Branko Marcetic
Um membro das Forças Especiais Ucranianas segura um cassete de míssil russo que carregava bombas de fragmentação. (Carolyn Cole/Los Angeles Times via Getty Images) |
Tradução / Depois da decisão de encher o leste da Ucrânia com munições tóxicas de urânio empobrecido, a administração Biden aprovou outra ideia terrível que, dizem, vai beneficiar os ucranianos comuns: o fornecimento e uso de bombas de fragmentação nas regiões orientais do país.
Há uma razão pela qual 123 países, incluindo 70% dos aliados da NATO e a Suécia, aspirante a membro, assinaram uma convenção internacional que proíbe as bombas de fragmentação, com leis norte-americanas a proibir mesmo o governo de as fornecer ou produzir: são terríveis, há décadas que mutilam crianças e outros inocentes, mesmo depois do fim dos combates.
As munições de fragmentação são uma daquelas invenções tão diabólicas que qualquer pessoa pensa duas vezes sobre se o desenvolvimento da inteligência humana foi realmente uma boa ideia: um projétil que se divide no ar em centenas e até milhares de explosivos menores espalhando-se por uma área tão grande quanto vários campos de futebol, explodindo ao pousarem. A sua alta taxa de insucesso de detonação garante que, se não matarem ou desmembrarem alguém ao serem disparadas, vão certamente matar ou ferir anos depois, quando alguém tiver o azar de tropeçar nelas.
Estas bombas ainda hoje continuam a matar e a ferir no Laos, onde milhões de bombas de fragmentação não detonadas, resquícios da guerra dos Estados Unidos no Vietname, continuam espalhadas pelos campos, com 75% das vítimas a serem crianças. No Kosovo, onde também foram usadas pelas forças da NATO, as vítimas tinham quase cinco vezes mais probabilidade de ter menos de 14 anos. 40% das baixas causadas por estas munições na Síria também são crianças, representando 80% das mais de quatro mil baixas registadas entre 2010 e 2019.
Os líderes norte-americanos e os seus aliados sabem bem que as munições de fragmentação ultrapassam as principais linhas éticas, já que no início da guerra na Ucrânia condenaram, com razão, o uso terrível destas munições pela Rússia. Quando um jornalista perguntou à ex-secretária de Imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, sobre se esta era uma linha vermelha e “quanta violência seria tolerada contra civis”, Psaki respondeu que “seria potencialmente um crime de guerra”. A embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield, disse que estas bombas “não têm lugar no campo de batalha”.
No meio da invasão, o governo britânico pediu que se pusesse termo ao seu uso, apontando para o que a Rússia estava a fazer na Ucrânia. As autoridades ucranianas também disseram que Moscovo tinha “ignorado as regras da guerra” e que estava a “aplicar meios e métodos proibidos” ao depender destes projéteis.
Mas, subitamente, surgiram números a explicar o porquê de não ser nada demais encher-se o solo ucraniano com mais armas deste tipo, amplamente proibidas e mutiladoras de crianças, numa guerra que deveria promover a causa dos direitos humanos e das “regras internacionais".
“Do ponto de vista prático, o presidente fez a coisa certa”, disse recentemente à CNN o aposentado tenente-coronel do Exército dos EUA Alexander Vindman. “Estão a ser destacadas para o seu território. Eles [ucranianos] vão ter cuidado com elas.”
O conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, fez eco dessa afirmação garantindo que “a Ucrânia deu garantias por escrito de que as usará de forma muito cuidadosa” para minimizar os riscos de atingir civis. Mas as forças ucranianas já demonstraram disposição para usar bombas de fragmentação de uma forma que põe em risco os civis.
A Human Rights Watch, que documentou e condenou o uso bombas de fragmentação pelas forças russas nesta guerra, compilou vários casos em que as forças ucranianas feriram civis nas regiões orientais do país. Tanto durante esta guerra quanto antes de 24 de fevereiro de 2022, quando Kiev lutava uma guerra civil contra a região do Donbass controlada pelos separatistas. O The New York Times também o fez quando investigou um ataque, em março, ao que era então a vila de Husarivka, controlada pelos russos. Concluiu que as tropas ucranianas quase certamente dispararam um míssil de fragmentação contra um bairro residencial.
As garantias escritas significam pouco quando a liderança ucraniana já violou repetidamente as suas promessas aos Estados Unidos. Já sabíamos que Washington não estava satisfeita com os ataques que Kiev fez dentro das fronteiras russas e em território que Moscovo considera seu, incluindo o atentado suicida na ponte Kerch, e, pelo menos de acordo com as secretas ocidentais, a destruição do gasoduto Nord Stream 2.
Uma reportagem recente do jornalista William Arkin, da revista Newsweek, ilustra o quão preocupante é a situação, pitando Washington como incapaz de controlar uma liderança ucraniana cada vez mais inclinada para aceitar riscos. Um responsável norte-americano disse ser claro que “Zelensky também não tem controlo total sobre o seu próprio exército ou não quer saber de certas ações”. “Na minha humilde opinião, a CIA não consegue entender a natureza do Estado ucraniano e as fações imprudentes que existem no seu seio”, disse um funcionário do governo polaco a Arkin.
Por outras palavras, há poucos motivos para acreditar que essas bombas serão usadas de forma “responsável”, de uma forma que não cause vítimas civis, se isso é sequer possível com uma arma tão indiscriminada nos seus danos. Parece mais provável que aconteça na Ucrânia a mesma coisa que aconteceu em todos os outros lugares em que as bombas de fragmentação foram usadas: civis a suportar o peso da carnificina durante e depois da guerra.
Felizmente, a contestação a esta ideia está a crescer. A representante do “esquadrão” democrata Ilhan Omar apresentou uma emenda à Lei de Autorização de Defesa Nacional de 2023, o que bloquearia a transferência de munições de fragmentação para a Ucrânia, dizendo que, se os Estados Unidos se querem posicionar como líder dos direitos humanos, “não devem participar de violações de direitos humanos”. A emenda teve recentemente o seu primeiro co-signatário republicano.
A congressista Barbara Lee (democrata da Califórnia), que votou sozinha contra a Guerra no Afeganistão e que concorre agora ao Senado, também alertou para o risco de se perder “a liderança moral”, caso a administração prosseguisse com a transferência, acrescentando que as munições de fragmentação “nunca devem ser usadas”. Estes congressistas foram dois dos 19 progressistas da Câmara que emitiram uma declaração conjunta a opor-se à decisão, enfatizando “não existir bombas de fragmentação seguras”.
Resta saber se os seus esforços funcionarão. Mas, entre a oposição de esquerda no Congresso, há críticas generalizadas a grupos de direitos humanos e até mesmo a aliados dos Estados Unidos, como o Reino Unido e o Canadá, por se recusarem a dar o seu apoio público à decisão, dando a entender que a administração Biden está mais isolada que nunca desde o início da guerra. Isto faz com que haja a possibilidade de a decisão ser revertida.
Aconteça o que acontecer, esta situação é em parte consequência direta da decisão errada assumida logo no início da guerra e reforçada nos meses seguintes: abandonar a diplomacia e rejeitar as tentativas de se negociar o fim da guerra e, em vez disso, procurar a vitória militar total no campo de batalha. Neste processo, os combates prolongados não causaram apenas elevadas baixas ucranianas, embora pouco divulgadas, mas também o esgotamento severo das reservas de munições dos EUA e dos seus aliados da NATO. O presidente Joe Biden citou especificamente a falta de munições de 155mm para justificar esta última decisão.
Há algumas indicações de que o apetite por negociações para se acabar com a guerra está a crescer da parte dos Estados Unidos. Até chegar o fim da guerra, não é bom para os ucranianos aumentar a miríade de problemas de que já sofrem, particularmente aqueles que estão no leste do país, onde a guerra é mais feroz, imitando as ações deploráveis dos militares de Vladimir Putin.
Fingir que as bombas de fragmentação são seguras não é uma forma de solidariedade.
Colaborador
Há uma razão pela qual 123 países, incluindo 70% dos aliados da NATO e a Suécia, aspirante a membro, assinaram uma convenção internacional que proíbe as bombas de fragmentação, com leis norte-americanas a proibir mesmo o governo de as fornecer ou produzir: são terríveis, há décadas que mutilam crianças e outros inocentes, mesmo depois do fim dos combates.
As munições de fragmentação são uma daquelas invenções tão diabólicas que qualquer pessoa pensa duas vezes sobre se o desenvolvimento da inteligência humana foi realmente uma boa ideia: um projétil que se divide no ar em centenas e até milhares de explosivos menores espalhando-se por uma área tão grande quanto vários campos de futebol, explodindo ao pousarem. A sua alta taxa de insucesso de detonação garante que, se não matarem ou desmembrarem alguém ao serem disparadas, vão certamente matar ou ferir anos depois, quando alguém tiver o azar de tropeçar nelas.
Estas bombas ainda hoje continuam a matar e a ferir no Laos, onde milhões de bombas de fragmentação não detonadas, resquícios da guerra dos Estados Unidos no Vietname, continuam espalhadas pelos campos, com 75% das vítimas a serem crianças. No Kosovo, onde também foram usadas pelas forças da NATO, as vítimas tinham quase cinco vezes mais probabilidade de ter menos de 14 anos. 40% das baixas causadas por estas munições na Síria também são crianças, representando 80% das mais de quatro mil baixas registadas entre 2010 e 2019.
Os líderes norte-americanos e os seus aliados sabem bem que as munições de fragmentação ultrapassam as principais linhas éticas, já que no início da guerra na Ucrânia condenaram, com razão, o uso terrível destas munições pela Rússia. Quando um jornalista perguntou à ex-secretária de Imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, sobre se esta era uma linha vermelha e “quanta violência seria tolerada contra civis”, Psaki respondeu que “seria potencialmente um crime de guerra”. A embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield, disse que estas bombas “não têm lugar no campo de batalha”.
No meio da invasão, o governo britânico pediu que se pusesse termo ao seu uso, apontando para o que a Rússia estava a fazer na Ucrânia. As autoridades ucranianas também disseram que Moscovo tinha “ignorado as regras da guerra” e que estava a “aplicar meios e métodos proibidos” ao depender destes projéteis.
Mas, subitamente, surgiram números a explicar o porquê de não ser nada demais encher-se o solo ucraniano com mais armas deste tipo, amplamente proibidas e mutiladoras de crianças, numa guerra que deveria promover a causa dos direitos humanos e das “regras internacionais".
“Do ponto de vista prático, o presidente fez a coisa certa”, disse recentemente à CNN o aposentado tenente-coronel do Exército dos EUA Alexander Vindman. “Estão a ser destacadas para o seu território. Eles [ucranianos] vão ter cuidado com elas.”
O conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, fez eco dessa afirmação garantindo que “a Ucrânia deu garantias por escrito de que as usará de forma muito cuidadosa” para minimizar os riscos de atingir civis. Mas as forças ucranianas já demonstraram disposição para usar bombas de fragmentação de uma forma que põe em risco os civis.
A Human Rights Watch, que documentou e condenou o uso bombas de fragmentação pelas forças russas nesta guerra, compilou vários casos em que as forças ucranianas feriram civis nas regiões orientais do país. Tanto durante esta guerra quanto antes de 24 de fevereiro de 2022, quando Kiev lutava uma guerra civil contra a região do Donbass controlada pelos separatistas. O The New York Times também o fez quando investigou um ataque, em março, ao que era então a vila de Husarivka, controlada pelos russos. Concluiu que as tropas ucranianas quase certamente dispararam um míssil de fragmentação contra um bairro residencial.
As garantias escritas significam pouco quando a liderança ucraniana já violou repetidamente as suas promessas aos Estados Unidos. Já sabíamos que Washington não estava satisfeita com os ataques que Kiev fez dentro das fronteiras russas e em território que Moscovo considera seu, incluindo o atentado suicida na ponte Kerch, e, pelo menos de acordo com as secretas ocidentais, a destruição do gasoduto Nord Stream 2.
Uma reportagem recente do jornalista William Arkin, da revista Newsweek, ilustra o quão preocupante é a situação, pitando Washington como incapaz de controlar uma liderança ucraniana cada vez mais inclinada para aceitar riscos. Um responsável norte-americano disse ser claro que “Zelensky também não tem controlo total sobre o seu próprio exército ou não quer saber de certas ações”. “Na minha humilde opinião, a CIA não consegue entender a natureza do Estado ucraniano e as fações imprudentes que existem no seu seio”, disse um funcionário do governo polaco a Arkin.
Por outras palavras, há poucos motivos para acreditar que essas bombas serão usadas de forma “responsável”, de uma forma que não cause vítimas civis, se isso é sequer possível com uma arma tão indiscriminada nos seus danos. Parece mais provável que aconteça na Ucrânia a mesma coisa que aconteceu em todos os outros lugares em que as bombas de fragmentação foram usadas: civis a suportar o peso da carnificina durante e depois da guerra.
Felizmente, a contestação a esta ideia está a crescer. A representante do “esquadrão” democrata Ilhan Omar apresentou uma emenda à Lei de Autorização de Defesa Nacional de 2023, o que bloquearia a transferência de munições de fragmentação para a Ucrânia, dizendo que, se os Estados Unidos se querem posicionar como líder dos direitos humanos, “não devem participar de violações de direitos humanos”. A emenda teve recentemente o seu primeiro co-signatário republicano.
A congressista Barbara Lee (democrata da Califórnia), que votou sozinha contra a Guerra no Afeganistão e que concorre agora ao Senado, também alertou para o risco de se perder “a liderança moral”, caso a administração prosseguisse com a transferência, acrescentando que as munições de fragmentação “nunca devem ser usadas”. Estes congressistas foram dois dos 19 progressistas da Câmara que emitiram uma declaração conjunta a opor-se à decisão, enfatizando “não existir bombas de fragmentação seguras”.
Resta saber se os seus esforços funcionarão. Mas, entre a oposição de esquerda no Congresso, há críticas generalizadas a grupos de direitos humanos e até mesmo a aliados dos Estados Unidos, como o Reino Unido e o Canadá, por se recusarem a dar o seu apoio público à decisão, dando a entender que a administração Biden está mais isolada que nunca desde o início da guerra. Isto faz com que haja a possibilidade de a decisão ser revertida.
Aconteça o que acontecer, esta situação é em parte consequência direta da decisão errada assumida logo no início da guerra e reforçada nos meses seguintes: abandonar a diplomacia e rejeitar as tentativas de se negociar o fim da guerra e, em vez disso, procurar a vitória militar total no campo de batalha. Neste processo, os combates prolongados não causaram apenas elevadas baixas ucranianas, embora pouco divulgadas, mas também o esgotamento severo das reservas de munições dos EUA e dos seus aliados da NATO. O presidente Joe Biden citou especificamente a falta de munições de 155mm para justificar esta última decisão.
Há algumas indicações de que o apetite por negociações para se acabar com a guerra está a crescer da parte dos Estados Unidos. Até chegar o fim da guerra, não é bom para os ucranianos aumentar a miríade de problemas de que já sofrem, particularmente aqueles que estão no leste do país, onde a guerra é mais feroz, imitando as ações deploráveis dos militares de Vladimir Putin.
Fingir que as bombas de fragmentação são seguras não é uma forma de solidariedade.
Colaborador
Branko Marcetic é redator da Jacobin e autor de Yesterday’s Man: The Case Against Joe Biden. Ele mora em Chicago, Illinois.
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