1 de junho de 2003

A cidade do futuro

Após a dilapidação do modernismo urbano, que tipos de cidade e que formas de arquitetura nos aguardam? O autor de The Seeds of Time considera suas flores na obra vertiginosa de Rem Koolhaas, os mega-desenvolvimentos do Delta do Rio das Pérolas e a conceituação de "Junkspace". Retornando à história com um aríete do pós-moderno?

Fredric Jameson 


NLR 21 • May/June 2003

Tradução / O Project on the City (“Projeto sobre a Cidade”)reúne pesquisas de um seminário de  graduação  ainda  em  andamento,  dirigido  por  Rem  Koolhaas,  na Harvard School of Design; seus primeiros dois volumes — Great Leap Foward (“O Grande Salto à Frente), uma análise do desenvolvimento do delta do Rio das Pérolas, entre Hong Kong e Macau, e Guide to Shopping (“Guia do Shopping”) — acabaram de sair em suntuosas edições da Taschen2. Esses extraordinários volumes são totalmente diferentes de tudo o que se pode encontrar na mídia impressa; eles não são livros de fotografia ou textos ilustrados, estão em  movimento  como  um  CD-ROM,  suas  estatísticas  são visualmente  bonitas  e  suas imagens, até certo ponto, legíveis.

Embora a arquitetura seja uma das poucas artes em que ainda existem os grandes auteurs —  e  embora  Koolhaas  certamente  seja  um  deles  —  o  seminário  que  produziu seus  primeiros  resultados  nesses  dois  volumes  não  é  dedicado  à  arquitetura,  mas  sim,  à exploração  da  cidade  nos  dias  de  hoje,  em  todas  as suas  não-teorizadas  diferenças  em relação à estrutura urbana clássica que existiu ao menos até a Segunda Guerra Mundial. Desde  seus  primórdios,  nos  séculos  XVIII  e  XIX,  a  arquitetura  moderna  tem  estado intimamente ligada às questões do urbanismo: a síntese modernista de Siegfried Giedion, Space,  Time  and  Architeture,   por   exemplo,   mesmo   sendo,   essencialmente,   uma celebração de Le Corbusier, começa com a reestruturação barroca de Roma por Sixtus V e  termina  com  o  Rockfeller  Center  e  as  avenidas  de Robert  Moses.  E,  obviamente,  Le Corbusier  foi,  com  as Radiant  Cities, Chandigarh e  o  plano  para  Argel,  tanto  um arquiteto quanto um “planejador urbano”. Mas ainda que o Project testemunhe a favor do compromisso de Koolhaas com a questão da cidade, ele não é um urbanista em nenhum sentido  disciplinar;  tampouco  pode  a  palavra  ser  usada  para  descrever  esses  livros,  que igualmente escapam a outras categorias disciplinares (tais como sociologia ou economia), mas estão mais próximos dos estudos culturais, pode-se dizer.

O  fato  é  que  o  urbanismo  tradicional  —  talvez  seja melhor  dizer  modernista  — chegou a um beco sem saída. Discussões a respeito dos padrões americanos de trânsito ou da divisão  em  zonas  —  e  até  mesmo  debates  políticos  sobre  os  “sem-teto”,  a  gentrificação3(“enobrecimento  urbano”)  e  a  real  política  de  impostos  do  Estado  —  perdem-se  na insignificância  quando  se  considera  a  imensa  expansão  daquilo  que  costumávamos chamar de cidades no Terceiro Mundo: “Em 2025, nos diz Koolhaas num outro volume coletivo,

o número de habitantes de cidade poderá chegar a cinco bilhões de indivíduos...das  trinta  e  cinco  megalópoles  previstas  para  2015, vinte  sete  estarão  localizadas  nos  países  menos  desenvolvidos, incluindo dezenove na Ásia... Tóquio vai ser a única cidade rica a figurar na lista das dez maiores cidades.

Não se trata de um problema a ser resolvido, mas de uma nova realidade a ser explorada: e esta, suponho eu, é a missão do Project on the City, dois volumes complementares de projetos que estão bem distantes: um em Lagos, na Nigéria, e o outro na cidade Romana clássica, como protótipo.

O  primeiro  volume  do Project, Great  Leap  Forward,  interpreta  o  prodigioso “boom” da  construção  na  China  atual  —  quase  nove  mil  prédios  de  grande  altura construídos em Xangai desde 1992 — não tanto em termos de uma virada ou retorno ao capitalismo, mas, sim, nos termos da estratégia de Deng Xiaoping de usar o capitalismo para   construir   uma   sociedade   radicalmente   diferente: infravermelha ao   invés   de vermelha: 

A  ocultação  dos  ideais  comunistas,  vermelhos...  para  salvar  a Utopia  em  um  momento  na  qual  ela  estava  sendo  contestada  de todos  os  lados,  quando  o  mundo  ficava  acumulando  provas  de seus  estragos  e  misérias...  IFRAVERMELHO©,  a  ideologia  da reforma,  é  uma  campanha  para  evitar  o  fracasso  da  Utopia,  um projeto  para  esconder  ideais  do  século  dezenove  no interior  das realidades do século vinte e um.

Aqueles que acreditam que o mercado é uma realidade, ancorada na Natureza e no Ser,  terão  dificuldade  em  apreender  tal  proposição,  que  de  sua  perspectiva  vai  ser dissipada  por  uma  imediata  conversão  ao  capitalismo  ou  pelo  colapso  econômico.  Mas consideremos a perspectiva arquitetônica: testemunhamos milhares e milhares de prédios construídos, ou sendo construídos, que não possuem arrendatários, que jamais poderiam ser pagos sob condições capitalistas e cuja própria existência não pode ser justificada por padrão algum de mercado. Seguimos aqui os princípios das comunidades de habitação da área  do  delta  do  Rio  das  Pérolas,  que  estão  sendo  projetadas  para  um  futuro  bastante distinto  daqueles  pesquisados  pelos  especuladores  ocidentais,  bancos  e  instituições  de financiamento  do  mundo  capitalista.      De  fato,  as  quatro  comunidades  exploradas  aqui são  algo  como  quatro  projeções  utópicas  diferentes:  Shenzhen,  um  tipo  de  substituta  ou duplicata de Hong Kong; Dongguan, uma cidade do prazer; Zhuhai, um paraíso do golf; e o  antigo  centro,  Guangzhou,  um  estranho  tipo  de  palimpsesto,  no  qual  o  novo  está sobreposto num centro econômico tradicional já existente. Trata-se de um extraordinário relato de uma viagem ao futuro, que nos dá uma percepção muito mais concreta da China de hoje e de amanhã do que a maioria dos livros de viagem (e muitas excursões reais).

PROTEUS VAI AO SHOPPING 

O Guide to Shopping é algo de todo diferente, tanto em estilo quanto em intenção. O consumo, sejamos claros, é um tema candente, mas esse não é um estudo convencional sobre ele. Na verdade, a questão a respeito do que é esse livro — um extraordinário livro de fotografias; uma coleção de ensaios sobre vários tópicos urbanistas e comerciais; uma amostra  do  espaço  global  da  Europa  a  Singapura,  da Disney  World  a  Las  Vegas;  um estudo  sobre  o  próprio  shopping-center,  dos  seus  primeiros  ideólogos  até  suas  formas mais  contemporâneas  —  corresponde  à  ambigüidade  mais  geral  de  seu  objeto.  Mesmo que  permaneçamos  com  a  caracterização  inicial  daquele  objeto  como  “shopping”,  que tipo  de  caracterização  é  essa?  Trata-se  de  uma  caracterização  física,  envolvendo  os objetos a ser vendidos? Ela é psicológica, envolvendo o desejo de comprar os objetos em questão? Ou arquitetônica, tendo a ver com a originalidade espacial daquelas galerias — que,  notoriamente,  encontram  seus  ancestrais,  no  século  XIX,  nas  passagens  de  Walter Benjamin;  caso  contrário,  como  sugerem  alguns  dos  gráficos  de  tempo  nesse  livro, em 7.000  A.C.  na  “cidade  de  Catal  Hoyuk,  fundada  para trocas  comerciais”,  ou  talvez  na “invenção” da venda no  varejo na  Lídia5, no século VII A.C.? Ou estamos falando aqui da globalização do consumo (consumismo)? Ou das novas rotas comerciais e das redes de produção e distribuição envolvidas em tal globalização? (Ou dos homens de negócio que as  organizam?)  Mas  e  as  novas  tecnologias  desenvolvidas  para  o  comércio  desde  Catal Hoyuk?  O  prodigioso  aumento  em  tamanho  das  companhias  de  marketing  e  dos conglomerados, alguns deles maiores do que muitos países estrangeiros? O que dizer do shopping e da forma da cidade contemporânea — se é que existe uma? Não por acaso, o projeto coletivo de Koolhaas teve seu nome mudado de “Project for what used to be the city”  (Projeto  para  o  que  costumava  ser  a  cidade)  para o  mais  simples  e  mais  otimista Project on the City. Ao que podemos acrescentar a seguinte questão: está emergindo um novo tipo de espaço — espaço de controle, junkspace? E o que tudo isso implica para a psyque e  a  própria  realidade  humana?  (o  primeiro  teórico  da  publicidade,  Edward Bernays, era sobrinho de Freud). O que isso implica para o futuro e para a Utopia?

Provavelmente  estou  esquecendo  algumas  das  outras  modulações  desse  tema proteano;  mas  vai  ficar  claro  que  ele  mobiliza,  ao lado  das  óbvias  (obviamente antecipadas)  áreas  da  arquitetura  e  do  urbanismo,  disciplinas  tão  heterogêneas  quanto  a psicanálise e a geografia, história e negócios, economia e engenharia, biografia, ecologia, feminismo,  estudos  de  área,  análise  ideológica,  estudos  clássicos,  decisões  jurídicas, teoria  da  crise,  etc.  Talvez  esse  imenso  tipo  de  extensão  disciplinar  não  seja  mais  tão atordoante numa era pós-moderna, em que a lei do ser é a “des-diferenciação”, e na qual estamos  interessados  ao  máximo  em  como  as  coisas  sobrepõe-se  umas  as  outras  e necessariamente escorrem através das fronteiras disciplinares. Ou, se preferirem, no pós-moderno  a  distinção  entre  as  antigas  e  especializadas  disciplinas  está  constitutivamente apagada e, agora, elas retornam umas as outras nos mais interessantes estudos — do Mil Platôs, de Deleuze e Guatarri ao Power Broker, de Caro; do Império ao Rembrant`s Eyes; das Passagens de Benjamin ao Geschichte und Eigensinn, de Negt e Kluge; sem falar em S, M, L, XL ou  mesmo Space, Time and Arquiteture.  Aqui  a  teoria  é  majoritariamente renegada (embora Baudrillard seja mencionado uma vez, se não me engano), mas não se deve deixar que isso nos leve a pensar que se trata de um trabalho de jornalismo cultural não-teórico, menos ainda de um livro de fotografias de mesa de café. Como pode também sugerir  a  enumeração  acima,  é  um  volume  coletivo;  mas  não  no  sentido  em  que  os experts das várias disciplinas a pouco mencionadas são, de algum modo, reunidos e suas contribuições examinadas em seqüência. Isso torna embaraçoso para um crítico destacar nomes  específicos,  embora  Sze  Tsung  Leong  escreva  a  maior  parte  dos  capítulos  ─  e também  os  mais  reflexivos  filosoficamente  ─,  com  Chuihua  Judy  Chung  seguindo  de perto  nas  discussões  mais  concretas.  Quanto  a  Koolhaas,  seu  papel  parece  ter  sido essencialmente  organizacional  (quer  dizer,  como  algumas  versões  do  divino,  em  lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo), salvo uma impressionante aparição em seu próprio nome, que discutiremos no momento oportuno.

DEPOIS DA GALERIA COMERCIAL

Tentarei  trazer  a  teoria  de  volta  a  tudo  isso,  mas primeiro  seria  melhor  explorar algo  no  detalhe  das  bases  ou  do stratum do  livro,  cujo  índice  alfabético  de  conteúdos  é bastante enganoso a esse respeito, sendo, deste modo, em si mesmo, um verdadeiro tour de force6.  Porque  algumas  antecipações  sobre  o  shopping  são o  caminho  aqui:  elas  vão retornar, muito mais desenvolvidas, mais adiante, em contextos variados. Pois é como se o  shopping-center  fosse  o  fundamento  espacial  e  arquitetônico  no  interior  desse  imenso tópico. Poucas formas têm sido tão distintivamente novas, tão distintivamente americanas e tardo-capitalistas quanto essa inovação, cujo surgimento pode ser datado de 1956; cuja relação  com  o  bem  conhecido  declínio  do  crescimento  do  subúrbio  dentro  da  cidade  é palpável, ainda que variável; cuja genealogia abre agora uma pré-história física e espacial do shopping de uma maneira que antes seria inconcebível; e cuja proliferação por todo o mundo   pode   servir   como   um   mapa   epidemiológico   da   Americanização,   ou   pós-modernização,  ou  globalização.  O  shopping,  portanto,  concentra  a  investigação  e  serve como a moldura da espantosa ampliação de tudo isso mais tarde. Enquanto isso, páginas de  cronologia,  sistemas  de  referência  cruzada  codificados  por  cor  e  incontáveis  indexes temáticos  já  nos  treinam  na  forma  rizomática  daquela  ampliação;  ao  passo  que  um primeiro  conjunto  de  comparações  entre  as  áreas  de venda  no  mundo  inteiro,  entre  os PIBs  nacionais  e  as  receitas  de  venda  das  maiores  corporações,  nos  ajuda  a  começar  a mapear  o  processo  em  nossas  mentes  e  formar  uma  fotografia,  não  somente  das hierarquias  relativas  da  globalização,  mas,  também,  de  uma  visão  do  shopping  que,  me arrisco  a  dizer,  vai  se  transformar  em  breve  não  apenas  numa  questão  política,  mas também metafísica.

Simultaneamente,  no  entanto,  somos  parados  abruptamente  e  uma  diferença fundamental entre esse livro e a proliferação de novos e excelentes volumes de estudos-culturais sobre shopping-center, galerias, consumismo, e coisas parecidas, torna-se clara. Antes mesmo de abordarmos a própria coisa, nos deparamos com a galeria comercial em crise, perdendo dinheiro, arrendatários e prestes a ser substituída... Pelo o quê? Benjamin tirou sua foto instantânea da galeria do século dezenove no momento de sua decadência —  e  deste  modo  desenvolveu  toda  uma  teoria  da  história,  segundo  a  qual  é  possível compreender melhor o presente do ponto de vista de um passado imediato cujas modas já estavam ligeiramente ultrapassadas. A crise nos permite notar que aqui não temos apenas que lidar com a arqueologia ou a pré-história do shopping, nem mesmo seu presente, mas, sim, com seu futuro. Entretanto, seja qual for o destino da  galeria enquanto tal, “‘existe muito  lixo  lá’.  Muitas  galerias  velhas  e  cavernosas  são  dinossauros  que  não  podem competir  com  a  conveniência  dos  atacadistas  de  valor  aumentado  em  poderosos  centros ou faixas” — aos quais se deve acrescentar agora, sem dúvida, o eBay7.

Em primeiro lugar, alguma coisa  evidentemente  aconteceu com os pré-requisitos para  a  existência  da  galeria.  Mas  quais  eram  esses pré-requisitos?  Como na  causalidade aristotélica, eles aparecem numa variedade de formas e modelos: as pré-condições físicas ou de engenharia nos são apresentadas a um só tempo, na primeiríssima letra desse ABC do shopping: qual seja, o ar-condicionado — ao qual logo retornaremos num lugar mais apropriado.  Quanto  à  pré-história,  certamente  temos  sido  expostos,  em  anos  recentes,  a uma  hoste  de  interessantes  formas  antecedentes,  geralmente  retornando-se  até  mesmo  a Catal  Hoyuk.  Mais  notadamente  a  própria  galeria,  que  se  desenvolve  essencialmente  no início  do  século  XIX  e  se  depara  com  sua  crise  nas décadas  de  1850  e  60  —  no  exato momento em que a próxima forma entre em cena: a moderna loja de departamentos, cujo surgimento  Zola  imortalizou  em Au bonheur dês dames (Ladies’s Delight é  uma  versão em ficção de nomes verdadeiros como Au printemps e La Samaritane, que também foram exaustivamente  estudadas  nos  últimos  anos,  tanto  por  conta  de  suas  implicações urbanísticas  quanto  comerciais:  ao  menos  por  uma  razão,  elas  são  mais  ou  menos contemporâneas  da  imensa  transformação  de  Paris  por  Haussmamm8).  Quanto  a  nossa forma — entrando em seu período de decadência? — chegaremos a ela em um momento; na verdade, vamos inclusive lhe dar nomes e faces. Como um romance ou um poema, ela realmente  tem  um  autor  ou  inventor,  embora  o  inventor  de  todo  um  gênero  seja  um paralelo mais apropriado; algo que não se encontra com freqüência.

TECNOLOGIAS DELIRANTES 

Primeiro,  saltemos  à  frente  para  avaliar  o  propósito  e  as  transformações  dessa forma proteana — em aeroportos, por exemplo, que agora, pelo menos os novos, também se  tornaram  shopping-centers;  em  museus  e,  finalmente,  na  própria  cidade.  O  velho centro   da   cidade   —   devastado   pelos   subúrbios,   pelos   novos   supermercados   e posteriormente  pelos  próprios  shoppings  —  procura  agora,  com  a  pós-modernidade  e  o “enobrecimento   urbano”,   compensar   a   perda:   não   somente   construindo   enormes shoppings em sua própria área, mas transformando-se, a seu modo, num shopping virtual. De fato, algo fundamental começa a acontecer a ele (como assinalado em um volume do Project on the city):

Em 1994, o shopping oficialmente substituiu as funções cívicas do tradicional  centro  da  cidade.  Na  Suprema  Corte  de  Nova  Jersey, num  caso  envolvendo  a  distribuição  de  panfletos  políticos  em shopping-centers,   a   corte   declarou   que   “os   shopping-centers substituíram  os  parques  e  praças  que  “tradicionalmente  eram  a casa  do  livre  discurso”,  se  colocando  ao  lado  dos  manifestantes “que argumentavam que o shopping constitui a Rua Principal dos tempos modernos.

Mas  se  “esse  retorno  do  shopping  à  cidade  não  foi nada  menos  do  que triunfante,” os autores se vêem obrigados a acrescentar: “para serem salvos, os centros da cidade tiveram que receber o beijo da morte do subúrbio.” 

Agora, voltando aos pré-requisitos: poderia o próprio código de barra — o Código de Produto Universal — ser um deles? Analisando suas funções, começamos a ver como as estatísticas que ele imediatamente fornece ao vendedor transformam inteiramente toda a  estrutura  de  cadastro,  reabastecimento,  marketing  e  coisas  do  tipo.  Os  nomes  das marcas podem perfeitamente ser mais uma conseqüência cultural desse tipo de shopping do  que  um  pré-requisito,  pois  suas  áreas,  as  butiques  mais  destacadas,  indicam  “os sagrados  recintos  da  última  religião  global  —  o  consumismo  capitalista.”  Eles  também evidenciam  um  novo  tipo  de  dinâmica,  ela  mesma  consumida  sob  a  “co-opetição9”,  o logotipo de Singapura, que celebra a maré que eleva os navios de todos, incluindo os dos competidores. 

Mas com isso embarcamos numa turnê mundo afora, ou melhor, na turnê mundial do shopping, na medida em que ela alcança um ponto após o outro e é transformada pela cultura  local.  Singapura  é  uma  antiga  paixão  de  Koolhaas  (ver S, M, L, XL),  mas  sua dinâmica   continua   sendo   uma   extraordinária   lição   prática   —   não   apenas   de desenvolvimento,  mas  também  sobre  o  modo  pelo  qual uma  cidade-estado  se  ajusta primeiro à região e posteriormente ao próprio mundo. O Palácio de Cristal uma vez mais nos leva de volta às origens (e à assinatura de um indivíduo, Joseph Paxton10). A Depato, a  loja  de  departamentos  japonesa,  nos  lança  pelo  menos  numa  extraordinária  mutação cultural,  intimamente  ligada  à  lógica  do  crescimento  de  Tóquio  ao  longo  das  inúmeras estradas de ferro privadas que partem da terceira maior cidade do mundo. E finalmente: o próprio Disney, uma vez que nenhum estudo de qualquer das inovações nessa área pode estar completo sem um reconhecimento abrangente de tudo o que foi inventado por Walt: todos os tipos de coisa, de um novo urbanismo a um novo tipo de shopping, um novo tipo de globalização, um novo tipo de indústria do entretenimento e até mesmo um novo tipo de  Utopia.  De  fato,  talvez  Disney  e  a  “Disneyficação”  sejam  melhores  estudados  nesse novo  contexto,  comparatista    e  globalizado,  do  que um  esporte  ou  um singleton¹¹tipicamente americano.

Mas  e  quanto  ao  próprio  shopping,  seu  espaço,  por exemplo?  Existe  uma psicologia do espaço no shopping — a emenda, o corredor, o molde — assim como existe uma  ecologia  da  coisa.  E  aqui  os  pré-requisitos  retornam  fluindo  com  força  total:  não somente   o   ar-condicionado,   com   sua   interessantíssima   história   (mais   inventores fanfarrões  e  sonhadores  criativos  e  obsessivos),  mas  também  a  escada  rolante  —  o elevador  havia  sido  um  operador  crucial  no  primeiro  livro  de  Koolhaas, Nova  York Delirante¹²,   sobre   a   paisagem   do   arranha-céu   —   com   suas   importantíssimas conseqüências para o espaço do shopping e suas possibilidades de construção; toda essa rica  seção  ocupa  umas  trinta  páginas.  E  também,  em algum  momento  mais  tarde,  a clarabóia e o sistema hidráulico contra incêndio; sem falar no modo pelo qual esse novo espaço  pode  manter  escondido  seu  sistema  de  serviços  —  poderíamos  mencionar  até mesmo as “tecnologias” precursoras: o guichê, as vitrines, o espelho e o manequim. 

Mas  permitamo-nos  entrar  nas  ideologias  da  questão,  pois,  aqui,  finalmente  nos elevamos  do  corpo  à  alma:  a  pobre  Jane  Jacobs1³,  por  exemplo,  é  vista  como  algo semelhante  à  astúcia  hegeliana  da  história,  com  toda  a  justiça,  por  defender  os  aspectos fundamentais  de  uma  verdadeira  experiência  da  cidade  contra  os  vários  modernismos urbanísticos  e  arquitetônicos,  enumerando,  dessa  forma,  “os  ingredientes  através  dos quais o shopping pôde substituir a urbanidade e criar uma “luz da cidade” que tornou-se o modelo  para  a  ressurreição  dos  degradados  centros  da  cidade  da  América.”  Isso  parece um pouco duro, mas o certo é que Jacobs — acusada por muitos arquitetos e urbanistas de  acionar  a  revolução  pós-moderna  em  seu  campo  —  não  é  anticapitalista  e  apóia  de forma bastante considerável os (pequenos) negócios.

Mas  com  Victor  Gruen¹4  estamos  nas  origens  (não  podemos  mais  chamá-la  de “grau zero”; e o gênio Harold-Bloomiano?). Pois o shopping foi sua invenção original, e é certo que a nossa experiência contemporânea do espaço ou não-espaço americano é, em alguma  medida,  “desalienada”  ao  descobrirmos  que  foram  as  idéias  de  alguém  que geraram  tudo  isso,  e  que  não  se  trata  apenas  de  um estranho  acúmulo  de  acidentes históricos de mercado, mas do resultado da produção humana. Para começo de conversa, enfatizar a façanha de Gruen, entretanto, é também, e a um só tempo, salientar a reação canônica  e  recordar,  voluntariamente  ou  não,  que  poucos  dos  grandes  modernistas chegaram  a  planejar  tais  coisas,  que  dirá  teorizá-las  (por  outro  lado  elas  se  tornaram matéria-prima  dos  pós-modernistas).  É  também  motivar  uma  reflexão  sobre  o auteurcontemporâneo, que é o pomposo equivalente da cultura de massa de todos esses projetos estéticos superiores e, com toda a justiça, um verdadeiro fenômeno: Jon Jerde, construtor do  Horton  Palace  em  San  Diego  e  muitos  outros.  Como  em  todos  os  outros  ramos  da cultura contemporânea, a separação entre grande arte e cultura de massa também aqui se torna inevitável. 

Mas  exatamente  quando  estamos  prestes  a  refletir  um  pouco  sobre  disso,  e avançar  na  direção  de  outros  fenômenos  globais  relacionados  —  o  Grupo  Lippo  na Indonésia;  um  retorno  à  velha  noção  de  Venturi-Scott-Brown  em Learning from Las Vegas e uma rica entrevista com os autores; também o feminismo (mulheres e shoppings constituem um velho e ofensivo tópico); paisagens artificiais; a relação de tudo isso com a  psicologia  e  a  psicanálise;  a  resistência  européia  ao  shopping  e  suas  conseqüências americanizantes; e muitos outros temas interessantes levantados pela segunda metade do alfabeto — inesperadamente nos deparamos com um buraco negro,  gerando prodigiosas energias em todas as direções.  

ABAIXO O VÍRUS DO JUNKSPACE 

Junkspace   (“Espaço-lixo”),   a   contribuição   de   Rem   Koolhaas,   é   um   texto extraordinário,  que  tanto  é  um  artefato  pós-moderno  característico  quanto  uma  estética totalmente  nova,  talvez,  se  não  toda  uma  nova  visão  da  história.  À  luz  desse  texto concatenado,  precisamos  fazer  uma  pausa  e  repensar o  projeto  inteiro.  Mas  primeiro temos que examinar o próprio texto, cuja combinação de repulsa e euforia é única para o pós-moderno  e  instrutiva  sob  vários  aspectos.  Sabíamos  que  Koolhaas  era  um  escritor interessante   —   nisso,   comparável   a   um   bom   número   de   destacados   arquitetos contemporâneos; seus livros, em particular Nova York Delirante e S, M, L, XL, combinam inovação  formal  com  sentenças  incisivas  e  posições caracteristicamente  provocativas. Mas nem um único texto desses livros nos preparou para essa performance ininterrupta e continuada do espaço construído, não apenas da cidade contemporânea, mas de todo um  universo  no  ponto  de  fusão  num  tipo  de  magma  indeterminado  e  de  incontáveis utilidades. 

Isso  vai  muito  além  das  querelantes  reclamações  da crítica  cultural  acerca  da estandardização   (ou   americanização).   Ela   começa   com   o   lixo   (junk)   como   o remanescente   clássico   (o   que   permanece   depois   da   dialética   ou   depois   da   cura psicanalítica):  se  o  lixo-espacial  (space-junk)  é  o  escombro  humano  que  desarruma  o universo, o “espaço-lixo” (junk-space) é o resíduo que a humanidade deixa no universo.” Muito rapidamente, no entanto, o junkspace torna-se um vírus que se espalha e prolifera por todo o macrocosmo: 

restos  geométricos  angulares  invadindo  imensidões  estreladas;  o espaço real editado para uma suave transmissão no espaço virtual, o engonço  crucial  num  infernal  circuito  de  realimentação...a  vastidão do junkspace estendeu-se às beiradas do Big Bang. 

Mas isto, por si mesmo, seria pouco mais do que Baudrillard ou teoria da televisão — a crítica da virtualidade como uma promessa (como a crítica de passagem do “fluxo” deleuziano):ao  invés  disso,  o  propósito  do  exercício  é  encontrar  sinônimos,  centenas  e centenas de sinônimos teóricos, martelados uns sobre os outros e derretidos juntos numa colossal e aterrorizante visão, com cada uma das “teorias” do “pós-moderno” (ou a época atual)  tornando-se  metafóricas  umas  para  as  outras numa  única  e  ofuscante  olhadela  na parte de baixo: 

O  “espaço-lixo”  expõe  o  que  as  gerações  passadas  mantiveram encoberto:   estruturas   emergem   como   molas   de   um   colchão, escadas  de  saída  balançam  num  trapézio  didático,  sondas  são arremessadas no espaço para fornecer trabalhosamente aquilo que é  de  fato  onipresente,  ar  livre,  acres  de  vidro  pendurados  por cabos aracnídeos, peles tensamente esticadas cercadas por flácidos não-eventos. 

Como  tendência,  o  “espaço-lixo”  já  existe  há  algum tempo,  não-reconhecido  no começo; como um vírus não detectado, novamente: 

Primeiramente   os   arquitetos   pensaram   no   “espaço-lixo”   e   o denominaram   Megaestrutura,   a   solução   final   para   seu   enorme impasse. Como múltiplas Babéis, as imensas estruturas durariam por  toda a eternidade, irrompendo inúmeros subsistemas provisórios que iriam  se  modificar  com  o  tempo,  fora de  seu  controle.  No “espaço-lixo”,  as  mesas  estão  viradas:  não  mais  do  que  subsistemas,  sem superestrutura, partículas órfãs à procura de uma base ou modelo. 

Seria  simples  demais  dizer  que  aqui  espaço  e  arquitetura  são  metáforas  para qualquer outra coisa, mas isso não é mais teoria da arquitetura, tampouco se trata de um romance cujo ponto de vista é o do arquiteto. Antes, é a nova linguagem do espaço que está falando através dessas frases que se perpetuam produzindo réplicas de si mesmas, o próprio  espaço  tornando-se  o  código  dominante  ou  linguagem  hegemônica  desse  novo momento  da  História  —  o  último?  —  cuja  matéria-prima,  em  sua  decomposição,  o condena à extinção: 

Envelhecer  no  “Espaço-lixo”  é  algo  inexistente  ou  catastrófico;  por vezes  um  “Espaço-lixo”  inteiro  ─  uma  loja  de  departamentos,  um clube noturno, um apartamento de solteiro ─ se transforma, da noite para  o  dia  e  sem  aviso,  numa  favela:  o  consumo  de  eletricidade diminui imperceptivelmente, letras caem das placas, aparelhos de ar-condicionado    começam    a    pingar,    aparecem    rachaduras de terremotos   que,   do   contrário,   não   seriam   registrados;   partes apodrecidas  não  são  mais  viáveis,  mas  permanecem  unidas  à  carne do corpo principal através de passagens gangrenosas. 

Essas alarmantes “deteriorações de tipo Alzheimer” são realizações dos momentos de  pesadelo  em  Philip  K.  Dick,  quando  a  realidade  começa  a  curvar-se  como  numa alucinação por droga e sofrer vertiginosas transmutações, revelando os mundos privados nos quais estamos aprisionados para além do tempo. Mas esses momentos não são mais aterrorizantes;  agora  eles  são,  de  fato,  bem  estimulantes,  e  é  precisamente  essa  nova euforia que permanece por ser explicada. 

O IMPÉRIO DA MANCHA

Sejamos  claros,  Koolhaas  reivindica  nada  menos  do  que  a  renovação  perpétua, não apenas a demolição do velho, mas também a reciclagem perpétua a qual foi reduzida a uma vez nobre (e até mesmo megalomaníaca) vocação de Mestre Construtor: “Qualquer coisa esticada — limusines, partes do corpo, aviões — tem seu conceito original ultrajado e  se  transforma  em  ‘espaço-lixo’.  Restaurar,  rearranjar,  remontar,  reformular,  renovar, revisar, recuperar, redesenhar, retornar — os mármores do Partenon — refazer, respeito, alugar  (Rent):  verbos  que  começam  com re —  produzem  ‘espaço-lixo’.”  Trata-se,  sem dúvida, do desaparecimento de todos os “originais”, e, junto com eles, da própria história: 

a  única  certeza  é  a  conversão  —  contínua  —  seguida,  em  raros casos, por uma “restauração”, o processo que exige sempre novas partes  da  história  como  “espaço-lixo”.  A  história  corrompe,  a história  absoluta  corrompe  absolutamente.  Cor  e  matéria  são eliminadas  desses  enxertos  sem  sangue;  o  insípido  tornou-se  o único ponto de encontro do velho e do novo.

Estamos  de  agora  em  diante  no  domínio  do  “sem-forma”  (Rosalind  Kraus, partindo  de  Bataille);  mas  “a  ausência  de  forma  é  ainda  uma  forma  e  o  ‘sem-forma’ também é uma tipologia.” Não se trata do “vale tudo” da nova geração de “arquitetos de gota”  (Greg  Lynn,  Bem  Van  Berkel)  produzidos  pelo  computador:  “na  verdade,  o segredo do ‘espaço-lixo’ é que ele é tanto promíscuo quanto repressor: na medida em que o ‘sem-forma’ prolifera, o formal murcha, e, com ele, todas as regras, regulamentações e recursos.” Sombras de Marcuse e da tolerância repressiva? 

O  “espaço-lixo”  é  um  triângulo  das  Bermudas  de  conceitos,  uma placa   de   petri   abandonada:   ele   cancela   distinções, solapa resoluções   e   confunde   intenção   com   realização;   substitui   a hierarquia  pela  acumulação,  a  composição  pela  adição.  Mais  e mais,  mais  é  mais.  O  “espaço-lixo”  é,  ao  mesmo  tempo,  maduro demais e subnutrido, um colossal cobertor de segurança que cobre a Terra com uma barreira de proteção intransponível...O “espaço-lixo”  é  como  estar  perpetuamente  condenado  a  uma  Jacuzzi  com milhões  dos  seus  melhores  amigos...Um  felpudo  império  de manchas,  no  qual      unificam-se  o  alto  e  o  baixo,  o público  e  o privado, o reto e o curvado, o estufado e o faminto, para oferecer uma   descosturada   colcha   de   retalhos   do   permanentemente desagregado.

Existem, sem dúvida, “trajetórias” tranqüilas, com seus momentos mágicos:

O  pós-modernismo  acrescenta  uma  zona  de  deformação  de  viral  escaldado que tritura e multiplica a infinita linha de frente de exposição, uma embalagem peristáltica com material termo-retrátil, crucial para todas as trocas comerciais. As trajetórias têm início com ladeira, viram na horizontal sem qualquer aviso, atravessam, abaixam e de repente emergem numa vertiginosa varanda acima de um  grande  vazio.  Fascismo  sem  ditador.  Do  repentino  ponto  sem  saída  onde você foi deixado por uma monumental escada de granito, uma escada rolante te leva para um destino invisível, encarando  uma provisória vista panorâmica de gesso, inspirada por fontes insignificantes.

No interior dessa atordoante pseudo-temporalidade material, que modifica-se sem parar  à  nossa  volta,  também  existem  momentos  de  rara,  de  deslumbrante  beleza: “estações ferroviárias abrem-se como borboletas de ferro, aeroportos brilham como gotas de  orvalho  ciclópicas,  pontes  freqüentemente  atravessam  bancos  desprezíveis  como versões   grotescamente   ampliadas   de   uma   harpa.   Para cada   riacho   seu   próprio Calatrava15.”  Mas  tais  momentos  são  insuficientes  para  compensar  o  pesadelo,  ou  fazer valer à pena as alucinações. O cyberpunk16parece ser a referência a apreendermos aqui, o qual — como Koolhaas, apenas ambiguamente cínico — parece positivamente revelar em seu  próprio  excesso  (e  no  do  seu  mundo).  Mas  na  realidade  o cyberpunk  não  é apocalíptico, e penso que a melhor coordenada é Ballard17, o Ballard dos múltiplos “fins do   mundo”,   sem   a   melancolia   de   Byron18,   o   rico   pessimismo   orquestral   e   a weltschmerz19. 

Pois, aqui, o que está em jogo é o fim do mundo; e isso poderia ser estimulante se o  apocalipse  fosse  o  único  modo  de  imaginar  o  desaparecimento  desse  mundo  (aqui pouco  interessa  se  temos  de  lidar  com  a  explosão  ou  a  lamúria).  É  o  velho  mundo  que merece  a  irritação  e  a  sátira,  o  novo  é  meramente  sua  própria  auto-aniquilação  e  seu deslizamento no que Dick chamava de kipple ou gubble20, naquilo que Le Guin uma vez descreveu  como  o  derreter  dos  prédios.  “Eles  estavam  ficando  encharcados  e  trêmulos; como  gelatina  deixada  ao  sol.  Os  cantos  já  haviam  se  deteriorado  dos  lados,  deixando grandes manchas gordurentas.” Alguém disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo  do  que  imaginar  o  fim  do  capitalismo.  Podemos  agora  aprimorar  isso  e testemunhar  a  tentativa  de  imaginar  o  capitalismo  com  a  intenção  de  imaginar  o  fim  do mundo. 

ROMPENDO DE VOLTA À HISTÓRIA

Penso que seria melhor caracterizar tudo isso em termos de História: uma História que não podemos imaginar de outra forma se não como fim e cujo futuro parece ser nada mais do que uma monótona repetição do que já está aqui. O problema, portanto, é como localizar  a  diferença  radical,  como  impulsionar  o  sentido  histórico  de  modo  que  ele novamente  comece  a  transmitir  frágeis  sinais  de  tempo,  de  alteridade,  de  mudança  e  de Utopia. O problema a ser resolvido é esse: escapar do presente “sem vento” (windless) do pós-moderno e retornar ao tempo histórico real e a uma história feita por seres humanos. Penso que esse texto é uma maneira de se fazer isso ou, pelo menos, uma tentativa. Sua ficcionalidade científica provém do método secreto desse gênero, o qual, na ausência de um  futuro,  concentra-se  numa  única  tendência  maligna,  que  ele  expande  e  expande  até que  a  tendência  se  torna,  ela  mesma,  apocalíptica  e  explode  o  mundo  no  qual  estamos aprisionados em incontáveis fragmentos e átomos. A aparência distópica é, assim, apenas a extremidade afiada inserida na contínua fita de Möbius21 do capitalismo tardio, a ferida ou obsessão perpétua que não se deixa enganar por um enredo, por qualquer enredo, para seu previsível fim. 

Entretanto, isso apenas não é o suficiente: um rompimento da barreira do som da História deve ser realizado numa situação em que a imaginação histórica está paralisada e encasulada, como que pelo ferrão de um predador: nenhuma possibilidade de lançar-se no futuro, de reconquistar a diferença, muito menos a Utopia, a não ser inscrevendo-se nela, mas  sem  voltar  atrás.  Essa  inscrição  é  a  aríete2,  a  repetição  delirante  que  trabalha arduamente nessa uniformidade, percorrendo todas as formas da nossa existência (espaço, estacionamento,   shopping,   trabalhar,   comer,   construir)   e   esmurrando-as   até   elas admitirem sua própria identidade estandardizada entre si, para além da cor, para além da textura,  a  suavidade  sem  forma  que  não  é  mais  nem  mesmo  o  plástico,  o  vinil  ou  a borracha  do  passado.  As  frases  são  o  estrondo  dessa  insistência  repetitiva,  o  socar  na vacuidade  do  próprio  espaço;  e  agora  sua  energia  antecipa  o  movimento  coletivo  e  o  ar fresco, a euforia de um  alívio, uma aparição orgástica no tempo, na história e no futuro concreto novamente.

Tal  é,  portanto,  o  segredo  dessa  nova  forma  simbólica,  que  Koolhaas  não  é  o único  de  nossos  contemporâneos  a  mobilizar  (mas  poucos  o  fazem  melhor).  Voltar lentamente  agora,  reentrar,  como  que  numa  câmara  de  descompressão,  no  mundo  mais prosaico  do  shopping,  que  foi  o  ponto  de  partida  dessa  aventura  delirante,  significa também  procurar  pelo  acontecimento,  por  aquilo  que o  impulsionou  e  provocou  uma reação tão monumental e verdadeiramente metafísica. Ele nos foi dado, de fato, bem no início,  numa  frase  improvisada  de  Sze  Tsung  Leong, no  final  de  uma  abordagem  mais comedida  e  focada  da  transformação  comercial  do  globo,  que  é,  afinal,  o  tema  do presente volume: “No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” O mundo no qual estávamos aprisionados é na realidade um shopping-center; a clausura sem vento é a rede subterrânea de túneis destinada à exibição de imagens. O vírus atribuído ao “espaço-lixo”  é,  na  verdade,  o  vírus  do  próprio  shopping;  que,  como  a  “Disneyficação”, gradualmente  se  espalha  pelo  universo  conhecido  como  um  musgo  tóxico.  Mas  o  que  é esse  shopping  do  qual  estamos  tediosamente  falando há  tanto  tempo  (e  os  autores  mais tempo ainda)? 

Teoricamente, ele vem em muitos pacotes (e como era de se esperar, podemos ir a várias  lojas  para  comparar  os  preços  de  nossa  marca  ou  versão  teórica  favorita).  A tradição do marxismo ocidental chamou isso de mercantilização, e nessa forma a análise remonta  pelo  menos  ao  próprio  Marx,  ao  famoso  capítulo  sobre  o  fetichismo  da mercadoria, que abre O Capital. A perspectiva religiosa do século XIX é a meio através do qual Marx põe em primeiro plano uma dimensão especificamente superestrutural das trocas  mercantis  sob  o  capitalismo.  Ele  entendia  “as  sutilezas  metafísicas  e  os  requintes teológicos”  da  mercadoria  como  o  meio  pelo  qual  a  relação  de  trabalho  é  ocultada  do comprador  (do  consumidor?),  e  assim  Marx  apreendeu a  mercantilização  como  uma operação  essencialmente  ideológica,  como  uma  forma de  falsa  consciência  que  tem  a função específica de mascarar  a produção de valor do  consumidor (burguês). História e Consciência  de  Classe,  o  clássico  filosófico  de  Georg  Lukács,  o  texto  inaugural  do chamado  marxismo  ocidental,  desenvolve  essa  análise  no  plano  mais  amplo  da  própria história  da  filosofia,  recolocando  a  mercantilização  no  centro  do  mais  geral  e  extensivo processo social de reificação, tanto física quanto mental.

Não  obstante,  depois  da  Segunda  Guerra  Mundial,  a  orientação  ideológica  desse tema toma um rumo um tanto diferente, num momento em que a venda de mercadorias e artigos  de  luxo,  para  além  daqueles  da  simples  subsistência  ou  reprodução  social, generaliza-se  integralmente  nas  áreas  cada  vez  mais  prósperas  do  Primeiro  Mundo  — Europa  Ocidental,  Estados  Unidos  e,  no  devido  tempo,  Japão.  A  essa  altura,  os situacionistas  e  seu  teórico,  Guy  Debord,  concebem uma  nova  perspectiva  para  a mercantilização  em  seu dictum  de  que  “a  forma  final  do  fetichismo  da  mercadoria é  a imagem.”  Esse  é  o  ponto  de  partida  de  sua  teoria  da  assim  chamada  sociedade  do espetáculo,  na  qual  a  antiga  “riqueza  das  nações”  é  agora  compreendida  como  “uma imensa acumulação de espetáculos.” Com essa perspectiva, estamos muito mais perto de nossas  atuais  suposições  (ou doxa),  a  saber,  de  que  o  processo  de  mercantilização  é menos uma questão de falsa consciência do que um estilo de vida inteiramente novo, que chamamos de consumismo e que se equipara mais a um vício do que a um erro filosófico ou mesmo uma escolha equivocada de partidos políticos. Esse giro é parte da visão mais contemporânea  da  cultura  como  a  substância  mesma  da  vida  cotidiana  (ela  própria  um conceito relativamente novo do pós-guerra, introduzido por Henri Lefebvre). 

As  imagens  do Guide to Shopping são,  portanto,  imagens  de  imagens  e  devem assim  possibilitar  um  novo  tipo  de  distanciamento  crítico,  coisa  que  eles  fazem conceitualmente recolocando a noção de mercadoria em sua situação original nas trocas comerciais.  O  que  nós  fazemos  com  as  mercadorias,  enquanto  imagens,  portanto,  não  é olhar  para  elas.  A  idéia  de  que  compramos  imagens  já  é  uma  “desfamiliarização”  útil dessa  noção;  mas  a  caracterização  de  acordo  com  a  qual  vamos  às  compras  atrás  de imagens  é  ainda  mais  útil,  pois  desloca  o  processo para  uma  nova  forma  de  desejo, situando-o  bem  diante  de  onde  ocorre  a  venda  real  —  quando,  como  se  sabe,  perdemos todo  o  interesse  no  objeto  enquanto  tal.  Quanto  ao consumo,  ele  tem  sido  inteiramente volatizado  nessa  perspectiva,  e,  como  temia  Marx,  tornou-se  completamente  espiritual. Aqui a materialidade é um mero pretexto para o exercício de nossos prazeres mentais: o que  deixou  de  ser  particularmente  material  no  consumo  de  um  carro  novo  e  caro  — lavado e polido com a maior freqüência possível— que alguém dirige pelas ruas locais? 

“No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” Será que isso não revela uma  extraordinária  expansão  do  desejo  em  todo  o  planeta  e  uma  instância  existencial totalmente nova daqueles que podem pagar por isso e que, agora, há muito familiarizados tanto  com  a  vida  esvaziada  de  sentido  quanto  com  a impossibilidade  de  satisfação, constroem um estilo de vida em que uma nova e específica organização do desejo oferece tão-somente  o  consumo  dessa  impossibilidade  e  dessa  ausência  de  sentido?  De  fato, talvez  esse  seja  o  momento  propício  para  retornarmos  ao  delta  do  Rio  das  Pérolas  e  ao socialismo  pós-moderno  de  Deng  Xiaoping,  no  qual  “ficar  rico”  não  significa,  na verdade,  ganhar  dinheiro,  mas,  sim,  construir  imensos  shopping-centers  —  o  segredo deles está no fato de que o “ir às compras” não exige que você compre, e que a forma do shopping é uma performance que pode ser realizada sem dinheiro, desde que os espaços adequados a ela, em outras palavras, o “espaço-lixo”, tenham sido  providenciados.

1 Chuihua Judy Chung, Jeffrey Inaba, Rem Koolhaas e Sze Tsung Leong, eds, Great Leap Forward, Harvard Design School Project on the City, 722 pp, Colônia 2002; e Guide to Shopping, Harvard Design School Project on the City, 800 pp, Colônia 2002.
2 Mutations, Barcelona 2001.

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