13 de abril de 2020

COVID da Argentina - 19 lições

A resposta ao COVID-19 dos Estados Unidos empalideceu em muitos aspectos à da Argentina. Mas não é apenas a resposta de saúde pública da Argentina que os Estados Unidos devem aprender - é também a história de resistência popular do país que será crucial para combater respostas desiguais e antidemocráticas à pandemia.

Craig Johnson 


Um cliente espera do lado de fora da "Farmacia de la Estrella" em 8 de abril de 2020 em Buenos Aires, Argentina. Marcelo Endelli / Getty.

Tradução / Nos EUA, a cobertura feita pela grande mídia sobre o surto da Covid-19 no continente americano se divide: por um lado, ela é marcada por alguma inveja das medidas canadenses, por outro, o horror pelo que se passa no Brasil, cujo presidente, Jair Bolsonaro, seja talvez o único grande líder mundial pior do que Donald Trump em termos de combate à pandemia. A Argentina, contudo, tem recebido pouca atenção, embora seu exemplo contraste duramente com o norte-americano: mais rápido, mais unificado e mais efetivo.

As medidas da Argentina são rigorosas, justificadas até certo ponto, mas também trazem de volta memórias de repressão e ditadura, com a polícia patrulhando o espaço público, prendendo violadores da quarentena. Mas sua história de organização popular e resiliência diante da crise é um exemplo a ser aprendido. Exigir que a economia funcione para todos, que o governo reconheça seus crimes e negligências e que os direitos básicos sejam respeitados mesmo em tempos de crise são lições que devemos levar adiante.

A resposta argentina
A história recente da Argentina é turbulenta. Desde os anos 1950, o país teve várias ditaduras militares. A mais recente delas governou o país de 1976 até 1983 e foi responsável pelo assassinato de 30 mil pessoas, torturadas e mortas em prisões clandestinas. Quando a democracia voltou nos anos 1980, ela veio junto de seguidos choques neoliberais, os quais resultaram em inflação massiva, crise de dívida e inúmeros acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Antes da pandemia, a grande notícia sobre o país era o retorno da centro-esquerda peronista para o poder, com a presidência de Alberto Fernandez iniciada em dezembro de 2019. Fernandez gastou seus primeiros meses no cargo implementando controles monetários, negociando com o FMI, trabalhando com o maior sindicato argentino, enquanto estendia a mão para velhos aliados regionais. Agora, é claro que ele tem uma nova crise para lidar, com críticas às suas respostas vindas da direita e da esquerda.

O novo coronavírus oficialmente chegou na Argentina tarde, sendo que o primeiro caso foi confirmado apenas em 3 de março. O paciente era um cidadão argentino que retornou a Buenos Aires depois de ter visitado Milão. Ele foi para uma clínica privada em primeiro de março, manifestando sintomas do vírus e foi rapidamente isolado de outros pacientes. O ministro da Saúde argentino levou a sério o caso e tratou de conter a expansão da pandemia. Enquanto isso, o presidente se juntou ao seu ministro para preparar o sistema público de saúde para uma grande emergência.

Infelizmente, duas semanas depois, mais casos foram registrados país adentro. Em resposta, a Argentina moveu-se para uma paralisação nacional de todas as atividades não essenciais. Por esse motivo, nos primeiros dias de quarentena, apenas 150 casos foram confirmados com apenas três mortes. Em comparação, a Itália teve um número similar de casos em 23 de fevereiro, mas só fechou suas regiões do norte e baniu eventos de massa.

O presidente Fernandez anunciou o programa para a pandemia na quinta-feira, 19 de março, para entrar em vigor já na manhã do dia seguinte. As medidas do chamado Isolamento Social Preventivo e Obrigatório foram empregadas por militares, policiais, guardas provinciais e metropolitanas não muito diferente dos EUA. Mas ao contrário dos EUA, a polícia argentina imediatamente começou a levar a sério as medidas, assim como punir aquelas que as violavam.

A primeira prisão sob as novas regras ocorreu na manhã de 20 de março em Córdoba, quando um jovem foi confrontado por um grupo de guardas municipais sobre o que fazia fora de casa. Em resposta, soltou um “não tenho que dar explicações a ninguém”, o que é punível com algo entre seis meses e dois anos de prisão. Ele foi apenas uma entre sessenta e cinco pessoas confrontadas por violar a quarentena em Córdoba no primeiro dia.

Compare isso com a resposta dos EUA, onde o primeiro caso foi identificado em janeiro, mas as primeiras determinações de recolhimento foram dadas apenas em meados de março. Mesmo agora, há Estados nos quais não há leis para isolamento, enquanto na Argentina há um decreto nacional cobrindo da enorme cidade de Buenos Aires até a desabitada e longínqua Patagônia.

A lei argentina restringe o trânsito a idas para supermercados próximos, farmácias e viagens curtas para realizar outras necessidades básicas, enquanto nos EUA, mesmo lojas de vídeo games e mega-igrejas são consideradas essenciais e, portanto, continuam abertas. A Argentina fechou suas fronteiras antes do seu lockdown, enquanto os EUA se mantêm abertos para alguns negócios e viagens. Fernandez imediatamente procurou ajuda externa durante a crise. Enquanto Trump levou meses para aceitar a ideia de que outros países, particularmente a China, poderiam fornecer aos EUA os suprimentos e conhecimentos necessários.

Na falta da capacidade de realizar o tipo de testagem universal observada em países como a Coréia do Sul, o distanciamento social continua sendo a única opção para combater a propagação da doença na Argentina e nos EUA. O presidente Fernandez diz que sua aplicação deve ser “inflexível”. A história recente do governo militar argentino empresta um tom diferente a isto do que em Paris ou Milão.

Argentinos de meia-idade podem relembrar de um tempo no qual ser enquadrado por um grupo de policiais na rua poderia significar sequestro, meses de tortura em locais secretos e, possivelmente, a morte. Dadas as terríveis condições do sistema de prisão argentino, pega um tempo de prisão por violar a quarentena pode, facilmente, significar infecção e risco de sofrer violência de carcereiros e outros prisioneiros.

A resposta da Argentina ao surto de vírus foi rigorosa e rápida, mas isso não impediu sua propagação. Trinta e seis pessoas já morreram com o vírus apenas um mês desde o primeiro caso confirmado, com a primeira morte após o primeiro caso em apenas alguns dias. Isso coloca a Argentina na mesma posição que os EUA, com medidas de distanciamento social que provavelmente durarão meses, e não semanas, e um grande colapso econômico no horizonte. Por enquanto, terá que contar com medidas de policiamento e seu sistema misto de saúde público/privado enquanto aguarda o desenvolvimento de uma vacina ou outro tratamento eficaz.

Mas os argentinos, mais do que muitos nos EUA, estão acostumados a choques repentinos e maciços na economia e na sociedade que levam anos ou décadas para serem resolvidos. Em resposta a essas crises, eles se organizaram.

A experiência de luta argentina
Na Argentina, existe um histórico de resistência à última ditadura, o exemplo mais famoso são as Mães e Avós da Praça de Maio, um coletivo de mulheres cujos filhos ou netos desapareceram no última regime militar. Hoje elas são símbolos universais da resistência. A Argentina foi o centro da recente onda de marchas feministas na América Latina, reivindicando direito ao aborto, o fim da violência misógina e justiça para a comunidade LGBTQ. Mas, talvez, o exemplo mais esperançoso a seguir nesta crise e nos próximos problemas econômicos seja o legado da horizontalidad, ou horizontalismo.

Horizontalidad descreve a organização democrática popular que tomou a Argentina durante a crise econômica de 2001, a qual resultou em um nível de desemprego semelhante ao esperado nos EUA devido à pandemia. Em resposta, os argentinos organizaram sindicatos de desempregados e conquistaram mais alívio financeiro em detrimento ao pagamento da dívida internacional. Eles trabalharam com redes de resistência como as Mães e Avós e os partidos de esquerda existentes. Os trabalhadores recuperaram suas fábricas vazias e começaram a produção como cooperativas. As assembléias de bairro ajudaram a suprir as necessidades das pessoas em nível local, ocupando prédios abandonados e refazendo-os como centros comunitários e espaços de reunião.

A Horizontalidad, estava longe de ser perfeita. Como o movimento Occupy nos EUA, ele se concentrava na auto-ajuda e na camaradagem, para além do Estado. A democracia direta pode ser anárquica ou acabar controlada por poucos privilegiados e é, assim, efetivamente impossível em tempos de distanciamento social. E sua rejeição ao Estado é exatamente o oposto do que é necessário em uma crise como esta, na qual o Estado é o único órgão suficiente para coordenar uma resposta consistente. Ainda assim, a solidariedade de base e a organização política serão necessárias nos EUA durante e após a pandemia.

As lições que os argentinos aprenderam nos anos 1970 e no século XXI — que os governos vão utilizar violência de Estado para controlar os cidadãos, que a economia não vai funcionar para a maioria, que a organização popular é chave para responder a tais perigos — são lições que pessoas de todos os países vão precisar decorar nos meses e anos vindouros.

Austeridade e indiferença governamental forçam as pessoas a confiar em culturas de apoio coletivo, e ajuda mútua, para sobreviver a tempos difíceis. Eles não podem ser romantizados como o objetivo final. Preencher as lacunas deixadas pelo fracasso do governo em suprir as necessidades básicas manterá as pessoas vivas, mas não transformará a economia sem educação política e organização para, assim, exigir que o enorme poder acumulado pelo governo e empresas privadas seja colocado em uso público.

A história recente da organização popular da Argentina tem muito a ensinar às pessoas dos EUA e de outros lugares. Organização comunitária e solidariedade não somente ajudam pessoas a sobreviverem a repressão e recessão — elas dão para as pessoas esperança quando elas mais precisam. Mas uma das lições mais importantes dessa história argentina é que esse tipo de resistência não é suficiente. Sindicatos e associações de desempregados podem ser cooptados por figuras políticas do establishment, e protestos e organização podem ser enfrentados com repressão policial violenta e até mortal.

Organizadores de medidas como essas nos EUA vão ter de antecipar esses contratempos e, assim, se preparar para uma luta que durará muito mais tempo do que a própria pandemia. Eles vão precisar se fortalecer não apenas para combater os problemas de hoje, mas para amanhã, para ir além do local e do particular, para estarem prontos quando a repressão chegar e para seguir adiante, apesar dos contratempos ou perdas.

Uma crise global não pode ser resolvida localmente. Superar a pandemia e a recessão exigirá poder estatal e cooperação internacional. Isso significa seguir o exemplo argentino e organizar os trabalhadores, os desempregados e as vítimas da violência do Estado, não apenas por eles mesmos, mas pressionar o governo e construir articulação popular para o futuro. Isso significa exigir serviços de saúde público que possam coordenar recursos e prover as pessoas quando elas perderem o emprego, e trabalhar com os países vizinhos em vez de ameaçar cortar os suprimentos vitais. Significa seguir os argentinos do século XXI e os norte-americanos do século XX para formar sindicatos de desempregados para exigir programas de emprego e benefícios, que o governo resgata seu povo e não suas corporações.

Essas campanhas não serão bem-vindas por nenhum governo dos EUA, republicano ou democrata, porque desafiam suposições fundamentais sobre a economia e a ordem internacional. Mas é exatamente por isso que essas campanhas são a única saída da próxima recessão, que mostra todos os sinais da Argentina em 2001 ou dos EUA em 2008 para rivalizar com a própria Grande Depressão de 1929.

Nos EUA, essas lições são históricas, mas na Argentina são a memória viva de milhões. Os argentinos sabem que tempos de incerteza não podem ser esperados. Eles precisam ser respondidos com poder popular. Só então pode haver esperança de sair da crise não apenas tendo sobrevivido, mas pronto para construir um mundo melhor.

Sobre o autor

Craig Johnson é um estudante de doutorado em história na Universidade da Califórnia-Berkeley.

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