16 de março de 2021

César Vallejo, o poeta comunista

Em 16 de março de 1892 nasceu o poeta peruano César Vallejo, um dos maiores expoentes da poesia de vanguarda latino-americana do século XX.

Víctor Vich

Jacobin


César Vallejo é um dos fundadores da poesia na América Latina e uma figura decisiva na literatura mundial do século XX. Seus versos construíram uma forma literária diferente, mas também foram além, ao propor uma visão desafiadora da história humana. Impulsionada pela mensagem cristã de igualdade e solidariedade, pela revolução russa e pelo compromisso universalista que a defesa da República Espanhola desencadeou, a obra de Vallejo testemunha o contato fecundo com uma verdade: a do "acontecimento comunista".

Toda a sua poesia mostra como uma voz vai sendo tecida por uma verdade que, neste caso, é uma verdade política, que busca a emancipação humana e luta por ela. São versos que olham para as possibilidades ainda não realizadas na história e procuram convocá-las de forma decisiva. Se hoje reconhecemos que Vallejo é um clássico da literatura, é porque sua obra traz uma verdade que aguilhoa o sentido do dado e restaura o universal da justiça humana.

Uma poesia do universal

Ya va a venir el día; da
cuerda a tu brazo, búscate debajo
del colchón, vuelve a pararte
en tu cabeza, para andar derecho.
Ya va a venir el día, ponte el saco.

A poesia de Vallejo é, com efeito, aquela que surge de uma profunda convicção política porque reconhece que, ao longo da história, ocorreu um conjunto de acontecimentos que trazem consigo ideias universais de justiça e igualdade que permeiam todos os tempos. Embora seus versos nunca tenham tido escrúpulos em reconhecer como os seres humanos se encolheram diante do acontecimento (c¡como quedamos de tan quedarnos!, Diz um verso notável de Trilce XIX), a verdade é que boa parte de seus poemas confirmam como nós, sujeitos, somos capazes de tomar decisões e ser fiel a um ideal mesmo quando tudo se tornou adverso. “O homem é identificado pelo seu pensamento afirmativo, pelas verdades únicas de que é capaz, pelo imortal que o torna o mais resistente e o mais paradoxal dos animais”, sublinhou Badiou em La Ética.

Como eu exponho em meu livro, César Vallejo: un poeta del acontecimiento, Vallejo entendeu o comunismo como a possibilidade de reconciliar o homem com o passado, com a natureza e consigo mesmo. Se a história humana foi uma longa história de escassez e exploração social, o comunismo poderia transformá-la em uma ação produtiva, justa e igualitária. Vallejo comemorou os avanços da modernidade, mas questionou a concentração do capital, a nova cultura do consumo e os interesses dominantes dos centros de poder.

Já de Lima, mas principalmente na Europa, Vallejo começou a se sentir parte daquelas demandas que exigiam uma mudança radical. Vallejo chegou à Europa após a Primeira Guerra Mundial, conheceu os avanços da Revolução Russa, sofreu a crise econômica de 1929, observou as lutas dos trabalhadores em todo o continente e contemplou - com horror - a ascensão do fascismo. Pessoalmente, vivia a pobreza em primeira mão, pois dificilmente tinha um emprego estável: suas reportagens jornalísticas eram sempre mal pagas, pagas com atraso ou diretamente carentes de remuneração.

Este fragmento de uma carta dirigida a Pablo Abril de Vivero em 27 de dezembro de 1928 é bem conhecido: “Sinto-me revolucionário e revolucionário pela experiência vivida e não pelas ideias aprendidas.

Ya viene el día; dobla
el aliento, triplica
tu bondad rencorosa
y da codos al miedo, nexo y énfasis,
pues tú, como se observa en tu entrepierna y siendo
el malo ¡ay! inmortal,
has soñado esta noche que vivías
de nada y morías de todo...

Nessa poesia, o comunismo se refere a um excesso que transborda diante do estado normal da realidade. Sabemos que toda verdade traz algo de excessivo porque anuncia o surgimento de algo verdadeiramente novo. Em que consiste? O comunismo oferecia uma "sociedade de produtores associados" onde o excedente não era privatizado, onde as relações entre capital e trabalho sempre podiam ser reinventadas e onde o bem comum era a estrutura geral para a realização pessoal. Nessa poesia, o comunismo era muitas coisas; mas, acima de tudo, era um excesso de vontade. A “ideia comunista” convidava à articulação das velhas exigências da história, das lutas muito duras do presente e da necessidade de produzir uma verdadeira mudança histórica. Vallejo viu no comunismo a possibilidade de superar uma subjetividade vitimizadora e temerosa.

O sujeito da poesia de Vallejo é, antes de tudo, um sujeito da vontade. Se sua poesia tem um componente ético, isso ocorre porque ele tenta reconstruir a categoria do sujeito. A ideia é a seguinte: um sujeito só se torna sujeito (um homem humano, em suas palavras) quando opta por ser fiel a uma verdade; quando se envolve com o acontecimento, quando toma uma decisão que o transforma completamente.

Vallejo observa que a vida humana é fundamentalmente inércia (se compone de días, diz um verso famoso) e que só a aceitação do evento pode forçá-la a sair de sua armadilha circular. “Todo sujeito está na encruzilhada de uma repetição, de uma interrupção, de um local e de um excesso”, argumentou Badiou no Théorie du sujet, em sua necessidade de argumentar como “um animal humano” só se torna sujeito quando está disposto a ser re-subjetivado; isto é, ser transformado por ter experimentado o contato com aquele processo de verdade que o acontecimento traz consigo.

Por isso, em seus últimos poemas, Vallejo se propôs a festejar um grupo de personagens que defenderam a "ideia comunista" até as últimas consequências. São personagens que souberam tomar uma decisão, que não desistiram diante das dificuldades e que não hesitaram em dar a vida heroicamente. Se Vallejo escreveu sobre eles, o fez com o intuito de gerar um contraste: neutralizar o caráter reativo diante da verdade do acontecimento. É uma poesia que observa como os processos de subjetivação pessoal estão intimamente relacionados com a fidelidade ou infidelidade diante de uma decisão sempre muito difícil de ser tomada.

Muitos poemas sustentam que a única maneira de ser verdadeiramente humano consiste na vontade de superar a humanidade comum e aspirar a algo maior. Essa reconciliação com o excessivo só pode surgir no momento em que o sujeito decidiu ser fiel à verdade do acontecimento. "A única coisa de que se pode ser culpado é ter cedido ao seu desejo", sustentou Lacan para sublinhar que o sujeito não deve se deixar chantagear pela falta de garantias. De múltiplas maneiras, a poesia de Vallejo promove não ter medo das decisões e dos atos que elas implicam. É uma poesia que convida a insistir nas verdades para além das derrotas.

Um poeta do futuro

Vallejo é um poeta que nos coloca diante de uma ética de responsabilidade e convicção. Apesar de todos os fracassos ocorridos, sua poesia insiste que devemos seguir em frente e almejar o impossível. Em muitos desses versos (ou seja, nas descrições dos voluntários da República, de Pedro Rojas, de Ramón Collar, entre outros), Vallejo se esforça para representar o sacrifício daqueles que escolheram apoiar esse desejo e transformá-lo em um "ato".

É verdade que muitas vezes esses personagens são deixados sozinhos ou falham, mas não é menos verdade que eles são heroicos porque sua fidelidade à verdade demonstra a inerente falta que existe no simbólico. Por isso mesmo encenam a paixão ou o desejo de ir além do senso comum, de ter a coragem de transformar pulsão em desejo ou, melhor dizendo, de direcionar o excesso humano para uma nova opção política.

Pedro Rojas, así, después de muerto,
se levantó, besó su catafalco ensangrentado,
lloró por España
y volvió a escribir con el dedo en el aire:
«¡Viban los compañeros! Pedro Rojas».
 Su cadáver estaba lleno de mundo.

A poesia de Vallejo anuncia o acontecimento, confirma sua presença no mundo e, por fim, defende-o apesar das derrotas. Vallejo percebeu, ao dizer com Žižek, que "as ideias verdadeiras são indestrutíveis e retornam sempre que sua morte é anunciada". Por isso, continua Žižek, "como o poeta dos vencidos, procurou gerar uma temporalidade diferente para fundar um novo tempo".

Digamos de outra forma: ainda que a história mostre que causas desse tipo estão irremediavelmente perdidas, ainda que nos martelem dia após dia sobre a impossibilidade dessas causas, ainda que nos digam que o capitalismo é o único horizonte e que a justiça social é impossível, a poesia de Vallejo sempre nos convida a sair em busca da Espanha, a nunca desistir de criticar o poder. Deste ponto de vista, Vallejo é sempre um poeta do presente, um poeta do futuro, o poeta mais contemporâneo do mundo vindouro.

Colaborador

Doutora em Literatura Hispano-Americana pela Georgetown University, coordenadora do Mestrado em Estudos Culturais da Pontificia Universidad Católica del Perú e pesquisadora principal do Institute of Peruvian Studies.

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