O presidente brasileiro já afirmou que a democracia naufragará onde reina a desigualdade. Hoje, ele vê o combate à desigualdade como a missão que impulsiona a democracia.
André Pagliarini
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Lula se reúne com líderes sindicais poloneses e brasileiros em 1981. (Wojtek Laski/ Getty Images) |
O Brasil completou quatro décadas de governo civil democrático no início deste ano. De 1964 a 1985, a maior nação da América Latina foi governada por generais que tomaram e exerceram o poder ilegalmente em nome do anticomunismo. No início da década de 1980, diante de uma crise econômica, agitação social e crescente opróbrio no exterior, as autoridades militares buscaram desmantelar gradualmente o regime em seus próprios termos. Eles concederam uma ampla anistia em benefício próprio e permitiram o retorno da democracia multipartidária, inaugurando uma era de proliferação desenfreada de partidos e disputas partidárias acirradas que aprofundaram o caráter democrático do Brasil, ao mesmo tempo em que permitiram que o regime cessante evitasse enfrentar uma oposição unificada. Foi nesse momento que nasceu o Partido dos Trabalhadores (PT).
Em 1985, Tancredo Neves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido que havia sido o único partido de oposição sancionado durante a ditadura, foi eleito indiretamente como o primeiro presidente civil do país em 21 anos. Neves era um senador experiente com sólidas credenciais antiditadura, mas um momento de triunfo se transformou em luto quando adoeceu e morreu antes de tomar posse, deixando o poder nas mãos de seu companheiro de chapa, José Sarney, um aliado de longa data do regime militar. A liderança de Sarney reacendeu dúvidas sobre quão real ou duradoura seria a transição democrática no Brasil. Foi nesse clima de incerteza que Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder sindical central na formação do PT e já uma das vozes mais expressivas da esquerda, consolidou-se como um dos principais defensores do potencial transformador da democracia.
Em uma entrevista de 1985, Lula foi questionado se o novo sistema democrático brasileiro estava trazendo mudanças reais para a classe trabalhadora. Cético em relação à transição estreita e impulsionada pela elite então em curso, Lula criticou a ideia de que a simples realização de eleições bastava. "Você acha que o zelador do seu jornal desfruta da mesma democracia que você", perguntou ele ao entrevistador, "só porque vocês dois vivem sob o mesmo regime?" Quando o entrevistador respondeu que, formalmente, sim — o voto de cada um conta da mesma forma —, Lula rebateu. "Não", disse ele, "democracia não é apenas o direito ao voto. Democracia é o direito à vida". As profundas desigualdades no Brasil, argumentou ele, significavam que os benefícios tangíveis da democracia se estendiam apenas a uma pequena porcentagem da população. A promessa de igualdade, mobilidade social e participação política efetiva era, em grande parte, irrelevante para os pobres e a classe trabalhadora. Não se poderia dizer que existisse democracia nessas condições, insistiu Lula.
Quarenta anos depois, Lula cumpre seu terceiro mandato como presidente, após liderar o país de 2003 a 2011. Em sua trajetória de retorno, em 2022, ele concorreu como o rosto de uma frente pró-democracia que visava defender a ordem institucional imperfeita do país contra o ataque reacionário de Jair Bolsonaro. Lula comparou recentemente o progresso cívico do Brasil nas últimas quatro décadas às revoltas radicais do século XX. Enquanto as revoluções russa e cubana foram lideradas não por trabalhadores, mas por "intelectuais, ativistas políticos, estudantes", no Brasil "os trabalhadores podiam organizar um partido e chegar à presidência da República". Essa conquista "não estava no calendário político", afirmou. "E é por isso que valorizo tanto a democracia." Ao longo de quatro décadas, o compromisso de longa data do presidente com a soberania popular permaneceu constante, mesmo com as mudanças no cenário político ao seu redor. Ele não parece mais ter certeza de que a democracia fracassará onde reina a desigualdade. Em vez disso, ele argumenta que combater a desigualdade é a missão que impulsiona a democracia.
A democracia enfrentará outro teste na corrida presidencial brasileira no próximo ano. Uma das questões centrais da política brasileira hoje — uma questão que assombra o país desde o fim do regime militar — é se a própria natureza da ordem democrática do país permite a persistência de ameaças autoritárias. Construído por meio de concessões mútuas, o sistema pós-autoritário priorizou a estabilidade em detrimento da transformação, resultando em instituições que são procedimentalmente democráticas, mas estruturalmente conservadoras. E embora Lula tenha conquistado uma boa vontade sem precedentes de amplas camadas da população durante seu primeiro mandato, um período em que a desigualdade caiu e a economia cresceu, os anos seguintes foram caracterizados por crises. A competição eleitoral ocorreu em um cenário de crescente desconfiança nas instituições e dificuldades econômicas, condições propícias para o tipo de política antissistema que levou Bolsonaro ao poder em 2018.
Montar uma ampla frente contra o bolsonarismo foi o eixo central da campanha de Lula em 2022. Isso o ajudou a vencer, mas criou uma estrutura muito difícil para governar. Como resultado, seu terceiro mandato não conseguiu trazer muitas inovações políticas importantes, além de uma reforma tributária que iludiu os presidentes por anos e outras conquistas relativamente pequenas. Este governo tem sido definido por uma frustração e uma atitude defensiva que contrastam fortemente com o dinamismo político de seus dois primeiros mandatos. O principal apelo de Lula para a corrida eleitoral do próximo ano será o fato de ter defendido inequivocamente o Estado de Direito, mas não ter conseguido conquistar grandes vitórias para a classe trabalhadora.
Lula tornou-se um grande estadista ao se dedicar ao processo de construção das instituições brasileiras ao longo de várias décadas. A transição do regime militar na década de 1980 e os anos desde sua eleição para um terceiro mandato em 2022 são dois dos períodos mais cruciais desse projeto. Eles revelam que foi a capacidade de Lula de conferir significado popular à máquina e aos procedimentos da democracia formal – vinculando o processo democrático à melhoria material e à inclusão social – que lhe permitiu obter apoio político duradouro.
Essa abordagem sempre esteve enraizada em uma crença otimista no poder da ação coletiva, mas também implica uma disposição para explorar a indignação justificada. Durante a primeira metade de seu terceiro mandato, esta última esteve amplamente ausente da retórica de Lula. Isso mudou no início de julho, quando o presidente dos EUA, Donald Trump, publicou uma carta a Lula em sua conta no Truth Social ameaçando uma guerra comercial como resultado da acusação do governo brasileiro contra Bolsonaro por prejudicar as eleições de 2022 e da insistência do governo de que as empresas de mídia social americanas que operam no Brasil cumpram as leis locais (Trump e seus aliados consideram isso uma forma inaceitável de censura). De repente, Lula tem uma mensagem galvanizadora para unificar os brasileiros de todos os tipos: o Brasil é uma nação soberana que não se deixa dominar.
Embora ainda não se saiba como essa disputa se desenrolará a longo prazo, a experiência anterior de Lula o equipou com as habilidades e a credibilidade para se manter firme em defesa da democracia brasileira. À medida que o país se prepara para as eleições de 2026, nas quais Lula pretende concorrer novamente à presidência, ele se destaca como um corajoso defensor da soberania do Brasil. Essa reputação, porém, por si só, pode não ser suficiente para proteger a ordem democrática do país de novas ameaças futuras.
O arrivista
Em 1964, com o apoio ativo do governo Lyndon B. Johnson, os militares brasileiros tomaram o poder político no Brasil. Dois anos depois, Lula começou a trabalhar como torneiro mecânico nas Indústrias Villares, uma das principais metalúrgicas do país, localizada na periferia industrial de São Paulo. Ao contrário de seu irmão mais velho, que era membro do Partido Comunista, Lula não se interessava por política. Era uma época perigosa para a militância e profundamente desmotivadora para a política formal, limitada como estava pela mão pesada dos generais no poder. Como ele próprio admitiu, o jovem Lula estava muito mais interessado em namorar e cultivar amizades com outros trabalhadores.
A política no local de trabalho também não era especialmente envolvente para o futuro presidente. Lula via o Sindicato dos Metalúrgicos como insensível e essencialmente conservador, uma relíquia de uma geração muito mais velha, satisfeita em ter qualquer representação. No entanto, a pedido do irmão, ele concorreu a contragosto e conquistou um pequeno cargo na administração do sindicato no final da década de 1960. Gradualmente, passou a ver o sindicato como uma ferramenta para defender os interesses dos trabalhadores em uma economia que produzia taxas de crescimento astronômicas sem salários dignos. Seus aguçados instintos políticos e seu carisma natural permitiram que prosperasse como líder e, em 1975, foi eleito presidente de sua influente agremiação local, representando mais de 100.000 trabalhadores.
À medida que a economia começou a desacelerar no final da década de 1970, tornou-se cada vez mais claro para trabalhadores e líderes sindicais que o regime militar estava sistematicamente subnotificando a inflação para evitar o reajuste salarial — uma política conhecida como arrocho salarial —, o que alimentou a radicalização do movimento trabalhista. Em 1977, um artigo em um grande jornal proclamava o surgimento de um "novo sindicalismo em São Bernardo". O Novo Sindicalismo tornou-se uma abreviação para o movimento trabalhista mais assertivo, autônomo e abertamente político que Lula passou a encarnar à medida que ascendia à proeminência nacional. Ele criticou duramente a estrutura corporativista do trabalho organizado herdada de Getúlio Vargas, que governou o Brasil inicialmente como ditador de 1930 a 1945 e depois como presidente eleito de 1951 até seu suicídio em 1954. Para Lula, os desafios enfrentados pelos trabalhadores não começaram com o golpe militar de 1964, mas com a Revolução de 1930, que levou Vargas ao poder.
Como porta-voz do Novo Sindicalismo, Lula convocou uma geração de líderes trabalhistas — muitos dos quais não eram oriundos da base industrial — que priorizavam manter relações amistosas com a administração ou as elites políticas em vez de defender os direitos e interesses de seus membros. Essa crítica, frequentemente ignorada na biografia de Lula, moldou diretamente sua identidade política, levando-o a abraçar a criação de um partido político dos, pelos e para os trabalhadores, em vez dos burocratas que há muito dominavam os partidos que alegavam falar em nome dos trabalhadores, entre eles o Partido Trabalhista Brasileiro de Vargas. A próxima etapa foi desafiar o sistema autoritário instaurado pela ditadura.
Em 1978, aos 32 anos, Lula liderou uma greve massiva de metalúrgicos na periferia industrial de São Paulo para protestar contra as péssimas condições de trabalho e as políticas antitrabalhistas da ditadura. Paralisações semelhantes se seguiram em 1979 e 1980. A onda de greves se espalhou para as fábricas de automóveis, e Lula se tornou uma figura nacional na luta pela restauração da democracia brasileira. Entrevistado em 1978, ele enquadrou sua ascensão como inseparável de sua origem de classe. Como líder sindical, ele simplesmente disse "o que qualquer trabalhador gostaria de dizer se estivesse diante de um microfone". Sua insistência em ser um trabalhador em primeiro lugar, não melhor do que seus pares, apesar de todo o poder de seu cargo, tornou-se uma parte duradoura e potente de seu apelo político. Lula alegou que sua lealdade aos trabalhadores não era ideológica, mas baseada em princípios. "A classe trabalhadora nunca deve ser um instrumento", disse ele. Em vez disso, como a maioria do país, a classe trabalhadora deve ser tratada como "uma força viva com uma voz real". (A desindustrialização do Brasil nas últimas décadas enfraqueceu o poder relativo dos sindicatos, tornando essa voz um tanto menos perceptível. Lula perdura como um ícone — os críticos diriam uma relíquia — de um período anterior de dramático empoderamento dos trabalhadores.)
Lula também se inseriu em um campo mais amplo de críticas ao sistema trabalhista corporativista herdado de Vargas. "Acredito que o movimento trabalhista antes de 1964 era usado muito politicamente", disse ele em 1978. "Eles provavelmente faziam muita política em vez de realmente defender os trabalhadores." Lula prometeu um caminho diferente, apresentando-se como um dos novos líderes trabalhistas "dispostos a fazer qualquer sacrifício em defesa da classe trabalhadora que representam". Sua identidade política inicial era singularmente focada na defesa da importância econômica dos trabalhadores industriais.
O compromisso de Lula com a democracia no local de trabalho o inspirou a enfrentar o autoritarismo da política nacional, um sistema que Lula insistia que nunca traria ganhos materiais para os trabalhadores. Quando a ditadura decretou o retorno do multipartidarismo em 1979 — uma tática destinada a dividir um campo de oposição revigorado pelo Novo Sindicalismo após a destruição violenta da esquerda armada — Lula e outros concluíram que os trabalhadores precisavam de um partido político próprio para defendê-los em um sistema que historicamente pouco se importava com sua contribuição. Eles formaram o PT, que rapidamente se tornou um veículo não apenas para protestos, mas também para participação eleitoral.
Como líder sindical e político, Lula desempenhou um papel salutar na onda democratizante que abalou o Brasil na década de 1980 e derrubou a ditadura militar. Ele ajudou a garantir que os trabalhadores fossem parte visível de uma coalizão que unia trabalhadores, estudantes, clérigos e elites desiludidas em torno da demanda por democracia. De fato, o que tornou essa coalizão eficaz foi sua capacidade de combinar ruptura popular com pressão institucional, sem exigir pureza ideológica de todos os participantes.
Ao longo das décadas de 1980 e 1990, Lula, juntamente com muitos outros, transformou o PT em uma força nacional. Ele emergiu como o líder mais visível do partido, percorrendo o país para articular uma visão de governança que mesclava ativismo popular com engajamento no processo político formal. O futuro presidente ajudou a conduzir a transição democrática do Brasil como deputado federal na Assembleia Constituinte de 1988, onde defendeu proteções sociais e direitos trabalhistas mais fortes na nova Constituição. Candidatou-se à presidência e perdeu três vezes — em 1989, 1994 e 1998 — moderando gradualmente sua plataforma e expandindo sua coalizão sem abandonar seus compromissos centrais. Ele estendeu sua visão política para além dos direitos trabalhistas, abraçando uma agenda social enraizada na justiça econômica, na reforma institucional e na democracia participativa.
O estadista ancião
Quase cinquenta anos depois de se tornar uma figura nacional, Lula continua sendo um ícone de governança progressista pragmática em uma cultura política teimosamente conservadora. Como presidente de 2003 a 2011, ele liderou o crescimento econômico que reduziu drasticamente a pobreza extrema. Quando Lula deixou o cargo com 83% de aprovação e entregou o poder a Dilma Rousseff, sua sucessora escolhida e a primeira mulher do Brasil a ocupar o cargo, a democracia brasileira era muito mais estável e inclusiva do que quando o PT foi fundado. A solidez institucional parecia prometer que o país continuaria sua lenta, mas constante, ascensão rumo à influência global. O que se seguiu, em vez disso, foi uma onda reacionária contra as forças políticas progressistas — especialmente o PT de Lula — que levou à destituição arbitrária de Dilma Rousseff do cargo, à prisão de Lula por um juiz partidário sob acusações de corrupção e à eleição de Jair Bolsonaro, um extremista de direita que ameaçou a ordem democrática do país como nenhum líder havia feito desde a ditadura.
Após quase uma década de conquistas para a direita, a história mudou abruptamente mais uma vez. As acusações contra Lula foram anuladas em 2021, após ficar claro que o juiz que presidia o caso estava em conluio com a promotoria, e ele estava livre para lançar sua sexta candidatura presidencial em 2022. (A lei brasileira determina que os presidentes podem exercer apenas dois mandatos consecutivos, mas podem fazê-lo várias vezes.) Construído a partir da indignação com a liderança incompetente de Bolsonaro, Lula montou a maior coalizão de sua carreira; mais de uma dúzia de partidos o apoiaram, contra os cinco de Bolsonaro. A abordagem da disputa como uma escolha binária entre democracia e autoritarismo repercutiu no centro político e na centro-direita do país, não apenas na esquerda. "Há muitas pessoas que nunca fizeram parte do PT e que participaram do meu governo. E é assim que será", afirmou Lula. "Não será um governo do PT, será um governo do povo brasileiro."
Lula venceu com 60 milhões de votos contra 58 milhões de Bolsonaro. Foi a eleição mais disputada que ele já havia vencido — dificilmente o golpe decisivo contra a extrema direita que muitos esperavam. E, apesar de presidir uma resposta calamitosa à pandemia e receber condenação universal pelo desmatamento da Amazônia, Bolsonaro ajudou a eleger vários aliados importantes em diferentes níveis de governo. Mesmo na derrota, ele demonstrou uma força surpreendente, e sua base permaneceu comprometida. Como disse o historiador Carlos Fico, um dos principais estudiosos da ditadura: “Os anos Bolsonaro foram uma espécie de choque de realidade para aqueles que consideravam a sociedade brasileira muito afinada com os princípios democráticos. Isso é o que chamamos de autoritarismo socialmente existente. Há uma parcela significativa, cerca de 20%, que concorda com um perfil político autoritário que desvaloriza os direitos humanos.”
Em 8 de janeiro de 2023, uma semana após a posse de Lula, apoiadores de Bolsonaro organizaram uma insurreição em Brasília, gerando comparações instantâneas com a invasão do Capitólio dos EUA dois anos antes. Enfurecidos pela derrota de Bolsonaro, manifestantes vestidos com as cores nacionais invadiram importantes prédios do governo e causaram milhões de dólares em danos. Lula rapidamente enquadrou a insurreição como um ataque à democracia e, por extensão, à agenda sociopolítica e econômica que defendia. Em seu discurso à nação logo após os protestos, Lula afirmou que a multidão foi quase certamente paga em parte por atores ligados ao desmatamento na Amazônia, o que uma investigação jornalística subsequente confirmou. Desde então, ficou claro o quão longe as conspirações antidemocráticas chegaram após a eleição de Lula. Lula tem perseguido obstinadamente acusações contra Bolsonaro e seus apoiadores, e o ex-presidente pode muito bem acabar atrás das grades por sua participação na insurreição. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil proibiu Bolsonaro de concorrer à presidência em 2026. Mas Lula deveria passar mais de uma década na prisão, em vez dos 580 dias que realmente cumpriu antes de vencer outra eleição presidencial. O perigo do bolsonarismo não se dissipou.
O legado de Lula
No dia seguinte à insurreição, Lula reafirmou que a democracia não era um ideal abstrato, mas o único caminho viável para enfrentar a extrema desigualdade no Brasil. Ele argumentou que garantir a todos os brasileiros uma vida digna, incluindo coisas tão básicas quanto refeições regulares, depende da sobrevivência e do aprofundamento das instituições democráticas. Isso está no cerne de como Lula há muito define a própria democracia: não apenas como um jogo de salão processual, mas como um mecanismo para proporcionar benefícios tangíveis às pessoas. Mas se em períodos anteriores Lula lançou programas expansivos e transformadores como o Bolsa Família, o ProUni e o Minha Casa, Minha Vida — políticas que revolucionaram a assistência social ao fornecer apoio financeiro direto às famílias pobres, expandiram o acesso ao ensino superior por meio de bolsas de estudo e aumentaram as oportunidades de moradia acessível para brasileiros de baixa renda — seu governo agora precisa se basear amplamente em gestos simbólicos e mensagens direcionadas para angariar apoio em torno de medidas redistributivas modestas.
À medida que o ciclo da campanha presidencial se intensifica, Lula pode destacar conquistas materiais como um aumento real do salário mínimo (acima da inflação), desemprego em níveis recordes e um aumento nos impostos sobre os brasileiros mais ricos, a fim de isentar indivíduos com renda de até R$ 5.000 por mês do pagamento de imposto de renda. Essas são políticas substanciais, em um contexto definido pela esclerose política polarizada, mas representam pequenas vitórias quando comparadas ao conjunto de políticas transformadoras implementadas por governos anteriores do PT.
Há uma escassez de novas ideias políticas ambiciosas e criativas no PT desde 2023, o que demonstra as limitações deste momento. Lula tem se frustrado frequentemente em suas negociações com um Congresso profundamente fragmentado, que é muito mais poderoso hoje do que quando Lula assumiu o cargo. O Congresso também é dominado por interesses conservadores e por uma safra abundante de agitadores de direita, eleitos em grande parte para atrapalhar o andamento do processo. Nenhum partido detém a maioria, tornando as alianças instáveis e ainda mais transacionais do que o normal. Esse cenário político incentivou legisladores individuais, como nunca antes, a priorizar interesses locais ou partidários em detrimento de itens da agenda nacional. Um dos principais impulsionadores dessa mudança foi o surgimento de emendas impositivas, ou emendas orçamentárias, que os legisladores agora podem aprovar e executar de forma independente, forçando o Executivo a desembolsar recursos públicos a seu critério, com quase nenhuma transparência. O problema foi agravado pelo uso, por Bolsonaro, do opaco orçamento secreto para consolidar um poderoso bloco conservador no Congresso, enfraquecendo a responsabilização democrática e privando seu sucessor das ferramentas institucionais necessárias para governar com eficácia. É um de seus legados mais prejudiciais.
O Congresso também forçou Lula a reduzir ou abandonar várias de suas iniciativas. Por exemplo, um componente importante de sua agenda para o terceiro mandato tem sido um impulso renovado por "justiça social" por meio da reforma tributária — especificamente, aumentando as alíquotas para os ricos e plataformas de apostas online para financiar isenções fiscais para pessoas de baixa renda e classe média. Embora o Executivo tenha enquadrado tais medidas como uma redistribuição necessária, o Congresso resistiu, chegando a anular um decreto presidencial que aumentava modestamente o imposto sobre transações financeiras. Essa derrota provocou não apenas a frustração pública de Lula, mas também a decisão bem-sucedida de contestar o legislativo na Justiça. Até este ano, o governo havia conseguido trabalhar surpreendentemente bem com os líderes legislativos em certas questões com ampla adesão, como a necessidade de um código tributário mais simples. À medida que o governo pressionava sobre temas mais espinhosos este ano, antes da temporada de campanha, no entanto, o relacionamento se tornou muito menos produtivo.
Dentro do PT, há debates intensos sobre o que fazer em seguida, destacados pela recente eleição para definir o novo líder do partido. Muitos no PT apoiam a abordagem de governança de Lula como uma defesa necessária contra a direita. Fernando Haddad, que foi ministro da Educação durante o primeiro governo Lula e ministro da Fazenda no segundo, descreveu a estratégia do presidente como "uma coalizão para evitar um mal maior". Alguns candidatos à liderança nacional, por outro lado, argumentaram que a estratégia de Lula corre o risco de alienar seus principais apoiadores. Valter Pomar, Romênio Pereira e o ex-líder do PT Rui Falcão alertaram que, a menos que o governo mude bruscamente de rumo e adote uma postura de esquerda mais agressiva, poderá enfrentar uma derrota em 2026. Eles pediram ao governo que suavize seu compromisso com um orçamento equilibrado, invista mais em uma gama mais ampla de programas públicos e intensifique a retórica contra os oponentes do governo.
Edinho Silva, o candidato preferido de Lula para liderar o partido, argumentou que o presidente é "refém de um Congresso movido por verbas públicas", sugerindo que as dificuldades do governo refletem restrições institucionais mais profundas. Mas Silva, eleito como novo líder do PT em 7 de julho, insistiu que o partido deve continuar a se aproximar de elementos mais conservadores no Congresso para recompor a estratégia de frente ampla que obteve sucesso em 2022. Em jogo não está apenas a visão de como o governo Lula deve prosseguir no próximo ano para conquistar mais um mandato, mas também como garantir a sobrevivência do partido a curto prazo e a renovação a longo prazo.
Talvez a única conclusão segura a se tirar do legado de Lula neste momento, então, seja que ele se posicionou ao lado da democracia institucional contra os caprichos do autoritarismo quando este mais importava. Isso pode parecer insignificante para os críticos de sua esquerda, mas não é algo que se possa dizer de muitos líderes latino-americanos de esquerda desde o fim da Guerra Fria. Até o final de 2026, o PT de Lula terá governado o Brasil por um total combinado de quase vinte anos, gerando ganhos reais na redução da pobreza e um compromisso consistente com as instituições democráticas; milhões de brasileiros se beneficiaram materialmente ao longo desse período, com pouquíssimos piorando a situação. O mesmo não pode ser dito, por exemplo, da Venezuela sob o chavismo ou da Nicarágua de Daniel Ortega. De fato, a campanha de reeleição de Lula quase certamente enfatizará a longa duração do PT no poder, argumentando que as pessoas estão em melhor situação quando o partido está no poder. Cuidar das instituições democráticas é fundamental para aqueles que desejam servir ao bem comum.
Não está claro se isso será suficiente para vencer em 2026. Os eleitores provavelmente compararão sua situação atual com o que acreditam que poderia ser, em vez de com o que era há duas décadas. Apesar dos números econômicos sólidos, os índices de aprovação de Lula atingiram o ponto mais baixo que ele já registrou em meados de 2025. Ao se defender da direita, ele, na verdade, estreitou os limites do que parece politicamente imaginável. A tarefa à frente pode exigir mais confronto com interesses poderosos, não menos. Encontrar uma maneira de tornar tal movimento politicamente viável — e fazê-lo respeitando as normas democráticas — é uma tarefa árdua, mas que deve estar no cerne do PT daqui para frente.
Ironicamente, a ajuda pode vir de fora. Em um contexto de impasse interno e ganhos legislativos limitados, a ameaça de guerra comercial de Trump contra o Brasil redefiniu inesperadamente o tabuleiro de xadrez político a favor de Lula. A imposição iminente de tarifas e o aumento das tensões comerciais deram a ele uma ameaça externa em torno da qual reunir o sentimento nacionalista e unificar uma coalizão dividida. Lula se recusou categoricamente a romper a ordem institucional brasileira para satisfazer Trump. Mas agora ele se parece menos com o zelador pragmático de uma ordem pós-Bolsonaro e mais com seu antigo eu combativo, denunciando as elites globais e defendendo a classe trabalhadora contra agressões econômicas estrangeiras. Ele está explorando uma nova fonte de energia popular, e pesquisas preliminares sugerem que isso já está rendendo frutos.
Mais do que apenas um impulso político, a guerra comercial oferece uma chance de reformular os desafios de sua presidência, não como uma caminhada lenta por um campo minado legislativo, mas como uma luta para proteger os meios de subsistência dos brasileiros comuns de danos externos. O contraste com Trump, profundamente impopular no Brasil, aguça a imagem de Lula em casa e no exterior. Contra o valentão autoritário e corrupto em Washington, Lula é o defensor progressista que defende a justiça e a prosperidade compartilhada. Afinal, a democracia não sobrevive apenas de nostalgia. Ela precisa provar seu valor em tempo real, especialmente para aqueles que menos têm. O trabalho de Lula não terminou.
André Pagliarini é professor assistente de história e estudos internacionais na Universidade Estadual da Louisiana, membro do Escritório do Brasil em Washington e especialista não residente do Instituto Quincy para a Gestão Responsável de Políticas. Seu livro "Lula: Um Presidente Popular e a Luta pelo Futuro do Brasil" será lançado neste outono pela Polity.
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