4 de dezembro de 2022

Uma viagem literária ao coração da Rússia

Na terra de Tolstoi, Turgenev e agora Putin, quais são as histórias que os russos estão contando a si mesmos?

Karl Ove Knausgård

The New York Times

Minizaitunya Ibyatullina, 102, em sua casa em Borovka, um vilarejo no Tartaristão. A foto é de seu marido, que morreu na guerra em 1943. Créditos: Lynsey Addario para The New York Times

Tradução / A Rússia é uma terra de histórias. Histórias do czar e de seu povo, de Lênin, da revolução e da Grande Guerra Patriótica; da transformação de um país retrógrado num Estado industrial poderoso e moderno; do Sputnik, de Laika e de Gagarin; depois, do reino de terror de Stálin, de um país que se calcificou, estagnou e acabou sucumbindo; e de Vladimir Putin, o oficial da KGB que chegou ao poder em meio ao caos e restabeleceu a ordem. E como ele fez isso? Por meio de histórias do passado recontadas de modo a oferecer uma justificativa à Rússia de hoje.

Por quase toda a minha vida, essas histórias exerceram uma poderosa atração sobre mim. Na minha infância, a Rússia era não apenas um país fechado e, portanto, misterioso, mas também uma antítese do que éramos: nós éramos livres, os russos, oprimidos; nós éramos bons, os russos, maus. À medida que eu crescia e começava a ler, a situação se tornava mais complicada, porque era da Rússia que provinha a melhor literatura e a mais intensa: Crime e Castigo, de Dostoiévski; Guerra e Paz, de Tolstói; Diário de um Louco, de Gógol. Que país era aquele em que as almas eram tão profundas e o espírito tão indômito? E por que foi lá que a noção de injustiça profunda inerente à sociedade de classes se transformou em ação, primeiramente na Revolução de 1917 e, depois, nos setenta anos da ditadura do proletariado? Por que a bela história da igualdade entre os homens acabou em horror, brutalidade e infelicidade?

Para mim, a Rússia continua sendo um país enigmático. Todo dia chegam notícias – elas falam de Putin, de dissidentes que ele mandou prender e de seu envolvimento nas eleições de países rivais –, todas contribuindo para a ideia de que a “Rússia” é uma entidade singular, compreensível e bem delimitada. Mas o que pensam as pessoas que vivem dentro dessa entidade? O que é a Rússia para elas e que histórias elas contam a si mesmas, 100 anos após a revolução e mais de 25 anos depois da queda do comunismo?

Eu sempre quis ver a Rússia com meus próprios olhos, conhecer as pessoas que moram nessa entidade e descobrir o que é ser russo para elas. Foi por essa razão que, numa manhã de outubro, bem cedo, me vi dirigindo um carro de Moscou até a propriedade de Turguêniev, no campo, acompanhado de uma fotógrafa e de uma intérprete. Se eu queria ver como era a vida na Rússia, não poderia pensar num ponto de partida melhor do que o mundo de Turguêniev, a zona rural que forneceu o cenário para seu segundo livro: Memórias de um Caçador.

Publicado em 1852, esse livro é uma coletânea de histórias simples sobre um caçador que perambula pelos bosques. Nele não há nada da ferocidade e da profundidade emocional e psicológica de Dostoiévski, nem da complexidade épica de Tolstói ou de sua capacidade de abarcar uma sociedade inteira com poucas pinceladas. Essas histórias de Turguêniev são, em todos os aspectos, modestas e até mesmo desprovidas de propósito. Um homem vaga pela floresta com uma espingarda no ombro, troca algumas palavras com quem encontra, eventualmente mata um ou dois passarinhos ou, a caminho de casa, passa a noite num celeiro – e é só isso, essa é a história toda. Não obstante, o livro figura entre as maiores obras da literatura universal, em grande parte pelo fato de seu autor se aproximar tanto do mundo que descreve: a sociedade russa da década de 1840. Suas personagens e descrições não conduzem a nada que esteja além delas próprias, não são, em si, parte de uma sequência maior de acontecimentos, encontram-se apartadas de tudo – menos de seu tempo e de seu lugar específicos. E é a partir daí que experimentamos o mundo.


A paisagem que atravessávamos era plana e monótona; o céu, cinza pálido. Às vezes passávamos por um posto de gasolina decaído, às vezes surgia uma cidadezinha ou a floresta desembocava em campo aberto. Então, em meio à profusão de árvores, de repente um parquezinho surgiu à direita. Vi uma parede preta e uma chama que ardia.

“O que era aquilo?”, perguntei.

“Só um monumento à guerra”, a intérprete respondeu. O nome dela era Oksana Brown, uma jovem produtora de telejornal que às vezes trabalha para jornalistas estrangeiros.

“Não, espere aí, é perfeito. Eu quero ver”, disse.

“Mas quase toda cidade russa tem um monumento como esse”, ela retrucou, aparentemente sem entender por que eu queria parar justo ali.

A fotógrafa, Lynsey Addario, caminhava pelo parque fazendo fotos por conta própria, enquanto Brown e eu nos detínhamos diante da parede de mármore preto e observávamos a chama oscilando com a brisa. À nossa direita, outra parede, com retratos de soldados ao lado de um canhão pintado de verde, a boca apontando para o céu cinza.

Entre Kazan e Samara, na Rússia. Créditos: Lynsey Addario para The New York Times

“O que diz a inscrição?”, eu quis saber.

“Seu nome é desconhecido, mas seu feito heroico é imortal”, Brown traduziu. “Honra eterna aos heróis que perderam a vida na luta pela liberdade e pela independência da pátria durante a Grande Guerra Patriótica.”

Ela explicou que só os ocidentais chamam a Grande Guerra Patriótica de Segunda Guerra Mundial.

De volta à estrada, eu pensava na poderosa eficácia daquela chama simples no monumento, que conferia antiguidade à floresta e certa imortalidade aos soldados mortos, inserindo-os nas fileiras eternas dos tombados. Na realidade, a morte era pequena e suja, nada que se devesse almejar ou celebrar. Aquele monumento, porém, ajudava a alçá-la do mundo real ao ideal. A chama era o agente dessa elevação; presa à materialidade encardida, erguia-se em direção ao éter puro; movia-se como se estivesse viva, mas estava morta.


Pouco a pouco a paisagem rural foi se tornando mais suave e, de repente, ao atingirmos o topo de uma colina, ela mudou por completo: a floresta, que durante horas erguera uma cerca dos dois lados da estrada, abriu-se numa planície vasta e bela; mais à frente, paredes de árvores com todas as tonalidades do outono marchavam rumo ao horizonte; o céu parecia mais alto, inundando de luz o cenário.

Então Turguêniev não exagerou as belezas do mundo de sua infância, pensei. Porque aquele mundo ao qual havíamos chegado era, definitivamente, o dele, aquele era o campo que ele atravessara a cavalo e descrevera em Memórias de um Caçador. Meia hora depois saímos da autoestrada e pegamos uma sacolejante estradinha que nos conduziu, em primeiro lugar, a uma aldeia e, depois, a uma propriedade particular, com estacionamento e vários pequenos escritórios.

Não havia ninguém por perto, estava tudo muito quieto. As nuvens pendiam baixas, a umidade pesava no ar e parecia deter todo e qualquer som em pleno voo. A um canto, erguia-se uma capela de pedra, com o rodapé forrado de mofo e, cerca de 100 metros adiante, o que só podia ser a sede. Eu esperava encontrar algo grande, monumental, como uma velha mansão inglesa, porque os Turguêniev eram uma família nobre, mas aquilo era uma casa baixa de madeira, pintada de roxo e coberta de intricados entalhes.

Não despertava nenhum sentimento, nem um pingo de história.

Tentei imaginar Turguêniev saindo pela porta e caminhando em nossa direção, mas era impossível associá-lo conosco e, depois, com o presente.

Seguimos um guia jovem, barbado e de óculos, que nos explicou que a maioria das construções originais havia sido destruída: aquelas eram réplicas exatas. Alguns objetos da casa, porém, estavam em exposição nas salas da casa vizinha. Havia mesas e cadeiras, retratos e quinquilharias, estantes com livros. Contudo, embora os objetos fossem autênticos, eles não falavam: simplesmente estavam ali, mudos, apresentando o passado.

As únicas peças de algum interesse eram a arma, a cartucheira e o embornal que Turguêniev levava em suas expedições de caça. Elas me fizeram pensar em Hemingway, que se inspirou nas histórias de caçadas do autor russo ao escrever seus Contos de Nick Adams, e em como ele se empenhou para atingir aquela mesma intensidade sem esforço, e pode até ter tentado, mas sua receptividade para o mundo nunca chegou perto da de Turguêniev, até porque ele a impediu. E havia um sofá em que Tolstói se sentara; os dois grandes escritores russos foram não só contemporâneos, mas moravam a poucas horas de distância. De início, foram grandes amigos, mas pouco a pouco Tolstói passou a odiar Turguêniev e chegou mesmo a desafiá-lo para um duelo. Turguêniev observava os camponeses, mas não se envolveu tão diretamente em suas vidas como Tolstói, que mergulhou cada vez mais fundo na busca da essência da alma russa, não apenas praticando os princípios da simplicidade e da pobreza, mas também os defendendo como um ideal para todos.

Caminhamos pelo grande parque, onde árvores se enfileiravam longa e ordenadamente até encontrar a desordem da floresta. Além de nós, não havia ninguém. O ar úmido e frio pairava imóvel entre os troncos das árvores.

“Tem sempre tão pouca gente aqui?”, perguntei ao guia.

Ele balançou a cabeça com vigor.

“Não, de modo algum. Em geral isso aqui fica cheio de estudantes que vêm de toda a Rússia. E ano que vem é o bicentenário do nascimento de Turguêniev. É por isso que estamos reformando tudo. Vamos receber uma porção de visitantes. Mas hoje é segunda-feira, e estamos em outubro…”

Ele se deteve ao lado de uma árvore alta circundada por uma cerca baixa.

“Este carvalho foi plantado pelo próprio Turguêniev”, informou.

À direita da árvore, erguiam-se o que me pareceu serem túmulos.

“O que são?”, perguntei, apontando para eles.

“São túmulos de soldados”, o guia me explicou.

“Aqui?”

“É, soldados que lutavam contra os alemães durante a guerra e tombaram aqui.”

Ao partirmos, pouco depois, foi a imagem daqueles túmulos que restou, talvez porque a violência parecesse tão inesperada naquele lugar, no mundo isolado do museu. Os túmulos e os dois cavalos que vimos deitados na grama, uma égua e seu filhote, pretos e belamente reluzentes no ar úmido.


Antes da revolução, a Rússia era em grande parte uma sociedade agrária. Na virada do século XX, 80% dos russos eram camponeses. Pobres, sem instrução, supersticiosos e analfabetos. Em muitos lugares, seu modo de vida não mudara quase nada desde a Idade Média. Leon Trótski começa A História da Revolução Russa observando que “o traço essencial e o mais constante da história da Rússia é a lentidão com que o país se desenvolveu, apresentando como consequência uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva e de baixo nível cultural”. Em A Tragédia de um Povo, o historiador britânico Orlando Figes descreve um mundo primitivo no qual cada aspecto da vida era governado por um conformismo inexorável: todos usavam as mesmas roupas, o mesmo corte de cabelo, todos comiam da mesma tigela e dormiam no mesmo quarto. “O recato praticamente não tinha lugar no mundo camponês”, Figes escreve. “Os banheiros eram ao ar livre”, e “médicos da cidade chocavam-se com o costume camponês de cuspir nos olhos de uma pessoa para livrá-la do terçol, de alimentar as crianças boca a boca e de acalmar bebês do sexo masculino chupando-lhes o pênis.”

Essas descrições do campesinato russo do século XIX como atrasado e primitivo não faltam com a verdade, mas são feitas a partir de uma distância muito grande e se caracterizam pela generalização extrema. A distância, claro, é necessária; ela ajuda o historiador a entender e explicar o desenvolvimento social, assim como ajuda o político a lidar com problemas sociais. Distância semelhante, no entanto, permitiu aos bolcheviques destruir a estrutura de sua sociedade sem nem pensar nas centenas de milhares e, posteriormente, nos milhões que morreram ao longo desse processo, porque não eram pessoas reais, e sim meros “camponeses” vistos de uma perspectiva que apaga toda e qualquer individualidade. E se os dados estatísticos gerais indicavam uma melhoria – bom, então tudo isso tinha valido a pena.

Memórias de um Caçador mostra a cultura que Trótski e Figes descrevem, mas a mostram de dentro, sem distância nenhuma. Um dos melhores contos fala de um homem que, ao retornar da caçada, se perde e então, no escuro, observa duas fogueiras que ardem num campo mais abaixo. O que se revela é que são garotos acampados a cuidar dos cavalos. Eles se reúnem em torno das fogueiras e contam histórias para passar o tempo, a maior parte delas sobre acontecimentos sobrenaturais. Turguêniev dá vida a esses garotos, cada um com sua aparência e personalidade própria, e há algo profundamente comovente no modo como ele os retrata; leva-os muito a sério, confere-lhes dignidade, e as histórias que contam um ao outro, ali, no meio da noite, são, em si, incandescentes. Não se trata da classe camponesa supersticiosa e reacionária dos revolucionários e historiadores; são cinco meninos, cada um com sua vida, entretecida dos fios de sua linguagem, com sua cultura e sua camaradagem à beira da fogueira.

Memórias de um Caçador não era, de modo algum, uma declaração política, mas o livro teve grande impacto político na Rússia dos anos 1850, possivelmente porque, desprovido de um propósito político ou literário, mostrava a vida como ela era, e não o que ela simbolizava.

Naquela época, a servidão ainda prevalecia na Rússia, o que significa dizer que a nobreza era proprietária não apenas das aldeias situadas em suas terras, mas também dos camponeses que viviam nelas. Tratava-se, em outras palavras, de uma forma de escravidão. O livro de Turguêniev contribuiu bastante para atiçar a crítica crescente à servidão, abolida nove anos mais tarde, em 1861, pelo czar progressista Alexandre II. Este, por sua vez, seria assassinado vinte anos depois, sob os olhos do filho e do neto, que se tornariam os dois czares seguintes: Alexandre III e Nicolau II. Não deixa de ser razoável, portanto, imaginar que o assassinato que testemunharam tenha cumprido papel decisivo na transformação de ambos em reacionários, autocratas antiliberais tão contrários a qualquer tipo de reforma e tão dispostos a calar toda e qualquer oposição que, por fim, a revolução se tornou inevitável.


Estava escuro quando encontramos o local exato em que os garotos do conto de Turguêniev estavam. Chamava-se “prado de Biejin”, e foi uma velha senhora que nos mostrou o lugar. Ela trazia um lenço na cabeça e estava trabalhando sozinha no campo, com uma carriola ao lado, apanhando milho em meio ao restolho.

“Você gostaria de falar com ela?”, a fotógrafa me perguntou do banco traseiro.

“Não, acho que não”, respondi.

“Bom, de qualquer modo, eu queria tirar umas fotos”, Addario disse.

Brown e Addario desceram na direção da cerca. A intérprete disse algo, e a mulher respondeu. De repente, percebi que eu tinha que falar com ela, que o museu, as árvores e os livros velhos, as coisas nas quais me concentrara até aquele momento, representavam apenas minhas ideias acerca do país que visitava.

O que eu estava fazendo afinal?

Toda a minha visão da Rússia se baseava em mitos e imagens românticas. Que tipo de arrogância me fazia acreditar que eu seria capaz de dizer alguma coisa sobre a Rússia de verdade depois de uma viagem de nove dias por um cantinho minúsculo desse país tão vasto?

Era como descrever um balde d’água com o intuito de dizer alguma coisa sobre o oceano.

Desci e me juntei às duas na cerca.

“Ela diz que não quer ser fotografada”, a intérprete informou.

“Por que não?”

“Diz que só está juntando um pouco de milho para as galinhas dela”, Brown me explicou. “Mas que a terra não lhe pertence.”

“Entendo”, disse.

Mas não era nenhum crime – o milho já tinha sido colhido –, e, depois de algumas idas e vindas, a mulher concordou em nos falar sobre sua vida.

“Pergunte onde ela mora”, Addario sugeriu enquanto tirava uma foto. “Pergunte o que ela faz, se tem família.”

Pelo que parecia, a mulher havia nascido numa aldeiazinha pouco mais adiante. Mudara-se para Moscou aos 15 anos e tinha morado lá até poucos anos atrás, quando retornara à aldeia natal para tomar conta da mãe, depois da morte do pai.

“Quando eu era menina, isto aqui era cheio de gente”, ela contou. “Era um lugar próspero, movimentado, umas quinze ou vinte famílias moravam aqui”, prosseguiu, apontando casinhas sem pintura na estrada. “Mas agora foram todas embora.”

“A senhora leu Turguêniev?”, perguntei.

“Li Memórias de um Caçador. Se passa nesta região.”

“E gostou?”

Ela sorriu pela primeira vez.

“Hoje, leio o livro para meus netos.”

“Este lugar agora é diferente de quando Turguêniev escreveu sobre ele?”

“O lugar é o mesmo. Mas a vida está diferente. Muito diferente.”

Ela apontou para o prado, e seguimos adiante. As árvores que guarneciam a colina além dele pareciam absorver a escuridão. Erguiam-se numa silhueta de tinta preta contra o céu já de um brilho fraco. Fez-se um silêncio absoluto, nossos passos eram o único som.

Depois, o canto distante de um pássaro.

Os meninos do conto de Turguêniev poderiam estar ali naquele momento, pensei. E seus netos poderiam ter se sublevado contra o czar, e os netos deles poderiam ter sido esmagados pela revolução. Fiquei olhando e ouvindo, esperando alguma espécie de conexão. Tudo à minha volta estava exatamente como havia de ter estado na década de 1840. As árvores, o prado, o vale, as colinas, o crepúsculo, tudo ali. E, no entanto, tudo estava diferente.

O passado estava em nós, pensei, e não no mundo.


O trem para Kazan estendia-se por quilômetros, ou assim me pareceu, ao longo da plataforma da estação ferroviária de Moscou. A locomotiva verde e a interminável fila de vagões cinza tinham um aspecto do tempo da guerra. Nós nos instalamos num compartimento da segunda classe com quatro leitos, e, enquanto o trem partia lentamente da estação, apanhei meu livro sobre Lênin, enfiei minha mala embaixo da cama e me acomodei junto da janela.

O livro, Lênin, o Ditador: Um Retrato Íntimo, de Victor Sebestyen, era curioso. O escritor preferido de Lênin sempre havia sido Turguêniev. Estranhei, porque Lênin foi um dos homens mais obstinados que já existiram; era a um só tempo de uma parcialidade fervorosa e emocionalmente esquivo, mas, ainda assim, durante todo o seu exílio, e onde fosse que estivesse – Zurique, Londres ou Paris –, fazia questão de ter consigo a obra completa de Turguêniev.

Eu estava lendo sobre Lênin porque os lugares para onde iríamos nos sete dias seguintes haviam sido determinados, ao menos em parte, tendo-o como referência: em poucas semanas, a Revolução de Outubro de 1917, na qual ele tomara o poder na Rússia quase sozinho, faria exatos 100 anos. Rumávamos para Kazan, onde Lênin estudou direito e se radicalizou, e, depois, para Iekaterimburgo, onde, por ordem dele, em 1918 o czar Nicolau e sua família foram executados num porão. Esse ato, em sua brutalidade implacável, marcou o fim da velha Rússia e o começo da nova. Tudo do velho mundo seria erradicado para dar lugar ao novo; não havia preço alto demais nem haveria caminho de volta.

Eu estava desesperado por um cigarro. Brown, a intérprete, me disse que era proibido fumar no trem, mas, se comprássemos alguma coisinha, uma barra de chocolate ou um chá, certamente algum funcionário poderia sugerir uma solução para o problema.

Terminado o chá, eu a segui pelo vagão. Foi naquele momento que a condutora emergiu de seu cubículo. Exibia um rosto solene, quase austero. Então, abriu a porta que dava para a passagem estreita entre vagões e disse: “Fume ali.”

Pisei no chão de metal, sacolejante e oscilante. Um dos lados era aberto, de modo que o som tonitruante das rodas preenchia o espaço minúsculo. A condutora fechou a porta, e eu me inclinei para acender meu cigarro.

Quando voltei, fomos para o vagão vizinho. Era da terceira classe: não tinha divisórias, apenas beliches de ambos os lados e um bocado de gente. Pés e cabeças dos que dormiam nos leitos superiores ficavam a poucos centímetros do meu rosto, enquanto eu avançava, e o fato de que dormissem inteiramente descobertos me fez sentir como se invadisse um espaço privado. Mas nenhum dos passageiros parecia compartilhar daquela minha preocupação; agiam como se estivessem na sala de estar de suas casas.

Nenhum trem escandinavo podia viajar lotado daquele jeito desde o século XIX, pensei.

Detivemo-nos diante de três mulheres que conversavam sentadas a uma janela; deviam ter perto de 60 anos. Perguntei à intérprete se ela podia nos apresentar. Foi o que ela fez, e as três me dirigiram olhares atentos e de expectativa.

“Para onde estão indo?”, perguntei.

“Izhevsk”, uma delas respondeu. “Onde fabricam os Kalashnikov.”

“E estavam em Moscou?”

Elas assentiram.

“Fazendo o quê?”

Entreolharam-se.

“É segredo”, disse uma delas. As outras duas riram.

Atrás de mim, ouvi alguém dizer alguma coisa, e, quando me voltei, vi um velho, provavelmente perto dos 80 anos, segurar a mão de Addario e beijá-la.

Todos à minha volta riram, inclusive a fotógrafa.

A mulher então disse alguma coisa para Brown, que sorriu.

“O que foi que ela disse?”

“Que você é muito bonito.”

“Ah, não”, disse eu.

“Vai escrever isso?”

“Claro que não”, respondi. “Mas pergunte a ela, por favor, se podemos voltar mais tarde para continuar a conversa.”


Ao voltarmos àquele vagão, lá fora estava escuro como breu, e as três mulheres estavam sentadas a uma mesinha sobre a qual havia uma tigela de amendoins.

Parecia tudo mais quieto agora; mais passageiros dormiam, e os que seguiam acordados falavam mais baixo.

A mulher que mais falara anteriormente devia ter pensado um pouco sobre o que iria dizer, porque começou a falar de si própria ainda antes que eu formulasse qualquer pergunta. Seu nome era Natalya. As duas amigas se chamavam Olga e Zinaida. Natalya nos contou que fora criada num orfanato, que não se lembrava dos pais, mas que tinha uma irmã de quem havia sido separada e a quem jamais tornara a ver. Passara a vida toda procurando por ela, mas ainda não sabia onde ela estava.

“Naquela época, era comum separar irmãos na hora de encaminhá-los”, ela disse. “Hoje não fazem mais isso, mas o sistema era assim. Mandaram minha irmã para outro lugar. Depois de adulta, voltei lá e consegui um emprego no mesmo lar onde eu tinha ficado, porque achei que poderia roubar a ficha da minha irmã e descobrir onde ela estava. Só que não achei coisa nenhuma. Agora, escrevi para os produtores de um programa da tevê estatal que ajuda a reunir membros separados de uma mesma família, e aguardo resposta. Estou esperançosa!”

“Quando foi que você escreveu para eles?”

“Faz dois anos.”

Deve ter ocorrido a ela, ao dizê-lo, que aquilo não soava muito promissor, porque ela olhou para mim e acrescentou: “Pode ser difícil rastrear uma pessoa, até mesmo para os repórteres. Às vezes pode levar até cinco anos.”

O estrondo constante e ritmado das rodas do trem sobre os dormentes reverberava por todo o vagão. De vez em quando as laterais balançavam com a mudança na pressão do ar lá fora, e, cada vez que a porta próxima de nós se abria, todos os sons do trem se intensificavam numa cacofonia infernal de chacoalhões, estrondos e assovios provocados pelo ar proveniente do espaço entre os dois vagões.

Natalya começou a discorrer sobre sua fé cristã. Tinha visitado Israel no ano anterior para ver o lugar onde Jesus tinha sido crucificado.

“Uma vez, rezei para que uma mulher tivesse um bebê”, contou, “e ela teve. Para mim, rezei para encontrar um marido. E então conheci esse homem maravilhoso!”

As outras duas riram.

A torrente de língua russa fluía fácil, quase onírica, para um lado e outro do compartimento semiadormecido, e no meio dela ouvi a palavra “Putin”.

“Ela falou alguma coisa sobre Putin?”, perguntei à intérprete.

“Falou, sim. Está dizendo que a mãe dela é grande fã do Putin. Todas elas são fãs dele.”

“Amamos nosso país”, Natalya disse, “e, pela primeira vez, temos um presidente cristão, um presidente ortodoxo.”

Em seguida, ela pegou uma revista que estava sobre a mesa para nos mostrar a capa. Nela, todas as fotos eram de Putin. Numa das fotografias, ele aparecia nu até a cintura.

“Está vendo isto aqui? Será que Trump pode exibir o corpo dessa forma? Ele é velho. O corpo dele não passa de um amontoado de banha!”

As três riram alto.

“Já se passaram 100 anos desde a revolução. O que isso significa para vocês?”

“Não damos bola para isso”, Natalya respondeu. “Foram 100 anos sem Deus. Puseram abaixo todas as igrejas. Agora elas estão sendo reconstruídas e a gente pode ir à igreja sem medo. Aqui, nesta cidade, tem um ícone da Virgem Maria. É muito, muito antigo. Quando acharam ele, estava todo preto. Agora está clareando aos poucos. A cada ano clareia um pouco mais.”

Terminada a entrevista, me dirigi ao espaço minúsculo entre os vagões para fumar outro cigarro. Quando abri a porta, senti a mão no meu ombro. Olhei para trás. Era a jovem condutora de rosto austero.

“Não, não”, ela agitava o dedo. “Não pode mais fumar.”

Mas que inferno!

Retornei ao nosso compartimento e me sentei à janela. No beliche em frente, Addario e Brown já dormiam. Cerca de uma hora mais tarde, o trem parou e eu espiei pela janela. Escuridão total do lado de fora, nenhuma estação à vista. Levantei e fui investigar. Abri a porta para o pequeno espaço entre os vagões, e lá estava a condutora, tragando seu cigarrinho.

Senti vontade dizer: “Arrá! Te peguei!”

Mas, em vez disso, olhei-a nos olhos por um segundo, apenas o suficiente para ela saber que eu sabia; depois, fechei a porta e voltei para meu lugar.


Há um prazer especial em chegar a uma cidade à noite, no escuro, sem ter ideia de que aspecto ela tem até acordarmos na manhã seguinte e sairmos às ruas, nas quais então – sem a aclimatação gradual à chegada – nos sentimos subitamente lançados.

Que tipo de cidade era Kazan?

O bairro em que me vi era moderno e bem conservado. A mesquita magnífica, que eu vira da janela do hotel ao despertar, era novinha em folha. Quando saí para um passeio, até o velho quiosque de madeira ao qual subi – octogonal, com uma cúpula de metal verde encimada por uma agulha – parecia recém-reformado, antes uma reconstrução que um símbolo do passado.

Kazan, a capital do Tartaristão, é também a cidade onde Lênin estudou direito e foi expulso da universidade. Seu pai trabalhava no serviço público do czar, e a vida do jovem Lênin girava em torno da escola, da literatura e do xadrez – era exímio jogador. Então, dois acontecimentos mudaram sua vida. Em primeiro lugar, seu pai, aos 54 anos, teve um derrame e morreu de repente; em segundo, o irmão que ele idolatrava, Aleksander, foi executado por conspirar para assassinar o czar.

Aleksander estudava ciências naturais na Universidade de São Petersburgo quando se envolveu com uma célula estudantil revolucionária. Para ajudar a financiar a conspiração, vendeu uma medalha de ouro que havia recebido por seu desempenho acadêmico. Lênin nada sabia de suas atividades revolucionárias e, até então, não possuía nenhum interesse em política. A execução de Aleksander mudou tudo. Lênin não apenas ingressou de imediato numa célula revolucionária na Universidade de Kazan como também, segundo descreve Sebestyen, sua personalidade passou por uma transformação radical. A felicidade e a alegria da pré-adolescência desapareceram, dando lugar a um jovem determinado, reservado, altamente disciplinado e obstinado. Fica a impressão de que, a partir do momento em que foi expulso da universidade, ele nunca mais olhou para trás: dedicou o resto da vida ao trabalho em prol da revolução, uma revolução que ele não podia ter certeza de que algum dia iria de fato acontecer.

E quando ela enfim chegou, ele a forçou a seguir a linha que ele próprio traçara. Os bolcheviques eram ateus, e a religião foi extinta por todo o novo Estado russo e reprimida ao longo de três gerações, até a queda da União Soviética, em 1991, quando então retornou vingativa. Isso era bastante visível em Kazan. Há quase 200 minorias étnicas e nacionais na Rússia. A maior delas é composta pelos tártaros, que perfazem cerca de 4% da população, boa parte deles praticante do islamismo, o que significa que Kazan tem, portanto, uma das maiores comunidades muçulmanas de toda a Rússia.

Naquele fim de tarde, estacionei nosso carro alugado junto à calçada oposta ao Museu Nacional da República do Tartaristão. Eram seis da tarde, e fomos até lá para apanhar Dina Khabibullina, uma jovem tártara praticante do islamismo. Nós a havíamos conhecido mais cedo naquele mesmo dia e conversamos sobre como era pertencer a uma minoria cultural e religiosa na Rússia. Ela então nos convidou para jantar em seu apartamento.

Dina tinha 29 anos, ficamos sabendo, e um pós-doutorado na Academia de Ciências da República do Tartaristão. Além disso, trabalhava no museu e organizava excursões a atrações turísticas locais. Estava grávida de seis meses. Havia tido uma criação não muçulmana, numa casa em que mal se notava a presença da cultura tártara e onde predominava a língua russa. Então, aos 19 anos, experimentara um súbito despertar. Convertera-se ao islamismo e pusera-se a estudar o idioma tártaro por conta própria. Muitos de seus amigos fizeram o mesmo.

A religião sempre estivera ali, nas profundezas da sociedade, aguardando pelo momento certo? Atendia, talvez, a uma necessidade tão poderosa nas pessoas que era simplesmente indestrutível?

“O que fez você se voltar para a fé?”, perguntei a Dina.

“Eu tinha 19 anos, e meu pai morreu”, ela contou. “Surgiu então o dilema: ele deveria ser enterrado de acordo com a religião muçulmana? Naquele momento, compreendi que há uma explicação para tudo. Perguntei a mim mesma o que poderia fazer por ele depois de sua morte. E, nos ensinamentos do islã, lê-se claramente: você deve dar esmolas aos pobres, fazer a peregrinação a Meca e sacrificar um bode.”

O conjunto habitacional onde Dina morava parecia ter sido construído na década de 50. Os prédios de tijolo ao longo de ruas estreitas, circundados por árvores altas, eram velhos e maltratados pelo tempo, mas ainda assim bonitos, como costumam ser as edificações de épocas passadas.

Ela nos conduziu escada acima até o terceiro andar, onde o filho, Gizzat, de 7 anos, a aguardava, com o marido e a mãe dela. O pai do menino, o primeiro marido de Dina, tinha morrido, como deduzi mais tarde.

O apartamento era pequeno, composto de um quarto onde dormiam os adultos e o menino, um banheiro minúsculo e uma cozinha estreita. Mas estava quentinho ali dentro, e Dina já não parecia tão na defensiva como se mostrara antes, naquele mesmo dia: estava alegre e relaxada. Depois de se despedir da mãe, que não ficaria para o jantar, ela foi para a cozinha, enquanto o marido, Damir Dolotkazin, estendia um tapete para as orações no chão da sala, e o menino o observava, sentado no sofá-cama.

Damir parecia ter uns 30 anos; era magro, cabelos pretos e olhos intensos, mas doces. Descalço, ele se postou a um canto da sala e começou a cantar. A música, estranha a meus ouvidos, encheu o cômodo, e fiquei surpreso com o modo pelo qual ela afetou todo o apartamento. De repente, a atmosfera se pôs solene, mas seguia presente e viva a rotina diária – Dina cozinhando, o filho dela no sofá com os pés balançando, o helicóptero de brinquedo em cima da estante de livros.

Ele se ajoelhou e curvou-se para o chão. Depois, novamente de pé, sussurrou uma oração quase silente. Em seguida enrolou o tapete e a solenidade se desfez tão abruptamente quanto havia surgido.

Da cozinha, Dina chamou. Com a concha, serviu-nos tigelas de uma sopa clara, com pérolas de gordura, legumes e pedaços de uma carne escura.

A intensidade que eu detectara de início nos olhos de Damir revelou-se entusiasmo, ou transformou-se em entusiasmo. Ele comia com gosto e respondeu prontamente a todas as minhas perguntas.

“Você sempre foi muçulmano?”, perguntei.

“Não, não”, ele respondeu. “Eu estive no Exército aqui em Kazan. Era de uma divisão de segurança que escoltava comboios de abastecimento. Tinha 18 anos na época e era cristão.” Um de seus amigos era muçulmano, Damir prosseguiu, “e ele me ensinou o que era aquilo. Achei uma religião muito forte. Está tudo explicado em seus ensinamentos, inclusive o que fazer, como agir”.

Fez-se silêncio.

“Isto aqui está muito bom”, comentei. “Que carne é?”

“É carne de cavalo”, Damir respondeu.

Ah, não…

Não, não e não.

Mas não havia escolha, tínhamos que continuar comendo; éramos convidados deles, e teria sido rude não comer o que nos haviam servido.

Damir deve ter percebido o desconforto que de súbito emanava de seus convidados, porque disse:

“Mas era um bom cavalo!”

Rimos.

“O que as pessoas no Ocidente pensam dos russos?”, ele perguntou. “Ficam só nos estereótipos?”

“Existem alguns estereótipos, sim”, eu disse, mastigando um belo naco de carne e tentando não respirar pelo nariz, um truque que já me ajudara na infância com muitos pratos que eu achava difíceis de engolir, como hadoque defumado ou bacalhau defumado.

“As pessoas pensam que somos bárbaros. É muito triste. O que os políticos dizem e fazem não tem necessariamente a ver com quem mora aqui. Há muita gente boa, almas boas, e pessoas más também, é claro. Mas, na política, na verdade nada mudou. As eleições são uma piada.”

Depois do jantar, uma grande bandeja de doces tártaros foi servida à mesa. Damir contou-nos que já tinha sido um grande fã de futebol. Mas que, depois, se corrigira.

“Bom, é que não era bem do futebol que eu gostava, e sim das brigas.”

“Você era um hooligan?”

“Era. Passei três anos viajando para assistir aos jogos e brigar. Aí tive alguns problemas com a Justiça. Mas não tenho mais contato com esse pessoal. Hoje eu leio. Tento ler vinte livros por ano.”

Quando terminamos de comer, sentindo que não podíamos tomar mais tempo deles, nos despedimos; já vestíamos nossos casacos, quando ele se aproximou de mim.

“Minha irmã morreu num acidente de avião em 2013”, contou.

“Lamento muito”, eu disse, sem saber o que fazer com aquela informação.

Ele simplesmente assentiu com um gesto de cabeça, e apertamos as mãos. Senti um grande carinho por ele; Damir havia me contado sobre sua vida, e aquilo, um dos acontecimentos mais importantes, não podia ficar de fora, ainda que não se encaixasse no resto da conversa. A última coisa que vi antes de a porta se fechar foi a cadeira na sala; do encosto pendiam um terninho de criança, uma camisa branca e uma gravata.


A paisagem que se abriu dos dois lados da estrada quando deixamos Kazan era plana e ampla. Os amarelos e verdes da vegetação cintilavam à luz do sol com suntuosa intensidade, e o rio Kazanka ladeava o caminho, às vezes bem junto da estrada, outras vezes mais distante, ora largo como um lago, ora mais estreito, mas sempre brilhando e rebrilhando naquela luz, refletindo todas as tonalidades possíveis de azul.

O panorama era bonito, e selvagem também, embora boa parte da terra estivesse cultivada. Talvez o aspecto selvagem decorresse da amplidão, pensei, da própria sensação de grandeza terrena que a paisagem suscitava enquanto seguíamos em nosso carrinho minúsculo.

Passado algum tempo, paramos num pequeno restaurante de beira de estrada no meio de uma estepe. Pedimos sopa no balcão e nos sentamos a uma das mesas. As quatro mulheres que trabalhavam ali, todas vestidas de branco e com as faces vermelhas e quentes, iam e vinham entre o balcão e a cozinha.

Depois de comer, perguntamos a uma das garçonetes se podíamos conversar um pouco, e ela concordou algo insegura e enxugou as mãos no avental. Era jovem, beirava os 30, e nos disse que aquele era um emprego temporário; o restaurante pertencia a uma rede, e ela dava uma ajuda quando alguém adoecia. Havia algo de reservado e defensivo nela; quando comecei a fazer perguntas sobre a Rússia, ela deu uma olhadinha para as colegas antes de responder.

“As coisas estão melhores agora”, disse. “A economia está melhorando, e nossas vidas também, cada vez mais.”

“Mas o que você está dizendo?”, atalhou um homem junto do caixa, olhando para nós. “As coisas estão piores na Rússia! O país está indo ladeira abaixo! Cada vez pior!”

Ele era grande e forte, o cabelo cortado rente e um rosto pálido e achatado.

Mas sorrira ao dizer aquilo.

“Progresso coisa nenhuma!”, ele disse alto, indo sentar a uma mesa no centro do salão.

Agradeci à moça reservada, que fugiu para a cozinha com visível alívio, enquanto eu, algo hesitante, caminhei em direção ao motorista de caminhão.

Ele ergueu os olhos para mim com a colher na mão.

“Por que você está escrevendo sobre a Rússia?”, perguntou.

“Nos Estados Unidos, a imagem da Rússia está tão ligada a Putin e à política que viemos ver como é a vida no dia a dia.”

“Então, muito prazer!”, ele disse. “Sente-se.”

Seu nome era Serguei. Tinha 44 anos e levava um caminhão-cegonha desde uma fábrica da Lada até revendedores em Kazan.

“Preciso trabalhar dezesseis horas por dia para conseguir pagar as contas”, ele disse logo de cara. “Se você quer viver, tem que trabalhar. Em 2004, eu dormia quatro horas por dia, o resto era trabalho. Naquela época eu tinha um patrão a quem prestar contas. Agora sou autônomo, pelo menos posso escolher as rotas que faço.”

Serguei me encarava ao falar, sempre com um brilho nos olhos e uma piada à mão.

“É a oportunidade da minha vida conhecer alguém como você”, ele disse, rindo. “Fui assaltado uma vez, quer ouvir a história?”

Uma noite, quinze anos antes, ele estacionou o caminhão nas cercanias de Moscou e começou a preparar um chá na cabine. As portas estavam trancadas. De repente arrebentaram a janela do lado do passageiro e dois homens tentaram invadir a cabine.

“Por sorte, só um tinha uma faca”, ele continuou. “Um deles abriu a porta, o outro entrou e enrolou uma corda no meu pescoço. Eu segurei o homem com um braço só, dei a partida e atravessei o caminhão na estrada, para bloquear a pista e quem sabe conseguir ajuda. O sujeito que tentava me enforcar estava na frente do outro, que era quem tinha a faca. Foi o que me salvou. Eu consegui abrir a porta e pular da cabine. Mas aí o outro me enfiou a faca nas costas. Ainda tenho a cicatriz.”

“E levaram o caminhão?”

“Levaram. Eu só queria salvar minha pele. Caminhei pela estrada, mas ninguém parou para me socorrer. Não admira, eu estava seminu e coberto de sangue. Não havia ninguém no posto de polícia. Por fim, cheguei a uma casa onde estava tendo uma festa, entrei, peguei umas roupas e saí correndo. Acharam o caminhão depois, abandonado, quebrado e sem a carga. E eu fui preso por ter roubado as roupas!”

Ele riu. Seu rosto estava em movimento constante, a expressão se modificava em contraponto a cada reviravolta. Eu me dei conta de que estava diante de um contador de histórias.

Serguei me contou, então, que seu avô certa vez afirmara ser um Romanov.

“Um Romanov?”, perguntei. “Da família imperial?”

“Isso. Perguntei para minha mãe sobre essa história, mas nunca consegui saber ao certo.”

Aquilo era um bocado de sorte, pensei comigo. Topar com um possível descendente do czar num restaurante de beira de estrada no meio da Rússia.

Serguei começou a falar sobre o avô.

“Ele era muito forte”, disse, interpondo o punho entre nós dois, em cima da mesa. Era gigante.

“O punho dele dava dois do meu. Uma vez ele foi dar água a um bezerro. Era um dia quente, o ar estava parado. Um mosquito incomodava o bezerro, que tentava se livrar dele”, Serguei ergue a cabeça e se põe a chacoalhá-la como o animal havia feito. “Pois a cabeça do bezerro acertou meu avô, que ficou bravo e deu um soco no bicho. O bezerro caiu morto. Com um único soco. Morto.”

Ele fez uma pausa para deixar que a história surtisse o devido efeito. Depois, tornou a rir.

“Eu acredito que os sonhos são reais”, afirmou.

“Eu também”, concordei.

“É mesmo?”

“É.”

“Nesse caso, vou te contar um sonho que eu tive. Dei um ano a mais de vida ao meu avô nesse sonho. Eu tinha saído da casa do meu pai e tinha ido morar com ele. Eu amava muito o meu avô. Uma noite sonhei que três homens de chapéu e roupa preta, bem misteriosos – pareciam meio georgianos –, tinham vindo a nossa casa. Passaram direto por mim e foram até o meu avô. Agarraram ele, que não reagiu e simplesmente acompanhou os homens. Eu grudei nele e me levaram junto, para o meio da escuridão lá fora. Eu não podia salvar o meu avô, embora eu também seja forte. Mas não havia o que fazer. Comecei a gritar e berrar. Um dos homens de preto perguntou: ‘Quem é esse que está gritando e berrando?’ Aí, ele me viu e perguntou: ‘Quanto tempo o velho ainda tem?’ ‘Um ano’, respondeu o outro, ‘para praticar boas ações.’ E então eles desapareceram.”

O motorista de caminhão olhou para mim.

“Uma semana mais tarde, meu avô foi internado na terapia intensiva, estava em coma. Eu disse que não precisávamos gastar dinheiro com médicos, que ele ia melhorar. Cinco dias depois, meu avô acordou. Viveu exatamente mais um ano.”

Depois, do lado de fora do restaurante, ficamos observando Serguei atravessar o pátio em direção ao caminhão comprido, à luz do sol. Ele se voltou, acenou, subiu na cabine, deu partida no motor rascante, engatou a primeira e foi-se embora.


A coisa que eu mais associava à Rússia e que sempre quis ver de perto era aquela aldeia arquetípica dos romances russos do século XIX e das fotografias históricas. Um amontoado de casinhas de madeira, muitas vezes sem pintura, algumas cercas de pau, uma plantaçãozinha de hortaliças, umas poucas galinhas circulando, talvez a sombra de um bosque de algumas árvores nas proximidades e um rio fluindo preguiçosamente, circundado por campos sem fim. Muitas vezes nessa viagem avistei aldeias desse tipo, a caminho da propriedade de Turguêniev, por exemplo, e, depois, ao longo da via férrea que conduzia a Kazan. Assim, nesse dia em particular, quando um conjunto de casas surgiu de repente, logo depois do topo de uma pequena colina, bem ao lado da autoestrada, eu segui os sulcos dos pneus por uma estradinha lateral, parei o carro e desembarquei.

A aldeia parecia deserta; só uma velha solitária, curvada, trabalhava numa plantação de hortaliças. A intérprete foi falar com ela, e ela contou que na aldeia morava uma mulher de 102 anos de idade.

“A gente pode conhecer essa mulher?”, perguntei.

Brown perguntou à senhora, que assentiu e apontou para uma direção.

Caminhamos rumo a uma casa brilhante e azul; do lado de fora, circulava uma mulher com um lenço na cabeça. Abraçava uma grande galinha branca que lutava para escapar.

Enquanto a intérprete falava com a mulher, um galo jovem passou correndo com outro em seu encalço. A caçada terminou numa bola de penas um pouco mais adiante.

“Ela nos convidou para entrar”, Brown informou.

Pulei a soleira alta da porta e entrei pelo corredor. Uma vez lá dentro, senti um cheiro ligeiramente azedo e bolorento, mas a casa era agradável e quente. Havia tapetinhos por toda parte, tanto no chão como nas paredes. Senti como se tivesse entrado numa caverna.

No meio da sala de estar estava uma senhora muito velha, que, quando entramos, girou lentamente a cabeça em nossa direção.

A outra mulher, a que encontramos lá fora e entrou conosco, passou correndo e levou a velhinha até uma cama encostada à parede, sentou-a, tirou-lhe o lenço da cabeça, substituiu-o por um novo e, por fim, calçou-lhe chinelos de couro.

Foi quase como se vestisse uma boneca. Mas a velha senhora não parecia se incomodar. Sentada quietinha, com as mãos no colo, ela nos observava.

Trajava um vestido preto estampado com rosas. O lenço branco era grande; cobria-lhe não apenas a cabeça, mas descia por toda a extensão das costas também. O nome dela era Minizaitunya Ibyatullina.

Aproximei-me e apertei sua mão com delicadeza. Estava seca e quente. Ao erguer os olhos para mim, ela disse alguma coisa.

“Está falando tártaro”, a intérprete me explicou. “Não entendo o que ela diz.”

Devagar, Minizaitunya girou a cabeça na direção da câmera quando Addario começou a tirar fotografias dela. Seu filho, Kasym, de pé no vão da porta, sorria e observava. A mulher dele, que se chamava Alfiya, tirou de uma gaveta uma grande foto laminada e a entregou à velha. Era de um soldado, e a senhora ergueu a foto diante de si.

Era uma fotografia do marido dela, que havia morrido na Ucrânia durante a guerra, em 1943. Ele era um homem muito bonito. Como devia ser estranho para ela, pensei, olhar para aquela foto setenta anos mais tarde, ele tão jovem e bonito, e ela agora aos 102 anos.

Mas a velha não parecia achar nada disso. Tinha uma expressão de orgulho, sentada ali e segurando a foto dele.

Devia ser estranho para o filho dela também, que tinha 80 anos, mais de duas vezes a idade do pai ao morrer.

Kasym sempre viveu naquela aldeia, que integrava uma fazenda coletiva no tempo da União Soviética. Trabalhava como carpinteiro, contou. A mãe também tinha trabalhado a vida inteira.

Minizaitunya disse algo numa voz baixinha, e o filho se inclinou na direção dela.

“Está dizendo que agora está velha demais para trabalhar”, ele explicou. “Não tem mais forças para isso.”

“Que tipo de trabalho ela fazia?”

“Trabalhava na fazenda coletiva. Ordenhava vacas e coisas assim.”

Alfiya veio até a sala de estar e nos convidou a sentar à mesa. Enquanto conversávamos na sala, ela tinha estado no fogão. Sobre a mesa, havia uma bandeja com um pão chato quentinho e geleias diversas. Só havia duas cadeiras, e nada os faria sentar. A mulher serviu o chá, o marido surgiu com um grande pacote de balas. Como não fiz menção de me servir, ele apanhou três e as depositou ao lado do meu prato.

Da sala de estar chegava o som de passos lentos e suaves.

“A babushka vem vindo!”, Alfiya exclamou. Segundos depois, Minizaitunya apareceu na porta.

O filho a escoltou até outra cama, ela se sentou e ficou nos observando enquanto comíamos.

Tinha nascido em 1915. A Rússia ainda era uma monarquia, e Nicolau II estava no poder. Assim, ela vivera o velho czarismo, a revolução, ascensão e queda da União Soviética e, agora, a nova Rússia.

Alfiya acondicionou num saco pão fresco para nós, Kasym deu-nos alguns pacotes de doce e cada um de nós ainda ganhou de presente um paninho bordado. Até mesmo Minizaitunya tinha presentes para nos dar: uma barra de sabonete para Brown, lenços para Addario e para mim.

“Todas as pessoas com quem eu cresci estão mortas”, ela disse da cama, quando nos levantamos e nos preparávamos para partir. “Não sobrou ninguém.”

Nunca olho diretamente para ninguém por mais de uns poucos segundos. Não quero ser enxerido nem, talvez, que sejam comigo. Naquela tarde, porém, depois de me despedir de todos com um aperto de mão, fiquei sozinho ali olhando para ela, e ela me olhou de volta; achei que devia sustentar seu olhar, que devia olhá-la nos olhos, aqueles olhos que haviam visto o mundo à época dos czares e seguiam vendo o mundo cem anos mais tarde.

Ficamos nos olhando por um bom tempo. De início ela pareceu surpresa, talvez tentando adivinhar o que, afinal, eu pretendia; depois, lentamente, começou a sorrir, e foi tão maravilhoso aquele sorriso que, no momento seguinte, eu tinha lágrimas nos olhos ao atravessar a porta e deixar a casa.


O último dia de nossa jornada até Iekaterimburgo consistiu numa viagem de quinze horas. Já próximo do destino, no meio de uma densa floresta ainda a uma hora da cidade, tomei uma estradinha secundária, parei junto de um rio e fumei um cigarro sob o céu estrelado, bem ao lado do que supus ser uma fábrica de celulose. Addario e Brown dormiam, e pensei no que nos aguardava na manhã seguinte. A execução do czar e de sua família naquele porão de Iekaterimburgo havia sido um acontecimento avassalador, um repeteco da Revolução Francesa, mas, para Lênin, deve ter sido também uma questão pessoal. Ele há de ter perambulado por Kazan cheio de ódio aos 17 anos, há de ter odiado o czar que matou seu irmão, e não é difícil imaginar esse ódio pessoal tornando-o ainda mais duro e intransigente. Depois da revolução, em 1917, quando assumiu a responsabilidade pelo czar então preso, ele deve ter pensado no irmão, em como vingá-lo. E em realizar o que o irmão um dia tentara: matar o czar.

Faróis tremeluziram mais adiante, em meio às árvores. Eu os segui com os olhos à medida que se aproximavam. Quando as luzes iluminaram nosso carro, no qual eu estava encostado, elas desaceleraram. Fui tomado por uma leve inquietação. Eu tinha ouvido histórias sobre assaltos violentos nas cidades próximas. Mas, fosse quem fosse, passou reto. Pisei no que restava do cigarro, para apagá-lo, subi no carro e retornei à estrada principal. Provavelmente só um punhado de adolescentes entediados dando uma volta, pensei. E era compreensível num lugar como aquele, onde só havia árvores e água.


No dia seguinte, em Iekaterimburgo, cruzamos uma grande multidão reunida numa praça, centenas de pessoas empunhando bandeiras e gritando. Nos viramos para ver enquanto passávamos de carro.

“Contra o que estão protestando?”, Addario perguntou.

“Hoje tem protestos por todo o país”, Brown explicou. “Em apoio ao líder da oposição, Alexei Navalny. É aniversário do Putin.”

“É mesmo?”, perguntei, mas no instante seguinte já havia esquecido os protestos, porque nos aproximávamos da Catedral do Sangue Derramado.

Construída no local exato em que terminara a história do lendário czar, ela também era portadora de algo que, para mim, era igualmente lendário – o autêntico ritual da religião ortodoxa, uma cerimônia que, graças a todos os romances russos que eu havia lido, e não em pouca medida nas obras de Dostoiévski, revestia-se de luz especial. A luz abnegada da misericórdia, associada não apenas aos mais eminentes e ricos como também aos mais humildes e pobres. Nos livros de Dostoiévski, há algo de mórbido nessa luz, um entusiasmo extenuante que sempre vi como tipicamente russo. Com certeza, nunca o detectei em nenhuma outra parte.

Descemos do carro e ficamos ali na chuva, os olhos erguidos para a catedral.

Eu soube de imediato que não teria nenhuma visão dostoievskiana. A igreja tinha sido construída no estilo tradicional, com múltiplas cúpulas cintilantes, mas era claramente novinha em folha. Olhar para ela provocou em mim a mesma sensação que certa vez eu tive na Cidade Velha de Varsóvia, onde os edifícios destruídos na Segunda Guerra Mundial haviam sido substituídos por réplicas imaculadas. Era como uma faísca numa falha no tempo. O velho não era velho, o novo não era novo. Onde estávamos então?

Na noite de 16 de julho de 1918, segundo se conta, a família do czar foi acordada e informada de que seria levada a um local mais seguro. Todos desceram de seus quartos e aguardaram no porão, conforme lhes fora dito. Não tinham ideia do que estava por vir, até que as armas foram apontadas para eles. Os revolucionários que compunham o pelotão de fuzilamento eram amadores; alguns estavam bêbados. Dispararam aleatoriamente, o solo se encharcou de sangue, o ar se encheu de fumaça, deve ter havido gritos, estrondos, confusão; no chão, vários membros da família sangravam, mas continuavam vivos, até que por fim os mataram com tiros na cabeça. Os corpos foram transportados para fora da cidade, jogaram ácido em seus rostos numa tentativa de torná-los irreconhecíveis antes que fossem lançados no poço de uma mina. Alguns dias mais tarde, içaram os corpos, carregaram-nos até uma floresta próxima e os enterraram.

A casa não existia mais, o porão tampouco, o sangue e os corpos haviam desaparecido. Mas os Romanov, não. Na Catedral do Sangue Derramado, haviam retornado como símbolos. Aqueles minutos insanos e sangrentos, bem como tudo que representavam, tinham agora assumido a forma de relíquias que prometiam o contrário: presciência, estrutura, harmonia e equilíbrio.

Na entrada da igreja, erguia-se uma escultura que exibia toda a família Romanov no mesmo estilo heroico-realista que os artistas soviéticos empregavam na representação dos trabalhadores nas décadas de 20 e 30. Em seu interior, ícones de um Nicolau II retratado à maneira da Idade Média. Quase tudo na catedral envolvia uma distorção do tempo. O elemento ritual e repetitivo das cerimônias religiosas abolia o tempo por completo, atrelando o tempo ali dentro ao tempo divino, que era eterno, intocado por vida ou morte, sempre ali, para todo o sempre. O czar e sua família foram alçados àquele espaço, e a história à qual estavam associados desapareceu sem deixar vestígios. E, no entanto, Lênin existia em espaço semelhante. Embalsamado em seu mausoléu da Praça Vermelha, seu corpo era real e estava atrelado ao momento, mas nada havia a conectá-lo ao tempo no qual ele tivera poder; também ele estava simultaneamente dentro e fora do tempo.

A história é um pesadelo do qual tento acordar, Joyce escreveu. Em parte alguma isso era mais verdadeiro que na Rússia.


Na manhã seguinte, no aeroporto de Iekaterimburgo, enquanto esperava meu voo de volta para Moscou, espiei os jornais do dia em meu celular. Na véspera, tinha havido protestos contra Putin e seu governo em todas as grandes cidades. Fazia-se menção especial ao protesto em Iekaterimburgo, aquele que havíamos visto a caminho da catedral, porque a polícia havia detido 24 manifestantes.

Meu primeiro pensamento foi que eu deveria ter permanecido ali, que aquele era o lugar onde tudo estava acontecendo, que era aquilo que eu deveria ter ido ver a fim de apresentar o melhor quadro possível da Rússia moderna.

Mas aí pensei: não.

As histórias sempre deram coesão à Rússia, e o que as faz diferentes das histórias constitutivas da maioria dos outros países é, talvez, a natureza autoritária das próprias histórias: uma história reina soberana, e todo e qualquer desvio em relação a ela é proibido. Foi assim à época dos czares, que censuravam livros e jornais; foi assim também sob Lênin; e assim é hoje ainda – na Rússia, jornalistas são presos regularmente e, por vezes, assassinados, sem mais.

E, no entanto, as histórias alternativas, aquelas que as autoridades não queriam que ganhassem terreno, aquelas que falavam de abuso de poder e de opressão, de como era viver numa ditadura em que se perdeu toda a esperança no futuro – também essas haviam sido padronizadas.

O protesto foi o que a imprensa internacional noticiou sobre a Rússia do dia anterior, e suas matérias confirmaram e reforçaram a história mais ampla de um povo oprimido num Estado totalitário. Mas por trás dessa realidade havia outra também. As três mulheres animadas no trem; Dina e Damir, o jovem casal em Kazan esperando o filho que ia nascer; Serguei, o motorista de caminhão; a velha senhora na aldeia, bem velhinha, e o casal de velhos que cuidava dela – que história sobre a Rússia poderia conter todas as demais sem, ao mesmo tempo, reduzir drasticamente o que havia de único em cada uma delas?

As histórias de Turguêniev eram capazes disso. Nelas, as personagens não conduzem a coisa alguma além delas próprias. Mas o mundo como ele é não pode existir sem seu gêmeo: o mundo como a gente quer que ele seja. Lênin, o opressor, leu Turguêniev a vida toda, e Vladimir Putin revelou seu amor por Memórias de um Caçador numa entrevista de 2011, ao dizer: “O personagem principal, de um modo simples, mas pitoresco e muito simpático, conta histórias sobre pessoas que conheceu enquanto caçava e sobre a vida delas. São como esquetes do coração da Rússia em meados do século XIX, histórias que alimentam o pensamento e nos permitem ver nosso país, suas tradições e a psicologia nacional sob nova luz.”


Ainda naquela tarde, fui a um bar de Moscou para conhecer Serguei Lebedev. Romancista e jornalista de 36 anos, em tempos recentes ele se descobrira ativista. Eu estava tão curioso a respeito de sua pessoa quanto de sua obra, tão intrigado por sua história familiar quanto por seu conhecimento da história do país. Sabia que Lebedev nasceu em 1981 e que, portanto, tinha idade suficiente para ter vivido a primeira infância na União Soviética e a juventude nos anos caóticos que se seguiram à derrocada. Sabia também que, de início, ele havia sido geólogo.

“Eu nasci numa família soviética clássica”, ele disse tão logo nos acomodamos à mesa perto de uma janela que dava para a rua. “Meus pais eram geólogos e membros da intelligentsia soviética.”

Ele era baixinho e forte, tinha uma barba de vários dias e alguma coisa indômita que me fez pensar num animal que, tendo fincado os dentes em alguma coisa, não vai largá-la. Os livros de Lebedev tratam de história – a história recobre como uma sombra tudo que ele escreveu –, e o fato de a história continuar a ser tão poderosa sugeria que os conflitos e tensões inerentes a ela ainda não haviam sido resolvidos, seguiam influenciando a sociedade russa de um modo palpável, ainda que obscuro.

Lebedev me contou que tudo em sua infância havia sido pensado para ocultar partes do passado. Seu bisavô, por exemplo, tinha sido oficial do Exército do czar antes de mudar de lado e se juntar ao Exército Vermelho. Mas, na versão da família, ele sempre usara o quepe do Exército Vermelho com sua estrela vermelha, como se tivesse nascido em 1917 e não tivesse existido nada antes disso.

“Para mim, era normal”, ele disse. “Viver num mundo incompleto. Viver num mundo cheio de lacunas. Com todas as perguntas que nunca podiam ser feitas.”

A rua lá fora era iluminada pelos raios do sol baixo de outubro e estava repleta de pessoas passeando pela cidade naquela tarde de domingo. Muitas delas deviam ter histórias semelhantes à de Lebedev, pensei. As pessoas têm um mecanismo que as impede de falar sobre experiências ruins e as faz relutantes quando se trata de remexer no passado. Os segredos, porém, favorecem a criação de uma versão específica da realidade na qual as peças individuais precisam ser rearranjadas de um modo particular, encaixando-se com tanta precisão que, se uma única peça muda de posição, o quadro todo vem abaixo. Nossa identidade é moldada por histórias, histórias sobre nossa própria história, sobre a história de nossa família, sobre a história de nosso povo ou de nosso país. O que acontece quando uma dessas histórias que moldam nossa identidade não se encaixa? Aí, de repente, não somos mais quem pensávamos ser. Mas quem somos então?

Perguntei a Lebedev que cara tinha a narrativa atual na Rússia.

“É muito estranho”, ele respondeu. “Em primeiro lugar, é importante compreender que as autoridades não possuem uma ideologia única, coerente. Elas recorrem a elementos dos mais variados campos. Se funcionar, ótimo. Precisam de uma cortina de fumaça para esconder o fato de que não passam de um punhado de cleptocratas. Veja, por exemplo, o nome do partido Rússia Unida. Essas palavras, ‘Rússia unida’, eram um slogan dos contrarrevolucionários cunhado em reação a Lênin e aos bolcheviques, que queriam estabelecer repúblicas novas com governo próprio. O governo atual está construindo um Estado que se funda na nostalgia soviética, mas não tem o menor escrúpulo em se apropriar de um slogan da oposição. E isso não suscita a menor controvérsia.”

E ele prossegue: “A cada ano tentam reduzir a importância de 1917. Fazem isso porque, em sua versão ideal dos acontecimentos, não houve revolução! Estão tentando estabelecer um vínculo ininterrupto entre os czares e a Rússia de Stálin. De acordo com a narrativa atual, espiões estrangeiros e traidores nos provocaram a matar uns aos outros 100 anos atrás. Isso não pode acontecer de novo. Portanto, temos que nos unir; portanto, precisamos seguir a bandeira do Putin; portanto, temos que sacrificar os direitos civis, porque não pode acontecer de novo. Em linhas gerais, é isso.”


Depois, atravessamos o centro rumo ao Kremlin. As ruas estavam cheias de gente, o céu era de um azul cristalino, e os raios de sol incidiam sobre a cidade, refletindo brilhantes em janelas e capôs de carros, mais suaves e nuançados ao cintilar nas fachadas das lojas e paredes, nas ruas e calçadas, mas sempre de uma coloração afogueada.

À nossa frente, Lebedev passou pelo Teatro Bolshoi; ele ia apontando e explicando conforme caminhávamos. A praça defronte da magnífica fachada neoclássica do teatro estava tomada por diversos ônibus da polícia estacionados, assim como por policiais e seus cães.

“Tropas de choque”, disse Lebedev. “Houve protestos aqui ontem, e por isso estão preocupados, querem ter certeza de que não vai acontecer nada.”

Densas multidões circundavam barracas com uma profusão de comida e bebida. A atmosfera era leve, as pessoas riam, sorriam, crianças corriam em torno das pernas dos adultos, o sol brilhava em seus rostos, e às nossas costas, severas contra o céu de um azul profundo, erguiam-se as torres do Kremlin.

“É uma festa da colheita”, Lebedev explicou. “Tão típica de Putin e do governo. Eles investem em eventos não políticos e em festas públicas como esta aqui, onde o que interessa são apenas as abóboras! Estão tentando inventar novas tradições, e esta se destina a exibir as riquezas da Rússia.”

Seguimos rumo à Praça da Revolução, que no tempo dos czares se chamava Praça da Ressurreição. “Como você pode ver”, continuou Lebedev, “nem sinal da revolução. Mal se celebra o centenário; com certeza, não se discute a violência, as atrocidades. Mas, se você quiser entender o que aconteceu neste país nas décadas de 20 e 30, não pode ignorar a violência e os horrores dos cinco anos entre 1917 e 1921. Não vai conseguir entender por que as pessoas estavam tão dispostas a matar umas às outras. Tem havido uma espécie de guerra pela memória aqui na Rússia, uma guerra em que se disputa o que deve ser lembrado ou esquecido. A história hoje tem a ver apenas com símbolos, e não com noções em torno do perdão e da reconciliação. Mas espere até ver isso aqui”, disse ele, apontando para uma estação do metrô.

A escada rolante pela qual descíamos era íngreme e comprida, e no mundo subterrâneo para o qual ela nos levava o tempo parecia ter parado.

Postadas numa série de plataformas ao longo das paredes, viam-se gigantescas estátuas de bronze de figuras humanas. A primeira delas portava fuzis e cintos de munição; eram os revolucionários. Depois, porém, vinham as pessoas comuns, homens e mulheres, jovens e velhos, camponeses, pescadores, operários, a série toda, primorosa e fascinante, terminando numa criança erguida, o símbolo do futuro.

Era tão impregnada de esperança e fé que saber que se tratava de propaganda política não importava mais, porque era uma visão da vida, de um país, de um futuro, e não era desprovida de verdade: era apenas bonita.

Também aquilo era a revolução, o sonho de uma vida melhor para todos. Toda a arte dessa época possui essa mesma energia, um otimismo quase desvairado, a noção de que era ali que tudo começava. Mulheres são tão vanguarda quanto homens, elas não aparecem sexualizadas, objetificadas, estão ali pelo que são. A arte experimenta; é a era de Maiakóvski, Eisenstein, Kandinsky, assim como da matança, da violência, da crueldade, da fome, da necessidade, da miséria e, em seu devido tempo, de um sistema que se calcificaria, que se fecharia para o mundo, presa da armadilha de suas próprias verdades. Aquela estação de metrô foi o lugar mais bonito que vi durante meus dias na Rússia, mas essa beleza não tinha nenhuma serventia, atrelada que estava a ideias de realidade nas quais ninguém mais acreditava e que, portanto, jamais se realizariam.

E, no entanto, tampouco isso fazia dela uma mentira. A estátua do czar do lado de fora da Catedral do Sangue Derramado era uma mentira, porque mudava o passado. Mas as estátuas no metrô destinavam-se a mudar o futuro. O fato de esse futuro jamais ter sido realizado, de ele nunca ter acontecido, não privava de verdade aquela visão subterrânea; apenas a tornava vã e bela. E poucas coisas são mais belas que a esperança vã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...