as que decidem as peças de campanha de TV e a agenda de viagens. Em uma campanha presidencial, isso é insustentável.
Parte do problema é da nova postura centralizadora de Lula, mas parte é do mundo político. Todos querem falar com ele, e somente com ele, acreditando que nenhum outro petista tem autoridade para fechar acordos. Hoje, eles têm razão.
O ex-presidente decidiu não ter um coordenador do programa de economia, impedindo o surgimento de um candidato natural a ministro da Fazenda em um eventual terceiro mandato. Quando bancos e empresas convidam um representante do PT para palestrar, Lula indica a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, o senador Jacques Wagner, ex-ministros, como Guido Mantega, ou ainda os deputados federais Alexandre Padilha e Rui Falcão.
O ex-adversário e agora candidato a vice, Geraldo Alckmin, será o interlocutor junto ao agronegócio. Ao indicar tantos porta-vozes, Lula quer dizer que ninguém realmente fala em seu nome.
Nas palestras para o mercado financeiro, a primeira pergunta quase sempre é a mesma: "Qual Lula está voltando, o de 2003 ou o de 2007?". Na premissa dos executivos da Faria Lima, existe um "Lula bom", que montou um time fiscalista com Henrique Meirelles, Marcos Lisboa e Joaquim Levy no primeiro governo, e um "Lula mau", que deixou Guido Mantega e Dilma Rousseff tocarem a política econômica intervencionista a partir de 2007.
A pergunta soa anacrônica. O Lula de 2022 é diferente dos anteriores não apenas porque as condições são novas, mas especialmente porque o adversário é outro.
Jair Bolsonaro é o primeiro político de raiz popular que Lula enfrenta. Em 1989, Fernando Collor era um coronel político disfarçado de caçador de marajás. De 1994 a 2014, os candidatos do PSDB (mesmo José Serra, filho de feirantes) encarnavam o establishment, facilitando o discurso "nós contra eles" do marketing petista. Com Bolsonaro, isso não funciona.
O presidente saiu de uma família de classe média baixa no interior de São Paulo para subir de vida como oficial do Exército. Existe uma nítida estratégia de Bolsonaro em se mostrar como "gente como a gente", recusando a liturgia do cargo, vestindo camisetas pirateadas de clube de futebol e chinelos na biblioteca do Palácio do Alvorada. Uma definição comum nas pesquisas qualitativas sobre o presidente é que ele "é tosco, mas autêntico".
"Não vamos cair na disputa com a imagem do sujeito que passa leite condensado no pão. O Bolsonaro não é mais o candidato antissistema de 2018. Nosso debate vai ser com o presidente que não comprou vacinas a tempo, que colocou quase 120 milhões de pessoas sem garantia de ter comida no prato", previu o deputado Padilha.
Para muitos petistas, o retorno de 2022 podia ter vindo antes. No primeiro semestre de 2014, havia maioria no PT para substituir a candidatura da então presidente Dilma Rousseff. Por duas vezes, Lula foi consultado formalmente pelo partido se queria ser candidato.
Recusou, primeiro alegando que, como presidente no cargo, Dilma tinha a primazia, como justificou no livro-entrevista "A Verdade Vencerá". Depois, em tom meio sério, meio de blague, ele resumiu: "Não quero ser um Michael Schumacher", referindo-se ao heptacampeão de Fórmula 1, que, ao retornar às pistas, não repetiu a mesma performance dos anos de auge.
A candidatura de 2018 não valeu. Lula sabia que não teria autorização para ser candidato e usou a campanha como um escudo, sugestão vinda dois anos antes em uma conversa com o amigo e ex-presidente francês Nicolas Sarkozy. Convencido de que a Lava Jato era um processo político, não jurídico, Lula impôs ao STF e ao TSE o constrangimento de impedir o líder nas pesquisas de concorrer. "Eles puseram o bode na sala. Vão descobrir que esse bode vai feder e muito", repetia.
Fascinado pela vitória de Jaime Lerner à Prefeitura de Curitiba em 1988, quando ele se lançou candidato faltando 12 dias para o pleito, Lula intencionalmente adiou a sua renúncia para favorecer Fernando Haddad, formalmente seu vice na chapa em 2018. "Quanto mais perto do dia da eleição você assumir a candidatura, maior será a emoção e a transferência de votos", ensinava.
Haddad foi indicado candidato no último dia de prazo legal, faltando 26 dias para o pleito. Foi para o segundo turno, perdeu por quase 11 milhões de votos de diferença, mas o PT elegeu 54 deputados e quatro governadores.
Em uma conversa recente, Lula disse que, se tivesse aceitado a sugestão de vários amigos de se exilar antes da prisão, tanto a sua carreira quanto a do PT teriam acabado.
Lula e o PT vivem numa simbiose. Na definição do cientista político André Singer, no livro "Os Sentidos do Lulismo", os mandatos de 2003 a 2010 foram marcados por um "reformismo fraco", de forte ação estatal na redução da desigualdade social, mas sem atritos com o status quo.
A memória desses anos entre os mais pobres permitiu ao PT sobreviver ao mensalão, à recessão de 2014-16 e à Lava Jato. Quando Lula foi preso, porém, foi ele que precisou do PT. Os aliados de esquerda passaram a articular como seria o pós-Lula. Os da direita renegavam o passado.
A relação de Lula e o PT com a elite política e empresarial se esgarçou no governo Dilma, período que o marketing da campanha ainda não sabe como tratar.
O estremecimento de Lula com o establishment é tão forte que mesmo hoje, quando lidera todas as pesquisas, há menos empresários dispostos a declarar voto no petista que em 2002, quando o PT ainda era temido pelo radicalismo.
É impossível compreender o Lula de 2022 sem a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, com quem tem casamento marcado nesta semana. Vinte e um anos mais jovem, Janja é onipresente nas falas de Lula: nos discursos ("vocês têm que saber que um cara que tem 76 anos e está apaixonado só pode fazer o bem para esse país"), nas entrevistas ("estou apaixonado como se fosse minha primeira namorada") ou mesmo nas broncas ("eu podia estar com a Janja e estou aqui"). Ela incorporou questões de raça, gênero e meio ambiente ao discurso lulista.
Janja acompanhou de perto o flerte secreto que desaguou na maior novidade da campanha, o convite para que Geraldo Alckmin fosse candidato a vice do antigo adversário da eleição de 2006. Nos meses de conversas com Alckmin, Lula retomou sua característica mais marcante e menos compreendida na militância petista, a busca do acordo.
Acostumado aos tempos poderosos da Presidência, Lula subestimou a resistência do PT ao convite a Alckmin. Militante petista desde os anos 1980, Janja foi quem mostrou que a chegada de Alckmin precisava ser compensada com um discurso para agradar a esquerda. Por isso, Lula passou as últimas semanas chamando Bolsonaro de "fascista" e defendendo a revisão da reforma trabalhista.
Na biografia política "Lula and His Politics of Cunning" (Lula e sua política de astúcia), John D. French ressalta como a formação sindical foi a espinha dorsal do estilo Lula. O historiador americano argumenta que, como sindicalista sob o AI-5, Lula foi forjado em um ambiente de tensão em que era preciso abrir portas de diálogo com os adversários. Para quem negociou greves com generais, chamar Alckmin de "companheiro" é simples. Como dizia Tancredo Neves, outro líder de uma frente ampla, "ninguém vai ao Rubicão para pescar".
A volta é sempre um risco. Napoleão Bonaparte durou cem dias no seu retorno após fugir da ilha de Elba. Já Winston Churchill, acossado por duas décadas pelo fracasso militar no estreito de Dardanelos, na Primeira Guerra, era o símbolo de perdedor até se tornar primeiro-ministro do Reino Unido em 1940 e enfrentar Adolf Hitler.
No Brasil, Juscelino Kubitschek acreditava que o golpe de 1964 lhe daria a chance de uma nova disputa presidencial, mas nunca voltou ao poder. Leonel Brizola, por sua vez, voltou, mas seu lugar de líder popular foi tomado pelo próprio Lula.
Existe um tom de tragédia grega no retorno de Lula à campanha eleitoral, 16 anos depois de sua última disputa, 12 anos depois de sair consagrado da Presidência, seis anos depois do impeachment e quase três anos depois de sair da cadeia.
Lula volta à política como um Ulisses, que chega irreconhecível à Ítaca depois de anos de guerra e naufrágios. Na "Odisseia" de Homero, o reino estava tomado pelos pretendentes ao trono e à cama da rainha Penélope. Ulisses os derrota porque só ele consegue manejar o velho arco e flecha que deixara ao partir para a Guerra de Troia. Em 2022, Lula tentará provar que ele é o único candidato capaz de dobrar o arco das vontades populares. De novo.
Lula e o PT vivem numa simbiose. Na definição do cientista político André Singer, no livro "Os Sentidos do Lulismo", os mandatos de 2003 a 2010 foram marcados por um "reformismo fraco", de forte ação estatal na redução da desigualdade social, mas sem atritos com o status quo.
A memória desses anos entre os mais pobres permitiu ao PT sobreviver ao mensalão, à recessão de 2014-16 e à Lava Jato. Quando Lula foi preso, porém, foi ele que precisou do PT. Os aliados de esquerda passaram a articular como seria o pós-Lula. Os da direita renegavam o passado.
A relação de Lula e o PT com a elite política e empresarial se esgarçou no governo Dilma, período que o marketing da campanha ainda não sabe como tratar.
O estremecimento de Lula com o establishment é tão forte que mesmo hoje, quando lidera todas as pesquisas, há menos empresários dispostos a declarar voto no petista que em 2002, quando o PT ainda era temido pelo radicalismo.
É impossível compreender o Lula de 2022 sem a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, com quem tem casamento marcado nesta semana. Vinte e um anos mais jovem, Janja é onipresente nas falas de Lula: nos discursos ("vocês têm que saber que um cara que tem 76 anos e está apaixonado só pode fazer o bem para esse país"), nas entrevistas ("estou apaixonado como se fosse minha primeira namorada") ou mesmo nas broncas ("eu podia estar com a Janja e estou aqui"). Ela incorporou questões de raça, gênero e meio ambiente ao discurso lulista.
Janja acompanhou de perto o flerte secreto que desaguou na maior novidade da campanha, o convite para que Geraldo Alckmin fosse candidato a vice do antigo adversário da eleição de 2006. Nos meses de conversas com Alckmin, Lula retomou sua característica mais marcante e menos compreendida na militância petista, a busca do acordo.
Acostumado aos tempos poderosos da Presidência, Lula subestimou a resistência do PT ao convite a Alckmin. Militante petista desde os anos 1980, Janja foi quem mostrou que a chegada de Alckmin precisava ser compensada com um discurso para agradar a esquerda. Por isso, Lula passou as últimas semanas chamando Bolsonaro de "fascista" e defendendo a revisão da reforma trabalhista.
Na biografia política "Lula and His Politics of Cunning" (Lula e sua política de astúcia), John D. French ressalta como a formação sindical foi a espinha dorsal do estilo Lula. O historiador americano argumenta que, como sindicalista sob o AI-5, Lula foi forjado em um ambiente de tensão em que era preciso abrir portas de diálogo com os adversários. Para quem negociou greves com generais, chamar Alckmin de "companheiro" é simples. Como dizia Tancredo Neves, outro líder de uma frente ampla, "ninguém vai ao Rubicão para pescar".
A volta é sempre um risco. Napoleão Bonaparte durou cem dias no seu retorno após fugir da ilha de Elba. Já Winston Churchill, acossado por duas décadas pelo fracasso militar no estreito de Dardanelos, na Primeira Guerra, era o símbolo de perdedor até se tornar primeiro-ministro do Reino Unido em 1940 e enfrentar Adolf Hitler.
No Brasil, Juscelino Kubitschek acreditava que o golpe de 1964 lhe daria a chance de uma nova disputa presidencial, mas nunca voltou ao poder. Leonel Brizola, por sua vez, voltou, mas seu lugar de líder popular foi tomado pelo próprio Lula.
Existe um tom de tragédia grega no retorno de Lula à campanha eleitoral, 16 anos depois de sua última disputa, 12 anos depois de sair consagrado da Presidência, seis anos depois do impeachment e quase três anos depois de sair da cadeia.
Lula volta à política como um Ulisses, que chega irreconhecível à Ítaca depois de anos de guerra e naufrágios. Na "Odisseia" de Homero, o reino estava tomado pelos pretendentes ao trono e à cama da rainha Penélope. Ulisses os derrota porque só ele consegue manejar o velho arco e flecha que deixara ao partir para a Guerra de Troia. Em 2022, Lula tentará provar que ele é o único candidato capaz de dobrar o arco das vontades populares. De novo.
Sobre o autor
Jornalista, analista político e pesquisador da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, foi porta-voz da Presidência da República e ministro da Secretaria de Comunicação Social de 2011 a 2014 (gestão Dilma Rousseff, PT). Autor de "O Pior Emprego do Mundo", sobre ministros da Fazenda
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