O novo filme de Ken Loach, Você Não Estava Aqui, é uma acusação devastadora de nossa economia e sua capacidade infinita de gerar miséria para as pessoas comuns.
Luke Thibault
Jacobin
Tradução / Sombrio , digno, paciente, indignado — Você Não Estava Aqui é uma das melhores contribuições de Ken Loach à ficção da classe trabalhadora. Voltando as lentes para a gig economy, trabalhadores de plataforma on-line, o filme retrata uma família de Newcastle, no nordeste da Inglaterra. Assolada pela crise criada pela lógica inexorável do mercado, a família sofre com contratos de zero horas em que o empregador não é obrigado a fornecer horas mínimas de trabalho. Graças a um roteiro meticulosamente pesquisado e às performances autênticas de não-atores, Você Não Estava Aqui é uma denuncia devastadora à nossa economia.
O filme começa com um pouco de humor ácido quando Ricky (Kris Hitchen) é entrevistado para uma posição de motorista com contrato de zero horas em uma empresa chamada Parcels Delivered Fast [Encomendas Entregues Rapidamente]. Observando Ricky vender sua mão-de-obra ao insensível gerente Maloney (Ross Brewster), somos apresentados à promessa mais enganosa da gig-economy: você pode ser seu próprio chefe. Esta oferta sedutora vem com expectativas impossíveis, projetadas para “separar os perdedores dos batalhadores”.
Ricky, ex-trabalhador da construção civil, apresenta uma lista aparentemente interminável de habilidades aprimoradas pela experiência de uma vida inteira. Descobrimos mais tarde que ele foi demitido durante a crise financeira de 2008, perdendo sua casa própria e passando a viver de aluguel. Na raiz de seu isolamento há o orgulho: “Eu nunca recebi seguro desemprego. Prefiro morrer de fome primeiro”. Para Loach, Ricky é um exemplo específico de uma experiência mais universal: a perda de um emprego seguro e qualificado. Seguimos suas rotas de entrega de catorze horas, seis dias por semana, enquanto sua determinação se esgota na exaustão sob a disciplina invasiva do big data.
Abbie (Debbie Honeywood), a esposa de Ricky, também tem uma rota e um contrato de zero horas. Ela é uma cuidadora domiciliar que vai de casa em casa todos os dias visitando dezenas de pacientes com necessidades especiais para preparar refeições, dar banhos e, o mais importante, possibilitar um pouco de contato humano. A tristeza pelo falecimento de sua mãe aprofunda o compromisso de Abbie com o trabalho: “Eu tenho uma regra: os trate como se fossem sua própria mãe. Cuide deles”. Ela trabalha horas extras não remuneradas para cumprir esse compromisso depois de vender seu carro, para que Ricky possa comprar uma van. Como Abbie e Ricky estão constantemente correndo de trabalho em trabalho, eles ficam cada vez mais privados da convivência com seus filhos.
Como muitos trabalhadores intermitentes, Ricky não tem intervalos para usar o banheiro. Na parte final do filme, ele precisa urinar dentro de uma garrafa atrás de sua van. Como se isso não fosse humilhante o suficiente, ele é repentinamente espancado, roubado e encharcado com sua própria urina. Enquanto espera pelos resultados do exame de raio-x em um hospital lotado do NHS [o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido], seu chefe exige uma substituição de motorista e registra cobranças pelos itens roubados e o scanner de entrega destruído, totalizando 1.500 libras esterlinas [cerca de 9 mil reais] (somando as últimas faltas de Ricky nos turnos de trabalho).
Com as dívidas aumentando como uma bola de neve, Ricky não tem escolha a não ser voltar ao trabalho. As tensões latentes da trama entram em ebulição à medida que a família tenta desesperadamente, mas não consegue, fazê-lo sair de sua van. Contemplamos o destino de Ricky, encurralado e sozinho, cansado e machucado, enquanto o close-up final se desvanece lentamente.
Em uma cena em que Abbie desabafa sobre sua agenda interminável, Loach enfatiza a história com a pergunta capciosa de sua paciente: “O que aconteceu com a jornada de 8 horas?” A questão localiza a narrativa em um histórico de trabalhos cada vez mais casuais em detrimento de empregos sindicais seguros.
A crescente gig economy no mundo é dominada por contratos de zero horas, que não oferecem horas garantidas de trabalho. No Reino Unido, desde a crise financeira de 2008, esses contratos aumentaram para abranger mais de 1 milhão de trabalhadores. Mais de 60% dos prestadores de cuidados domiciliares, como Abbie, trabalham sob contratos de zero hora.
Um dos paralelos mais próximos da empresa de Ricky na vida real também é um dos maiores empregadores da gig economy: a Amazon. O programa de entregas de encomendas, o Amazon Flex, anuncia em seu site a oportunidade de “ser seu próprio chefe”. Esses entregadores estiveram envolvidos em centenas de acidentes nos últimos cinco anos e testemunham aos repórteres que “são tratados como bichos”.
O fato de o trabalho intermitente permitir horários flexíveis é promovido como um acordo em que todos ganham, tanto o trabalhador quanto o empregador. Para uma minoria, isso é verdade, mas Você Não Estava Aqui expõe o fato de que, para a maioria dos trabalhadores, se trata de um relacionamento unilateral e explorador. A “escolha” de quando trabalhar é inexistente quando você pode ser punido por tirar uma folga ou enfrenta a constante ameaça de ser demitido. Os empregadores ganham flexibilidade máxima sem ter que fornecer um salário mínimo, seguro desemprego, horas extras, licença médica e familiar, seguro de invalidez, direitos de negociação coletiva ou qualquer compensação por lesões ou despesas acumuladas durante a jornada de trabalho.
Refletindo sobre isso, o roteirista Paul Laverty questiona: “É de se surpreender que Jeff Bezos, presidente e CEO da Amazon, seja o homem mais rico do mundo? Jeff Bezos já teve que urinar dentro de uma garrafa quando uma reunião da sua empresa se estende?”
Como cineasta marxista, Loach nunca se contenta em simplesmente dramatizar as dificuldades de um indivíduo. Ele sempre nos apresenta argumentos sobre como as forças sociais definem a vida e o relacionamento de seus personagens. Fazer isso de forma convincente em uma obra de arte complexa e coerente pode ser um ato de equilíbrio e muitas vezes atrai críticas de conservadores (incluindo parlamentares). Sempre existe o risco de didatismo, de transformar personagens em porta-vozes, prejudicando o realismo do resultado. Mas se os filmes de Loach recebem o rótulo pejorativo de “cinema político” é apenas por serem contrários à ideologia dominante.
O exemplo mais ilustrativo disso em Você Não Estava Aqui ocorre quando o Maloney, o chefe de Ricky, explica como administra a empresa. “Você quer saber por que eu sou o número um? Porque eu faço isso feliz”. Ele segura o scanner de encomendas e diz: “este scanner compete com outros scanners. É isso que decide o contrato. Este scanner decide quem vive e quem morre”. Loach inclui esse diálogo para sugerir que a família Turner não é vítima do fracasso do capitalismo — eles são vítimas do sucesso do capitalismo.
O precioso scanner de encomendas (ameaçadoramente apelidado de “pistola”) se torna uma metáfora do capital. No capitalismo, a competição ocorre não apenas entre classes — mas também dentro das classes. Trabalhadores competem entre si pela sobrevivência, enquanto capitalistas competem entre si pelos lucros. A busca por lucros é a busca por reduzir preços, cortar salários, destruir sindicatos, precarizar o trabalho e enfraquecer a classe trabalhadora. Você Não Estava Aqui mostra a lógica abstrata do mercado e conclui que o que precisamos fazer em resposta é reduzir o poder do capital.
Recentemente, havia esperanças de que as demandas para recategorizar os trabalhadores intermitentes fossem atendidas. Em uma vitória histórica e muito necessária para a California Federation of Labor [Federação do Trabalho da Califórnia], congressistas democratas aprovaram o AB 5, um projeto de lei que classifica corretamente muitos desses trabalhadores como empregados. Pela primeira vez, milhões de trabalhadores da Califórnia terão direitos trabalhistas. Trabalhadores da Amazon em Minneapolis estão em greve. E no Reino Unido, Jeremy Corbyn pediu a proibição de contratos de zero horas no manifesto do Partido Trabalhista.
Em sua entrevista inicial, Ricky conclui seu extenso currículo verbal com um aceno sutil ao Manifesto Comunista: “Eu já fiz de tudo. Eu até cavei túmulos”. Esse papel deve retornar. Os espectadores de Você Não Estava Aqui devem ficar indignados e canalizar essa indignação para a organização da classe trabalhadora. Se a nossa determinação for minimamente parecida com a de Loach, podemos conquistar um mundo para muitos, não para poucos.
Tradução / Sombrio , digno, paciente, indignado — Você Não Estava Aqui é uma das melhores contribuições de Ken Loach à ficção da classe trabalhadora. Voltando as lentes para a gig economy, trabalhadores de plataforma on-line, o filme retrata uma família de Newcastle, no nordeste da Inglaterra. Assolada pela crise criada pela lógica inexorável do mercado, a família sofre com contratos de zero horas em que o empregador não é obrigado a fornecer horas mínimas de trabalho. Graças a um roteiro meticulosamente pesquisado e às performances autênticas de não-atores, Você Não Estava Aqui é uma denuncia devastadora à nossa economia.
O filme começa com um pouco de humor ácido quando Ricky (Kris Hitchen) é entrevistado para uma posição de motorista com contrato de zero horas em uma empresa chamada Parcels Delivered Fast [Encomendas Entregues Rapidamente]. Observando Ricky vender sua mão-de-obra ao insensível gerente Maloney (Ross Brewster), somos apresentados à promessa mais enganosa da gig-economy: você pode ser seu próprio chefe. Esta oferta sedutora vem com expectativas impossíveis, projetadas para “separar os perdedores dos batalhadores”.
Ricky, ex-trabalhador da construção civil, apresenta uma lista aparentemente interminável de habilidades aprimoradas pela experiência de uma vida inteira. Descobrimos mais tarde que ele foi demitido durante a crise financeira de 2008, perdendo sua casa própria e passando a viver de aluguel. Na raiz de seu isolamento há o orgulho: “Eu nunca recebi seguro desemprego. Prefiro morrer de fome primeiro”. Para Loach, Ricky é um exemplo específico de uma experiência mais universal: a perda de um emprego seguro e qualificado. Seguimos suas rotas de entrega de catorze horas, seis dias por semana, enquanto sua determinação se esgota na exaustão sob a disciplina invasiva do big data.
Abbie (Debbie Honeywood), a esposa de Ricky, também tem uma rota e um contrato de zero horas. Ela é uma cuidadora domiciliar que vai de casa em casa todos os dias visitando dezenas de pacientes com necessidades especiais para preparar refeições, dar banhos e, o mais importante, possibilitar um pouco de contato humano. A tristeza pelo falecimento de sua mãe aprofunda o compromisso de Abbie com o trabalho: “Eu tenho uma regra: os trate como se fossem sua própria mãe. Cuide deles”. Ela trabalha horas extras não remuneradas para cumprir esse compromisso depois de vender seu carro, para que Ricky possa comprar uma van. Como Abbie e Ricky estão constantemente correndo de trabalho em trabalho, eles ficam cada vez mais privados da convivência com seus filhos.
Como muitos trabalhadores intermitentes, Ricky não tem intervalos para usar o banheiro. Na parte final do filme, ele precisa urinar dentro de uma garrafa atrás de sua van. Como se isso não fosse humilhante o suficiente, ele é repentinamente espancado, roubado e encharcado com sua própria urina. Enquanto espera pelos resultados do exame de raio-x em um hospital lotado do NHS [o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido], seu chefe exige uma substituição de motorista e registra cobranças pelos itens roubados e o scanner de entrega destruído, totalizando 1.500 libras esterlinas [cerca de 9 mil reais] (somando as últimas faltas de Ricky nos turnos de trabalho).
Com as dívidas aumentando como uma bola de neve, Ricky não tem escolha a não ser voltar ao trabalho. As tensões latentes da trama entram em ebulição à medida que a família tenta desesperadamente, mas não consegue, fazê-lo sair de sua van. Contemplamos o destino de Ricky, encurralado e sozinho, cansado e machucado, enquanto o close-up final se desvanece lentamente.
Em uma cena em que Abbie desabafa sobre sua agenda interminável, Loach enfatiza a história com a pergunta capciosa de sua paciente: “O que aconteceu com a jornada de 8 horas?” A questão localiza a narrativa em um histórico de trabalhos cada vez mais casuais em detrimento de empregos sindicais seguros.
A crescente gig economy no mundo é dominada por contratos de zero horas, que não oferecem horas garantidas de trabalho. No Reino Unido, desde a crise financeira de 2008, esses contratos aumentaram para abranger mais de 1 milhão de trabalhadores. Mais de 60% dos prestadores de cuidados domiciliares, como Abbie, trabalham sob contratos de zero hora.
Um dos paralelos mais próximos da empresa de Ricky na vida real também é um dos maiores empregadores da gig economy: a Amazon. O programa de entregas de encomendas, o Amazon Flex, anuncia em seu site a oportunidade de “ser seu próprio chefe”. Esses entregadores estiveram envolvidos em centenas de acidentes nos últimos cinco anos e testemunham aos repórteres que “são tratados como bichos”.
O fato de o trabalho intermitente permitir horários flexíveis é promovido como um acordo em que todos ganham, tanto o trabalhador quanto o empregador. Para uma minoria, isso é verdade, mas Você Não Estava Aqui expõe o fato de que, para a maioria dos trabalhadores, se trata de um relacionamento unilateral e explorador. A “escolha” de quando trabalhar é inexistente quando você pode ser punido por tirar uma folga ou enfrenta a constante ameaça de ser demitido. Os empregadores ganham flexibilidade máxima sem ter que fornecer um salário mínimo, seguro desemprego, horas extras, licença médica e familiar, seguro de invalidez, direitos de negociação coletiva ou qualquer compensação por lesões ou despesas acumuladas durante a jornada de trabalho.
Refletindo sobre isso, o roteirista Paul Laverty questiona: “É de se surpreender que Jeff Bezos, presidente e CEO da Amazon, seja o homem mais rico do mundo? Jeff Bezos já teve que urinar dentro de uma garrafa quando uma reunião da sua empresa se estende?”
Como cineasta marxista, Loach nunca se contenta em simplesmente dramatizar as dificuldades de um indivíduo. Ele sempre nos apresenta argumentos sobre como as forças sociais definem a vida e o relacionamento de seus personagens. Fazer isso de forma convincente em uma obra de arte complexa e coerente pode ser um ato de equilíbrio e muitas vezes atrai críticas de conservadores (incluindo parlamentares). Sempre existe o risco de didatismo, de transformar personagens em porta-vozes, prejudicando o realismo do resultado. Mas se os filmes de Loach recebem o rótulo pejorativo de “cinema político” é apenas por serem contrários à ideologia dominante.
O exemplo mais ilustrativo disso em Você Não Estava Aqui ocorre quando o Maloney, o chefe de Ricky, explica como administra a empresa. “Você quer saber por que eu sou o número um? Porque eu faço isso feliz”. Ele segura o scanner de encomendas e diz: “este scanner compete com outros scanners. É isso que decide o contrato. Este scanner decide quem vive e quem morre”. Loach inclui esse diálogo para sugerir que a família Turner não é vítima do fracasso do capitalismo — eles são vítimas do sucesso do capitalismo.
O precioso scanner de encomendas (ameaçadoramente apelidado de “pistola”) se torna uma metáfora do capital. No capitalismo, a competição ocorre não apenas entre classes — mas também dentro das classes. Trabalhadores competem entre si pela sobrevivência, enquanto capitalistas competem entre si pelos lucros. A busca por lucros é a busca por reduzir preços, cortar salários, destruir sindicatos, precarizar o trabalho e enfraquecer a classe trabalhadora. Você Não Estava Aqui mostra a lógica abstrata do mercado e conclui que o que precisamos fazer em resposta é reduzir o poder do capital.
Recentemente, havia esperanças de que as demandas para recategorizar os trabalhadores intermitentes fossem atendidas. Em uma vitória histórica e muito necessária para a California Federation of Labor [Federação do Trabalho da Califórnia], congressistas democratas aprovaram o AB 5, um projeto de lei que classifica corretamente muitos desses trabalhadores como empregados. Pela primeira vez, milhões de trabalhadores da Califórnia terão direitos trabalhistas. Trabalhadores da Amazon em Minneapolis estão em greve. E no Reino Unido, Jeremy Corbyn pediu a proibição de contratos de zero horas no manifesto do Partido Trabalhista.
Em sua entrevista inicial, Ricky conclui seu extenso currículo verbal com um aceno sutil ao Manifesto Comunista: “Eu já fiz de tudo. Eu até cavei túmulos”. Esse papel deve retornar. Os espectadores de Você Não Estava Aqui devem ficar indignados e canalizar essa indignação para a organização da classe trabalhadora. Se a nossa determinação for minimamente parecida com a de Loach, podemos conquistar um mundo para muitos, não para poucos.
Sobre o autor
Luke Thibault é um dos organizadores da campanha Medicare for All do partido Socialistas Democráticos da América. Ele vive na Baía Leste da Califórnia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário