David Graeber
Liberation
(Photo Lars Tunbjörk. VU) |
Tradução / No Reino Unido e nos Estados Unidos, fala-se sem parar sobre a necessidade de “reiniciar a economia”, para “fazer nossa economia voltar a funcionar a pleno vapor”, entre outas frases semelhantes. Isso soa como se a economia fosse algum tipo de imensa turbina barulhenta que foi temporariamente desligada e precisa ser colocada novamente em operação o mais rápido possível. Somos frequentemente encorajados a pensar a economia dessa maneira, ainda que nos tenham dito até recentemente que ela era uma máquina que funcionava por conta própria; certamente não tinha um botão para “pausar” ou “desligar” e, se tivesse, pressioná-lo seria instantaneamente catastrófico. Mas o fato de tal interruptor existir é certamente interessante. E alguém poderia indagar: o que exatamente queremos dizer com “a economia”? Afinal, se uma economia é simplesmente a maneira de manter as pessoas vivas, alimentadas, vestidas, alojadas e até mesmo entretidas, então para a maioria de nós a economia ainda estava funcionando perfeitamente bem durante o isolamento. Se a economia não é o fornecimento de bens e serviços essenciais, então o que exatamente ela é?
Obviamente, existem muitas atividades da vida social – de cafés a pistas de boliche ou universidades – que qualquer pessoa razoável gostaria de ver funcionando novamente. Mas isso é o que a maioria das pessoas chama de “vida”, não de “a economia”. Não é sobre a vida, definitivamente, que os políticos estão falando. Mas já que eles estão dizendo às pessoas para arriscarem suas vidas pelo bem da economia, é crucial entender o que querem dizer com este termo. Muito embora seja hoje em dia tratada como um fato natural, a própria ideia de que algo chamado “a economia” exista é um conceito relativamente recente. Essa expressão não significaria nada para Lutero, Shakespeare ou Voltaire. Mesmo após a ampla aceitação de sua existência, a sua referência continuou mudando. Quando o termo “economia política” se popularizou pela primeira vez no início do século XIX, por exemplo, a ideia que ele trazia era muito próxima de “ecologia” (à qual está etimologicamente ligada): ambos se referiam ao que se pensava serem sistemas autorregulados que, se mantivessem seu equilíbrio natural, também produziriam algo a mais (lucro, crescimento, dádivas da natureza...) para os humanos desfrutarem.
Agora, ao que parece, chegamos ao ponto em que “a economia” se refere não a um mecanismo para prover necessidades ou mesmo desejos humanos, mas, em grande medida, para aquele algo a mais adicionado ao topo: aquilo que cresce quando o PIB aumenta. Como acabamos de aprender com o isolamento, isso é basicamente conversa fiada. Em outras palavras, chegamos ao ponto em que “a economia” é, em grande parte, apenas uma palavra-código para a “economia de merda”; é um excesso, mas não um excesso celebrado por sua própria inutilidade, como os aristocratas puderam fazer anteriormente, mas um excesso agressivamente promovido como a esfera da necessidade, da “utilidade”, da “produtividade” ou do realismo obstinado.
Ora, o que estamos sendo solicitados a reiniciar quando reiniciarmos “a economia” é precisamente esse setor de merda, no qual os gerentes supervisionam outros gerentes, o mundo dos consultores de relações públicas, operadores de telemarketing, gerentes de marca, chefes estratégicos e vice-presidentes de desenvolvimento criativo (e suas legiões de assistentes), administradores de escolas e hospitais, aqueles que recebem consideráveis quantias para desenhar os gráficos das ostentosas revistas corporativas internas de empresas nas quais o operariado é acelerado, reduzido ou forçado a cumprir burocracias desnecessárias e intermináveis. Todas aquelas pessoas cujo trabalho é, em última instância, nos convencer de que a existência de seus empregos não é uma aberração. No mundo corporativo, mesmo antes do isolamento, grandes porções de numerosos trabalhadores já estavam intimamente convencidas de que não contribuíam em nada para a sociedade. Agora que quase todos eles estão trabalhando em casa, são forçados a enfrentar o fato de que a parte relevante de seu trabalho pode ser realizada em talvez quinze minutos por dia, ou mesmo as tarefas que realmente precisam ser feitas presencialmente nas empresas onde trabalham (caso existam) estão funcionando melhor na ausência deles.
O véu foi levantado. Os apelos para “fazer a economia funcionar de novo” são, acima de tudo, vozes de políticos temerosos de que, se o véu permanecer levantado por muito tempo, será impossível esquecer o que foi vislumbrado por baixo.
Essa questão é de importância crucial para as classes políticas porque se trata, em última análise, de uma questão de poder. Todos esses exércitos de lacaios, preenchedores de caixinhas, tapaburacos são mais bem compreendidos, penso eu, como o equivalente contemporâneo dos servos feudais. Sua
existência é a consequência lógica da financeirização, de um sistema no qual os lucros corporativos são cada vez mais baseados não na produção ou mesmo no marketing de algo que foi produzido, mas
na aliança (interligada e cada vez mais indistinguível) entre as burocracias corporativas e as governamentais projetadas para produzir dívida privada. Para dar um exemplo do que isso significa na prática: recentemente, uma amiga artista começou a produzir máscaras em massa para distribui-las gratuitamente aos trabalhadores da linha de frente. Rapidamente ela recebeu um aviso de que não teria permissão para distribuir máscaras, mesmo gratuitamente, sem ter solicitado uma licença muito custosa. Isso, por sua vez, exigiria um empréstimo; portanto, a demanda real não é apenas que ela comercialize sua operação, mas também que o sistema financeiro receba sua parte de quaisquer receitas futuras. Obviamente, qualquer sistema baseado na simples extração de dinheiro terá que redistribuir pelo menos uma parte da pilhagem para conquistar a fidelidade de determinadas parcelas da população: estas são, no caso, as classes gerenciais. Por isso, os empregos de merda.
Como a crise de 2008 revelou, os mercados financeiros globais são basicamente apenas formas de
especulação sobre oportunidades futuras de extração de renda. Todo o sistema é, em última análise, fundado no poderio militar estadunidense; em 2003, de fato, Immanuel Wallerstein até sugeriu que era disso que tratava o Consenso de Washington dos anos 1990: em pânico com o declínio de sua dominação industrial e com o avanço inexorável da Europa, do Leste Asiático e dos BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], o império americano fez uma última tentativa para frear seus concorrentes insistindo em “reformas de mercado” cujo efeito principal seria impor aos seus concorrentes o mesmo sistema ridiculamente dispendioso de burocracia corporativa que existia nos Estados Unidos. É esse tipo de pessoas que homens como Donald Trump ou Boris Johnson estão insistindo para que sejam levadas de volta ao trabalho: não as pessoas que produzem as máscaras, mas as pessoas que concebem as taxas de licenciamento.
Obviamente, há muitos trabalhos paralisados com os quais estaríamos melhores se fossem retomados; mas há, talvez, ainda mais trabalhos que nos fariam bem se não existissem mais – especialmente se quisermos evitar uma catástrofe climática total (podemos refletir sobre quanto carbono foi lançado ao ar e quantas espécies foram perdidas para sempre apenas para alimentar a vaidade dos burocratas corporativos que preferem organizar seus subordinados em cintilantes torres de escritórios ao invés de permitir que trabalhem em casa). Se tudo isso não parece extremamente óbvio, se a lógica de reabrir a economia faz algum sentido para nós, é porque fomos ensinados a pensar nas economias em termos desta velha categoria do século XX, a “produtividade”. É verdade inconteste que muitas fábricas (mas não todas) estão fechadas. Eventualmente, os estoques existentes de geladeiras, jaquetas de couro, cartuchos de impressora, produtos de limpeza e afins terão que ser repostos. Mas uma coisa que a crise trouxe à tona é que apenas uma pequena proporção, até mesmo do trabalho mais essencial, é realmente
“produtivo” nesse sentido clássico – isto é, envolve a criação de um objeto físico que não existia anteriormente. Acontece que boa parte do trabalho essencial é na verdade alguma variação do trabalho de cuidado: cuidar ou assistir a alguém, ensinar, transportar, consertar, limpar e manter coisas, atender às necessidades ou fornecer condições para o florescimento de outros seres vivos. As pessoas estão começando a perceber que, desse modo, nosso sistema de remuneração é profundamente perverso, pois quanto mais o trabalho de uma pessoa envolve cuidar ou mesmo beneficiar outras de alguma forma direta, menor é a chance de que ela seja paga por isso.
Pouco se nota o quanto o culto à “produtividade”, que opera principalmente para justificar tais arranjos, chegou, mesmo em seus próprios termos, ao ponto da autossabotagem. Tudo deve ser produtivo: nos Estados Unidos, as estatísticas do Federal Reserve [Banco Central americano] medem até a “produtividade” do mercado imobiliário! O que demonstra, no mínimo, que o termo tem sido usado como um eufemismo para “lucro”. Mas essas estatísticas também mostram que a “produtividade” dos setores de saúde e educação está em queda. Quando investigamos esse ponto, a explicação acaba sendo que esses setores de cuidados são os que mais estão submersos em oceanos cada vez maiores de papeladas que servem, em última análise, para traduzir resultados qualitativos em números que podem ser lançados em planilhas de Excel a fim de provar que esses trabalhos são, de alguma forma, “produtivos” – e, claro, tornando mais difícil ensinar, assistir ou fornecer cuidados aos que precisam. Uma vez que os fazedores de contas e os especialistas em eficiência foram os primeiros a fugir de hospitais e clínicas durante a pandemia, muitos trabalhadores da linha de frente e pacientes agora têm uma experiência direta de como as coisas funcionam de maneira muito mais eficiente sem eles.
Os apelos para “reiniciar a economia” são, enfim, exigências de que corramos o risco de morrer para devolver os fazedores de contas às suas baias de trabalho. Isso é loucura. Se “a economia” deve ter algum significado real, então certamente ela deve se referir aos meios pelos quais os seres humanos cuidam uns dos outros, de modo a permanecerem vivos (em todos os sentidos do termo). O que significaria redefini-la nesses termos? De que tipo de indicadores ela necessitaria? Ou seria preciso se livrar totalmente dos indicadores? E se isso se revelar impossível, se o seu conceito se provar saturado de falsas suposições, então faríamos bem ao nos lembrarmos que, não muito tempo atrás, não existia algo como “a economia”. Talvez essa seja uma ideia que já tenha chegado ao seu fim.
Agora, ao que parece, chegamos ao ponto em que “a economia” se refere não a um mecanismo para prover necessidades ou mesmo desejos humanos, mas, em grande medida, para aquele algo a mais adicionado ao topo: aquilo que cresce quando o PIB aumenta. Como acabamos de aprender com o isolamento, isso é basicamente conversa fiada. Em outras palavras, chegamos ao ponto em que “a economia” é, em grande parte, apenas uma palavra-código para a “economia de merda”; é um excesso, mas não um excesso celebrado por sua própria inutilidade, como os aristocratas puderam fazer anteriormente, mas um excesso agressivamente promovido como a esfera da necessidade, da “utilidade”, da “produtividade” ou do realismo obstinado.
Ora, o que estamos sendo solicitados a reiniciar quando reiniciarmos “a economia” é precisamente esse setor de merda, no qual os gerentes supervisionam outros gerentes, o mundo dos consultores de relações públicas, operadores de telemarketing, gerentes de marca, chefes estratégicos e vice-presidentes de desenvolvimento criativo (e suas legiões de assistentes), administradores de escolas e hospitais, aqueles que recebem consideráveis quantias para desenhar os gráficos das ostentosas revistas corporativas internas de empresas nas quais o operariado é acelerado, reduzido ou forçado a cumprir burocracias desnecessárias e intermináveis. Todas aquelas pessoas cujo trabalho é, em última instância, nos convencer de que a existência de seus empregos não é uma aberração. No mundo corporativo, mesmo antes do isolamento, grandes porções de numerosos trabalhadores já estavam intimamente convencidas de que não contribuíam em nada para a sociedade. Agora que quase todos eles estão trabalhando em casa, são forçados a enfrentar o fato de que a parte relevante de seu trabalho pode ser realizada em talvez quinze minutos por dia, ou mesmo as tarefas que realmente precisam ser feitas presencialmente nas empresas onde trabalham (caso existam) estão funcionando melhor na ausência deles.
O véu foi levantado. Os apelos para “fazer a economia funcionar de novo” são, acima de tudo, vozes de políticos temerosos de que, se o véu permanecer levantado por muito tempo, será impossível esquecer o que foi vislumbrado por baixo.
Essa questão é de importância crucial para as classes políticas porque se trata, em última análise, de uma questão de poder. Todos esses exércitos de lacaios, preenchedores de caixinhas, tapaburacos são mais bem compreendidos, penso eu, como o equivalente contemporâneo dos servos feudais. Sua
existência é a consequência lógica da financeirização, de um sistema no qual os lucros corporativos são cada vez mais baseados não na produção ou mesmo no marketing de algo que foi produzido, mas
na aliança (interligada e cada vez mais indistinguível) entre as burocracias corporativas e as governamentais projetadas para produzir dívida privada. Para dar um exemplo do que isso significa na prática: recentemente, uma amiga artista começou a produzir máscaras em massa para distribui-las gratuitamente aos trabalhadores da linha de frente. Rapidamente ela recebeu um aviso de que não teria permissão para distribuir máscaras, mesmo gratuitamente, sem ter solicitado uma licença muito custosa. Isso, por sua vez, exigiria um empréstimo; portanto, a demanda real não é apenas que ela comercialize sua operação, mas também que o sistema financeiro receba sua parte de quaisquer receitas futuras. Obviamente, qualquer sistema baseado na simples extração de dinheiro terá que redistribuir pelo menos uma parte da pilhagem para conquistar a fidelidade de determinadas parcelas da população: estas são, no caso, as classes gerenciais. Por isso, os empregos de merda.
Como a crise de 2008 revelou, os mercados financeiros globais são basicamente apenas formas de
especulação sobre oportunidades futuras de extração de renda. Todo o sistema é, em última análise, fundado no poderio militar estadunidense; em 2003, de fato, Immanuel Wallerstein até sugeriu que era disso que tratava o Consenso de Washington dos anos 1990: em pânico com o declínio de sua dominação industrial e com o avanço inexorável da Europa, do Leste Asiático e dos BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], o império americano fez uma última tentativa para frear seus concorrentes insistindo em “reformas de mercado” cujo efeito principal seria impor aos seus concorrentes o mesmo sistema ridiculamente dispendioso de burocracia corporativa que existia nos Estados Unidos. É esse tipo de pessoas que homens como Donald Trump ou Boris Johnson estão insistindo para que sejam levadas de volta ao trabalho: não as pessoas que produzem as máscaras, mas as pessoas que concebem as taxas de licenciamento.
Obviamente, há muitos trabalhos paralisados com os quais estaríamos melhores se fossem retomados; mas há, talvez, ainda mais trabalhos que nos fariam bem se não existissem mais – especialmente se quisermos evitar uma catástrofe climática total (podemos refletir sobre quanto carbono foi lançado ao ar e quantas espécies foram perdidas para sempre apenas para alimentar a vaidade dos burocratas corporativos que preferem organizar seus subordinados em cintilantes torres de escritórios ao invés de permitir que trabalhem em casa). Se tudo isso não parece extremamente óbvio, se a lógica de reabrir a economia faz algum sentido para nós, é porque fomos ensinados a pensar nas economias em termos desta velha categoria do século XX, a “produtividade”. É verdade inconteste que muitas fábricas (mas não todas) estão fechadas. Eventualmente, os estoques existentes de geladeiras, jaquetas de couro, cartuchos de impressora, produtos de limpeza e afins terão que ser repostos. Mas uma coisa que a crise trouxe à tona é que apenas uma pequena proporção, até mesmo do trabalho mais essencial, é realmente
“produtivo” nesse sentido clássico – isto é, envolve a criação de um objeto físico que não existia anteriormente. Acontece que boa parte do trabalho essencial é na verdade alguma variação do trabalho de cuidado: cuidar ou assistir a alguém, ensinar, transportar, consertar, limpar e manter coisas, atender às necessidades ou fornecer condições para o florescimento de outros seres vivos. As pessoas estão começando a perceber que, desse modo, nosso sistema de remuneração é profundamente perverso, pois quanto mais o trabalho de uma pessoa envolve cuidar ou mesmo beneficiar outras de alguma forma direta, menor é a chance de que ela seja paga por isso.
Pouco se nota o quanto o culto à “produtividade”, que opera principalmente para justificar tais arranjos, chegou, mesmo em seus próprios termos, ao ponto da autossabotagem. Tudo deve ser produtivo: nos Estados Unidos, as estatísticas do Federal Reserve [Banco Central americano] medem até a “produtividade” do mercado imobiliário! O que demonstra, no mínimo, que o termo tem sido usado como um eufemismo para “lucro”. Mas essas estatísticas também mostram que a “produtividade” dos setores de saúde e educação está em queda. Quando investigamos esse ponto, a explicação acaba sendo que esses setores de cuidados são os que mais estão submersos em oceanos cada vez maiores de papeladas que servem, em última análise, para traduzir resultados qualitativos em números que podem ser lançados em planilhas de Excel a fim de provar que esses trabalhos são, de alguma forma, “produtivos” – e, claro, tornando mais difícil ensinar, assistir ou fornecer cuidados aos que precisam. Uma vez que os fazedores de contas e os especialistas em eficiência foram os primeiros a fugir de hospitais e clínicas durante a pandemia, muitos trabalhadores da linha de frente e pacientes agora têm uma experiência direta de como as coisas funcionam de maneira muito mais eficiente sem eles.
Os apelos para “reiniciar a economia” são, enfim, exigências de que corramos o risco de morrer para devolver os fazedores de contas às suas baias de trabalho. Isso é loucura. Se “a economia” deve ter algum significado real, então certamente ela deve se referir aos meios pelos quais os seres humanos cuidam uns dos outros, de modo a permanecerem vivos (em todos os sentidos do termo). O que significaria redefini-la nesses termos? De que tipo de indicadores ela necessitaria? Ou seria preciso se livrar totalmente dos indicadores? E se isso se revelar impossível, se o seu conceito se provar saturado de falsas suposições, então faríamos bem ao nos lembrarmos que, não muito tempo atrás, não existia algo como “a economia”. Talvez essa seja uma ideia que já tenha chegado ao seu fim.
Sobre o autor
David Graeber é autor de Debt: 5,000 Years of History (2013) e Bullshit Jobs (2018), publicados pela Les Liens qui libéré.
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