18 de março de 2021

Os communards eram mais do que belos mártires

150 anos desde a Comuna de Paris, os militantes que construíram o primeiro governo da classe trabalhadora do mundo são frequentemente comemorados como mártires, em vez de levados a sério como revolucionários. No entanto, nos anos após 1871, os socialistas buscaram tirar lições práticas dessa experiência - e construir as organizações que poderiam transformar a promessa da Comuna em uma mudança social duradoura.

Jean-Numa Ducange

Jacobin

Ilustração retratando as mulheres de Montmartre marchando para defender uma barricada e carregando uma faixa dizendo "A Comuna ou a Morte" durante a Comuna de Paris de 1871. (Arquivo da História Universal / Grupo de Imagens Universais via Getty Images)

Tradução / O que devemos aprender com a experiência da Comuna de Paris? No final do século dezenove, essa era uma das principais perguntas enfrentadas pelos socialistas. Ainda que a Comuna tenha terminado em uma terrível derrota em maio de 1871, os communards executados foram celebrados como mártires que teriam caído na linha de frente da luta. E nas décadas depois de sua esmagadora derrota, socialistas e anarquistas obtiveram aprendizados do que eles levaram como uma experiência prática única.

Por volta do final do século dezenove na França, tanto os sobreviventes da Comuna (Louise Michel, Benôit, Édouard Vaillant) quanto aqueles que a apoiaram fora de Paris (como o futuro líder socialista Jules Guesde, em Montpellier durante a primavera de 1871) tiveram um papel enorme no curso que das múltiplas tendências do socialismo francês. A memória da Comuna também foi mantida viva por militantes para além da França, através das comemorações de 18 de março, todo ano celebrando as ações gloriosas dos communards. De Berlim a Moscou, de Londres a Budapeste, e logo após até mesmo em Tokyo e Shangai, a palavra “Comuna” significou a revolução de Paris e os heróicos communards que morreram em combate.

O aniversário da Comuna foi marcado com uma cerimônia especial na Alemanha, onde os Sociais Democratas (SPD) tinham se tornado o partido de trabalhadores mais forte da Europa por volta de 1880. Na verdade, essa data tem um significado singular em Berlim. A história da Comuna de Paris era intrinsecamente conectada com a Guerra Franco-Prussiana; a maioria dos communards deixaram o seu patriotismo, com o chamado de defender a França, e a própria Paris, junto com objetivos sociais mais claros. Esse conflito internacional fez as demonstrações de solidariedade alemãs – organizada pelos fundadores da Social Democracia, Wilhelm Liebknecht e August Bebel – ainda mais heróicas.

Coincidentemente, 18 de março invocou não somente o começo do levante parisiense em 1871, mas também as barricadas erguidas em Berlim em 1848. Essa data ao mesmo tempo proporcionou aos militantes uma oportunidade de celebrar a herança revolucionária dos dois países. Cada uma dessas revoltas terminou em derrota – e vitória para as forças da contrarrevolução. Mas eles também marcaram um caminho para o futuro e a base para uma nova sociedade.

Em uma era em que as classes dominantes de ambos países estavam cultivando um calvinismo agressivo, a comemoração desse aniversário, tanto francês quanto alemão, foi uma das primeiras tentativas concretas de construir uma cultura internacionalista. Essa não foi meramente uma proposta teórica: as marchas gigantes que os alemães e os sociais democratas austríacos organizaram em Berlim e Viena (e em muitas outras cidades industriais), em 1898 para marcar os 50 anos de 1848, também honraram a experiência francesa.

Tais eventos mostram o quanto os militantes eram envolvidos com essa memória compartilhada. Assim, seria errado considerar essas demonstrações como um simples apelo de levantar barricadas como em 1871. Pois a Comuna de Paris também proporcionou uma experiência de derrota, que os socialistas tinham que aprender.

Uma crítica da Comuna?

Em A Guerra civil na França, Marx tinha considerado a Comuna como uma experiência política de um novo tipo. Sua solidariedade foi ainda mais profunda, dado que os comunnards haviam sido esmagados impiedosamente (ele escreveu esse texto logo depois do fim do levante). Mas, enquanto a contribuição dos communards não estava em xeque, uma vez que a situação foi se acalmando, Marx e Engels também se mostraram preparados para criticar alguns métodos da Comuna.

Por exemplo, em 14 de janeiro, 1871, Engels escreveu para o seguidor de Bakunin italiano Carlo Terzaghi (que depois foi descoberto que era um informante da polícia) que “se tivesse tido um pouco mais de autoridade e centralização na Comuna de Paris, ela teria triunfado sobre a burguesia… e quando as pessoas me dizem isso… essas são duas coisas a serem totalmente condenadas, me parece que aqueles que falavam assim ou não sabem o que uma revolução é, ou são revolucionários apenas de nome.” Nesse sentido, indo contra contra alguns trechos em A Guerra civil na França que basicamente se inclinava mais em direção à descentralização, Engels insistiu que qualquer revolução política ausente de autoridade centralizada estava fadada ao fracasso.

Alguns anos depois, o próprio Marx ofereceu uma análise crítica da experiência. Em 22 de fevereiro de 1881, ele escreveu para o holandês Ferdinand Domela Nieuwenhuis: “Tirando o fato que esse foi meramente um levante de uma cidade em condições excepcionais, a maioria da Comuna não era em nenhum sentido, socialista, nem poderia ser. Com uma pequena quantidade de senso comum, entretanto, eles poderiam ter atingido um acordo com Versalhes, útil o bastante para toda a massa de pessoas – a única coisa que poderia ser alcançada na época. A apropriação do Banco da França sozinha teria sido suficiente para dissolver todas as pretensões da corte aterrorizada de Versalhes, etc., etc.”

Em 29 de outubro de 1884, numa carta para Bebel, Engels foi ainda mais abrupto: “enquanto a Comuna foi o túmulo do jovem socialismo especificamente francês, foi também ao mesmo tempo, para a França, o berço do novo comunismo internacional.” Ainda, em outros textos, a Comuna continuou sendo exemplo. Em um prefácio de 1891 para A Guerra civil na França, Engels concluiu que a Comuna tinha sido um exemplo da “ditadura do proletariado” – a ditatura da maioria trabalhadora sobre a minoria de exploradores. Então, a Comuna foi sem dúvida algo a ser celebrado, mas foi também um modelo ou uma experiência que os socialistas tinham que ultrapassar??

Dez anos depois do prefácio (e por conseguinte a morte de Engels em 1895), em 1901, o genro de Marx, Charles Longuet (marido da filha de Marx, Jenny) publicou uma nova edição dos textos de Marx, com uma mudança notória no título: A Guerra civil na França era agora A Comuna de Paris. Longuet claramente buscou evitar a referência da “guerra civil” e, ao invés, promover uma perspectiva gradualista dentro das fileiras socialistas.

De fato, nesse ponto uma importante tendência em diversos partidos socialistas estava levantando questionamentos sobre a estrada revolucionária para o socialismo que a maioria havia seguido anteriormente. O principal representante dessa corrente foi o alemão Eduard Bernstein, cujo texto de 1899, The Preconditions of Socialism desaprovava a popularidade da tradição “blanquista” (nomeada em homenagem a Louis Auguste Blanqui, com quem muitos dos communards tinham muito próximos). Bernstein também montou um ataque mais amplo contra a tradição revolucionária francesa de 1793 até 1871; ele clamava que era tempo de pôr um fim a esse espírito insurrecional que, ele alegava, prejudicava o desenvolvimento gradual do socialismo organizado.

O que poderia explicar tal mudança? Primeiro, é importante enfatizar que uma grande parte do movimento dos trabalhadores rejeitava a perspectiva de Bernstein, de Jules Guesde a Rosa Luxemburgo. Entretanto, sem dúvida, desde 1871 o contexto político mudou bastante. Na virada para o século XX, o movimento dos trabalhadores construiu seus próprios partidos, sindicatos e cooperativas. O sufrágio universal masculino foi aprovado em diversos países europeus. Então, seria possível conquistar o poder por outros meios, legais?

Um exemplo ilustrativo seria Jean Jaurés, que, junto com Guesde, era um dos principais fundadores do partido socialista unificado francês, em 1905. Ele foi ousado ao celebrar as conquistas da Comuna, principalmente nos âmbitos sociais e políticos. Porém, no aniversário celebrado em 18 de março de 1907, em sua coluna para o L’Humanité (com o título “Ontem e Amanhã”) ele argumentava que ” mesmo se a Comuna de Paris tivesse sido vitoriosa ela não teria sido capaz de mudar fundamentalmente a sociedade… poderia talvez, avançar o desenvolvimento da Terceira República em 10 anos, mas não teria feito o socialismo brotar do chão.”

Jaurés enfatizou que os socialistas tinham que levar em consideração outras duas realidades importantes: o sufrágio universal – permitindo ao partido socialista conquistar posições dentro da sociedade existente – e a greve geral (um dos principais meios de ação dos sindicatos da Confederação Geral do Trabalho – CGT, que permitiu que o proletariado organizasse uma ação ofensiva coordenada que, entretanto, permaneceu distante de uma insurreição desesperada). Em suma, enquanto Jaurés aclamava os “esforços heróicos” dos communnards, era necessário encontrar outros caminhos para serem percorridos.

Alguns antigos communards, como Benoit Malon, estavam entre os criadores do reformismo socialista. Dez anos depois dos eventos de Paris, em 1881 Malon invocou a Comuna de Paris afim de exaltar a política concreta que poderia ser feita no nível municipal – em francês, communal – “visto nesses termos, a questão communal é mais da metade das questões sociais.”

E atrás dele, uma corrente inteira do socialismo francês – incluindo Albert Thomas, futuro Ministro da Defesa durante a I Guerra Mundial – colocaram suas esperanças nesta perspectiva “municipalista”. Através desses homens, um “socialismo reformista” tomou forma, com a ascensão da ideia de uma República que provesse serviços públicos. Eles homenagearam os mártires insurgentes da Comuna, mas pegaram apenas algumas medidas concretas desta experiência – assim esvaziando-a de um conteúdo definitivamente mais subversivo.

Indo além da Comuna?

Qualquer que sejam as diferenças entre as correntes socialistas, todas mais ou menos concordam que precisam de mais organização, a fim de permitir a superação das falhas da Comuna.

Esse fato não deve ser banalizado. De fato, colocado no contexto apropriado, o sucesso da “forma partido” movimento socialista do fim do século XIX devia muito aos aprendizados da Comuna. Os revolucionários parisienses de 1871 foram homenageados por terem mostrado o caminho. Mas era também urgentemente necessário ir além do que a Comuna foi, e considerar uma abordagem diferente que poderia evitar novas derrotas. Se não fosse pelo trauma de 1871, não está nada claro que correntes socialistas como os Bolcheviques russos e os Guedistas franceses teriam teorizado – e posto em prática –formas tão estruturadas e hierárquicas de organização.

O Bolchevismo, em particular, provavelmente não teria tomado a forma que tomou se não fosse a experiência da Comuna. Enquanto em 1880 alguns tinham tirado a lição de que era necessário evitar qualquer ruptura violenta, outros insistiram na necessidade de conquistar o aparato estatal e usá-lo contra os inimigos da revolução. O exemplo da Comuna, portanto, moldou a identidade da esquerda do movimento socialista internacional.

Lenin mostrou sua intensa admiração pela tentativa ousada da Comuna. Mas ele queria que a futura “ditadura do proletariado” (da qual Marx e Engels falaram sobre) adotasse meios adequados para sua política revolucionária, afim de evitar novas “semanas sangrentas” e mais derrotas do proletariado. Ainda enquanto ele era um crítico dos métodos da Comuna, ele também se baseou nessa experiência para definir a “democracia do proletariado” no seu O Estado e a Revolução, escrito alguns meses antes da insurreição de outubro de 1917. Do A Guerra Civil na França de Marx ele tirou a ideia de “esmagar o Estado”, a fim de lutar contra a “burocracia”.

Tiremos aprendizados da ousadia revolucionária dos Communards; vejamos nas suas medidas práticas o esboço de ações urgente e imediatamente possíveis, e então, seguindo esse caminho, nós iremos atingir a destruição completa da burocracia.

Quando o poder soviético tinha durado um dia a mais que a Comuna de Paris, Lenin celebrou a passagem de um marco chave para a Revolução Russa. A experiência parisiense foi profundamente discutida e estudada na Rússia jovem soviética: mesmo com todos seus limites, a comuna não tinha mostrado o caminho, em diversos aspectos?

O jovem movimento comunista adotou temas da Comuna, como “democracia do proletariado”, controle dos trabalhadores, progresso educacional, e a luta contra o obscurantismo religioso. De 1917 em diante, a Comuna foi comemorada mais intensamente porque pareceu para toda uma geração de militantes, de todas tendências, como o evento que tinha anunciado os novos tempos.

É bem menos claro quais aspectos da Comuna continuam a inspirar o movimento socialista hoje, e quais são considerados fora da nossa realidade contemporânea. Nesse sentido, os debates estratégicos que Jaurés e Lenin lançaram – centrados na Comuna, no Estado e nas formas de mudanças sociais e políticas – estão ainda em andamento. Na verdade, eles complementaram as reflexões e ideias dos atores do período que imediatamente sucedeu a Comuna.

Hoje, historiadores tendem a olhar para a Comuna como uma experiência por si só, distinta do amplo curso do movimento revolucionário. Essa é uma abordagem legitimamente perfeita – nos permitindo um entendimento dos Communards como atores e suas motivações. Mas ainda assim seria errado ignorar as interpretações e disputas que se alastraram no movimento dos trabalhadores nas décadas subsequentes, tomando 1871 como um ponto de partida. Pois os debates em relação à Comuna levantaram grandes questões políticas perante qualquer projeto de transformação social – problemas que ainda estão longe de serem resolvidos.

Este artigo também foi publicado em francês no l’Humanité e no site da Fondation Gabriel Péri.

Colaborador

Jean-Numa Ducange é professor na Universidade de Rouen e autor de Jules Guesde: The Birth of Socialism and Marxism in France (Palgrave, 2020) e Quand la Gauche pensait la Nation: Nationalités et socialismes à la Belle-Époque (Fayard, 2021).

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