20 de abril de 2020

A Renda Básica é uma tábua de salvação - mas não será uma bala de prata nesta crise

Com milhões de pessoas desempregadas, analistas de todo o espectro político proclamaram que chegou a hora de uma Renda Básica Incondicional. Mas essa rede de segurança não será suficiente, a menos que enfrentemos o maior problema que temos - um modelo econômico baseado em aluguéis caros e altas dívidas pessoais.

Emilio Caja e Leonie Hoffmann

Jacobin

Um entregador de restaurante usa uma máscara protetora enquanto anda de bicicleta durante a pandemia de coronavírus em 19 de abril de 2020 na cidade de Nova York. Cindy Ord / Getty

Tradução / À medida que a pandemia da COVID-19 envolvia a Europa e a América do Norte, fundamentos inabaláveis da política neoliberal pareciam se esvair no ar. O aumento da intervenção governamental na prestação dos serviços de saúde parece transgredir décadas de privatização e de “eficiência” do mercado. Pacotes de estímulo financiados por dívida, e fundos de resgate de proporções sem precedentes indicam uma reviravolta para a política econômica expansionista. O lockdown imposto pelo Estado mudou o foco da atenção para o valor social de bens e serviços e está alimentando uma conversa crescente sobre o objetivo do trabalho e da economia. Não é à toa que, na esquerda, essas medidas reacenderam a esperança sobre o potencial emancipatória da crise — e, para alguns, indicavam nada menos do que o fim do neoliberalismo.

Em nenhum lugar essa esperança era mais visível do que entre defensores da Renda Básica Universal (RBU). Após décadas de advocacy e “integração”, parecia que o apelo por uma renda garantida para todos finalmente estava tendo seu momento. Até mesmo o Financial Times reconheceu que a distribuição de dinheiro fazia sentido durante uma pandemia que obriga as pessoas a ficar em casa sem ir para o trabalho. Objeções batidas, porém poderosas, sobre preguiça e incentivos ao trabalho se tornaram repentinamente redundantes, enquanto o contexto de emergência liberava recursos fiscais outrora guardados a sete chaves.

Mas, à medida que esboços dessas medidas de assistência oficiais tomaram forma, o entusiasmo em relação à RBU foi atenuado. A mídia tem sido rápida em usar rótulo “RBU” para toda e qualquer transferência de dinheiro visando estabilização salarial — por exemplo, vários meios de comunicação anglófonos anunciaram a introdução da RBU na Espanha, quando na verdade, o que governo daquele país propôs foi uma medida de alívio da pobreza, beneficiando apenas cerca de 5 milhões de pessoas. Em nenhum lugar as respostas atuais do governo tomaram a forma de uma renda básica universal. Em vez disso, as medidas existentes são fragmentadas, ad-hoc e limitadas temporalmente. São respostas insuficientes à necessidade iminente de apoio à renda durante o lockdown — com pouco a oferecer para aqueles que já são mais expostos e vulneráveis, à medida que o desemprego e as precárias relações empregatícias se aprofundam dramaticamente na recessão que se aproxima.

A RBU é, de fato, uma alternativa preferível? E, se sim, poderia ser implementada? Quando tudo parece fluir, o anteriormente inimaginável se torna repentinamente concebível. Mas, apesar da aparente popularidade, não podemos esperar que essa ideia se concretize sem luta. Os períodos de crise expõem as relações de poder em toda a sua brutalidade, sem as mediações usuais — elas não são suspendidas. Além disso, o foco em uma única política em meio a uma crise de proporções épicas encobre os riscos de transformações mais profundas nos mercados de trabalho e no alinhamento de classes. Nesse sentido, a RBU pode ser uma tábua de salvação crucial na recessão que se aproxima — mas não será uma bala de prata.

Gerenciando a crise

Ofato de termos um mapa claro da situação à nossa frente é uma pré-condição para entendermos o caminho a ser seguido pelas lutas emancipatórias. Nesse sentido, as respostas emergenciais até o momento revelam a distribuição de poder e de prioridades e as divisões estabelecidas no mercado de trabalho. E, embora inadequadas, essas respostas também carregam consigo algumas oportunidades que podem ser aproveitadas para uma transformação mais ampla.

Apesar de sua grande escala, a resposta do governo britânico tem sido fundamentalmente conservadora em termos de orientação. Embora tenha como objetivo facilitar o retorno ao status quo pré-crise, minimizando a perda de empregos, mantém as divisões existentes no mercado de trabalho e o sistema punitivo das provisões do Universal Credit [sistema de subsídio do governo britânico para pessoas de baixa-renda ou desempregadas]. Os subsídios governamentais recém-introduzidos no país cobrem até 80% dos custos salariais por um período limitado — apenas se os trabalhadores não forem demitidos. Diante da pressão do público, essa medida foi complementado por um esquema que cobre parte dos lucros perdidos dos trabalhadores autônomos, mas ainda deixa de fora os trabalhadores precarizados da gig economy e os novos entrantes no mercado de trabalho. Aqueles que já tinham perdido o emprego caem em uma “rede de segurança” de desempregados, altamente insuficiente graças aos princípios neoliberais de workfare [bem-estar em troca de trabalho].

Nos Estados Unidos, uma distribuição pontual de 1.200 dólares foi implementada em meio à crescente atenção à renda básica no debate nacional. Embora a rede de segurança do país seja ainda mais limitada, as medidas atuais incluem aumentos drásticos no auxílio desemprego e na extensão dos direitos dos trabalhadores vulneráveis, incluindo freelancers e autônomos. Essas medidas fornecem apoio salarial direto sem recorrer aos empregadores e têm o potencial de erodir as divisões existentes entre a classe trabalhadora ao unificar direitos. No entanto, esses ganhos não serão suficientes diante da grande convulsão social trazida pela próxima recessão.

Como um dos países mais atingidos pelo coronavírus, a resposta italiana é uma colcha de retalhos de esquemas de apoio salarial: além do seguro desemprego tradicional e uma renda mínima garantida introduzida mais recentemente, um novo mecanismo de apoio de emergência consiste em um bônus de 600 euros para trabalhadores autônomos e de meio turno, e pode incluir uma “renda emergencial” adicional para quase 3 milhões de pessoas ainda descobertas. Atualmente, campanhas de combate a essa fragmentação estão em andamento, estendendo a renda mínima garantida a todos os necessitados e eliminando requisitos de trabalho — aproximando-a da RBU.

A promessa da RBU

As vantagens da RBU são claras nas circunstâncias atuais: 1) aborda diretamente o problema salarial enfrentado pelos trabalhadores, sem recorrer aos empregadores ou a extensas análises de recursos financeiros; 2) garante de maneira flexível a segurança salarial à medida que as relações de emprego são alteradas; 3) evita a fragmentação de respostas adaptadas a grupos específicos; 4) pode atender às necessidades dos trabalhadores que se encontram em situação de trabalho atípica, informal ou precária (por exemplo, aqueles com contrato de zero hora, considerados autônomos por convenção) e aqueles que realizam trabalho doméstico ou comunitário não remunerado, visto que, por exemplo, a assistência infantil tem exigido mais tempo devido ao fechamento das escolas; e 5) aumenta o poder de barganha dos trabalhadores que permanecem engajados em atividades essenciais, lutando por condições de trabalho mais seguras e compensando os riscos a que estão expostos.

No entanto, há uma diferença crucial entre transferências de dinheiro incondicionais como resposta às perdas de renda imediatas devido ao lockdown e uma RBU permanente e completa.

Sejamos claros: uma crise econômica está acontecendo no encalço da pandemia e certamente ofuscará tudo o que já vimos em nossas vidas. Nessas circunstâncias, as medidas de alívio temporário estão muito longe de uma RBU permanente e sua promessa emancipatória de nos libertar das preocupações com meios de subsistência. Também não devemos presumir, como fazem alguns de seus defensores, que uma RBU de emergência — se fosse implementada hoje —seria mantida uma vez que seus benefícios fossem demonstrados na prática.

Pelo contrário: quando os governos tentarem alavancar a economia, podem ser tentados — ou forçados — a empurrar os custos dos atuais pacotes de emergência para as costas dos trabalhadores, por meio de compressão salarial, altos níveis de desemprego e cortes no bem-estar social. Já estamos testemunhando a socialização em larga escala de perdas nos resgates corporativos, acompanhadas de mantras que pedem sacrifícios coletivos. Mas as elites capitalistas podem exigir formas de austeridade neoliberal ainda mais severas após a crise da saúde.

Prevenir esse cenário depende de como usamos as oportunidades do momento presente para nos mobilizar e resistir a uma distopia pós-pandêmica. Seções amplas da sociedade se beneficiariam de uma RBU de emergência no momento presente, o que poderia proporcionar uma plataforma de unificação das demandas por apoio financeiro. Mas a transformação de tal medida em uma RBU estrutural permanente também exigirá forte mobilização. Construir uma coalizão de classe sustentável será um desafio, já que os trabalhadores são afetados diferentemente pela crise atual. Finalmente, devemos estar vigilantes para não cair na miragem das transferências de renda, enquanto as relações trabalhistas, a segurança salarial e as provisões de bem-estar social são ainda mais esvaziadas.

Transformações do mercado de trabalho

Apesar do que muitos querem que acreditemos, essa crise não atingiu todos da mesma maneira. À medida que o risco de contágio regride e o lockdown diminui lentamente, o distanciamento social terá um impacto tremendo e duradouro na demanda de mão-de-obra, com consequências dramáticas para a composição do mercado de trabalho. Muitos — embora não todos — trabalhadores de colarinho branco da classe média, que passaram a fazer home-office, podem contar com fluxos contínuos de renda e vínculos empregatícios. Por outro lado, um grande número de trabalhadores nos setores de manufatura e de serviços foi forçado a parar de trabalhar, pois tais setores foram considerados não essenciais — principalmente nas indústrias de hospitalidade, entretenimento e aviação, entre outros.

Quanto mais esses setores dependem de trabalhos de curto prazo, inseguros ou atípicos, maiores são as perdas subsequentes de empregos, à medida que há uma redução de operações em meio à crise econômica. Os Estados Unidos já testemunharam o mais acentuado aumento do desemprego na história, com 22 milhões de pessoas solicitando auxílio desemprego apenas entre o final de março e de abril. No entanto, nem todos os trabalhadores estão em casa. Por exemplo, os setores de distribuição — geralmente moldados pela insegurança salarial e empregatícia — fazem parte da infraestrutura fundamental da economia de distanciamento social, acelerando a mudança para modos de consumo mais sedentários. Gigantes corporativos como Amazon e Deliveroo aumentarão seu domínio em um mercado onde os trabalhadores — já mal protegidos — serão disciplinados pelo alto desemprego.

É aqui que a interação entre as transformações no mercado de trabalho e as transferências de renda emergenciais se torna crucial. Podemos esboçar os seguintes cenários: na pior das hipóteses, a pressão das elites econômicas e dos tecnocratas neoliberais para reverter os subsídios de emergência encontrará pouca oposição entre a classe média instruída, capaz de voltar ao trabalho. Isso deixará uma massa de trabalhadores recém-desempregados ou precarizados com pouco apoio substancial. Certamente, a experiência dos colarinhos brancos durante o lockdown poderia incentivar o interesse em uma RBU permanente. O alívio temporário do deslocamento e as novas sensibilidades sobre o valor do trabalho podem dar origem a demandas por um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional e uma redução da semana de trabalho para oportunizar o foco em atividades significativas. Argumentos sobre a RBU como uma maneira de manter o estilo de vida da classe média enquanto reduz “trabalhos inúteis” podem parecer particularmente atraentes nesse contexto.

Mas um compromisso teórico entre a classe média e as elites econômicas, a fim de manter esquemas emergenciais de apoio financeiro, pode prejudicar a massa crescente de trabalhadores precarizados e desempregados. Uma RBU reduzida é suficiente para compensar cortes salariais causados por uma redução da semana de trabalho, mas não cobrirá os meios de subsistência daqueles que precisam de substituições de renda substanciais diante de uma profunda crise estrutural que os deixará desempregados ou subempregados. Pior, como muitos continuam lutando para sobreviver com um suporte financeiro escasso, qualquer dinheiro extra será embolsado pelas elites por meio de hipotecas, dívidas e pagamentos de aluguel. Nos Estados Unidos, bancos e cobradores de dívidas privadas já receberam carta branca para capturar transferências de renda de “estímulo”, como compensação de dívidas anteriores, apesar de esses pagamentos terem o objetivo explícito de amparar os meios de subsistência. Nesse cenário, uma RBU poderia obscurecer e legitimar uma condição permanentemente agravada para a classe trabalhadora precarizada.

A transformação das atuais transferências de renda em uma RBU estrutural e permanente precisa ser impulsionada por forte mobilização popular e sustentada por demandas de apoio total aos meios de subsistência, para que esse objetivo tenha alguma chance de sucesso. Ao mesmo tempo, não devemos negligenciar a necessidade de melhorias substanciais em setores já marcados por insegurança salarial e empregatícia. Qualquer luta pela RBU seria derrotista, a menos que inclua a luta contra a acumulação financeira, o endividamento das famílias, a contenção do bem-estar social e a compressão salarial, principalmente nos empregos cujo valor social se tornou mais óbvio do que nunca.

A pandemia revelou as falhas da luta. Com isso vem a grande oportunidade da presente conjuntura: o reconhecimento de que não podemos voltar ao normal. Mas também precisamos estar atentos ao risco, muito concreto, de que o novo normal pode ser pior que o antigo. Devemos moderar o nosso otimismo utópico, tanto quanto nossos reflexos de denunciar o que podem ser oportunidades políticas. Os resultados da crise são fundamentalmente uma questão de organização política. Precisamos prestar mais atenção às lutas, diversas mas interligadas, que moldam esses resultados. Caso contrário, mesmo que uma RBU de emergência seja uma batalha vitoriosa, estaremos perdendo uma guerra.

Colaboradores

Emilio Caja é um estudante de MPhil em política e sociedade européia na Universidade de Oxford, concluindo uma dissertação sobre as transformações do mercado de trabalho e do estado de bem-estar da Itália.

Leonie Hoffmann é uma aluna do MPhil em estudos de desenvolvimento na Universidade de Oxford. Atualmente, ela está escrevendo sua tese sobre o debate sobre subsídios em dinheiro incondicionais para adultos na África do Sul.

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