John Berger
Tradução / “O momento do cubismo” é um fragmento da obra Landscapes, de John Berger, editada por Tom Overton. O ensaio de 1967 sobre a crítica materialista da arte, originalmente publicado na New Left Review, traça a cronologia e os legados do cubismo. Nele, Berger reflete e desenvolve a sensação de que “os trabalhos cubistas mais extremos” – que são tanto “muito otimistas quanto muito revolucionários... para terem sido pintados hoje” – são “capturados e confinados em uma chave no tempo, esperando para serem lançados e continuarem sua jornada que começa em 1907.”
Um sistema global e interligado do imperialismo; do outro lado, o socialismo internacionalista; a fundação da física, psicologia e sociologia modernas; o crescente uso da eletricidade; a invenção do rádio e do cinema; o início das produções em massa; a publicação de jornais de larga circulação; as novas estruturas possíveis permitidas pela disponibilidade do aço e do alumínio; o rápido desenvolvimento da indústria química e da produção de materiais sintéticos; o surgimento do carro a motor e do avião: o que tudo isso significou?
A pergunta parece tão abrangente que beira o desespero. Porém, há raros momentos na história em que tal pergunta pode ser aplicada. Estes foram momentos de convergência, em que numerosos avanços entram em um período de mudança qualitativa similar, antes de se dispersarem em uma variedade de novos caminhos. Poucos que vivem em momentos como esse conseguem entender o significado total das mudanças qualitativas que vão tomando espaço: mas todos se sentem alertados de que os tempos estão mudando. O futuro, ao invés de oferecer uma continuidade, se mostra avançar sobre eles.
Este certamente foi o caso na Europa entre 1900 a 1914 – embora há que se lembrar de que, quando se estudam as evidências, a reação de muitas pessoas ao seu próprio alerta de mudanças é fingir ignorá-las.
Apollinaire, um dos maiores e mais representativos poetas do movimento Cubista, se referia repetidamente ao futuro em seus poemas:
Os avanços que se concentram no começo do século vinte na Europa mudaram o significado de tempo e espaço. Todos eles, alguns bárbaros e outros mais esperançosos, de diferentes maneiras ofereceram uma libertação do imediatismo, da rígida distinção entre ausência e presença. O conceito de campo, primeiramente proposto por Faraday quando confrontava o problema – como definido em termos tradicionais – de “ação à distância”, entrava agora, sem reconhecimento, em todos os modos de planejamento e cálculo e até mesmo em muitos modos de sentir. Houve uma surpreendente extensão no tempo e no espaço do poder e do conhecimento humanos. Pela primeira vez o mundo, como uma totalidade, deixou de ser uma abstração e tornou-se apreensível.
Se Apollinaire foi o maior poeta Cubista, Blaise Cendrars foi o primeiro. Seu poema Les Paques à New York (1912) exerceu uma profunda influência em Apollinaire, e demonstrou a ele como era possível alguém romper radicalmente com a tradição. Os três maiores poemas de Cendrars à época eram todos sobre viagem – mas viajar em um novo sentido trazido pelos novos sentidos de mundo inteligível. Em Le Panama ou Les Aventures de Mes Sept Oncles, ele escreve:
Os 900 milhões provavelmente se referiam à população estimada do mundo.
É importante perceber a extensão das consequências filosóficas destas mudanças e porque isso pode ser classificado qualitativamente. Não era meramente uma questão de transportes mais velozes, mensagem mais rápidas, um vocabulário científico mais complexo, maior acumulação de capital, mercados amplos, organizações internacionais e assim em diante. O processo de secularização do mundo estava por fim completo. Argumentos contra a existência de Deus tiveram pouco êxito. Mas agora o homem foi capaz de submeter a si mesmo indefinidamente além do imediato: ele assumiu o território no espaço e no tempo onde presumia-se existir Deus.
Zone, o poema que Apollinaire escreveu sob imediata influência de Cendrars, contém o seguinte trecho:
A segunda conseqüência dizia respeito à relação do eu com o mundo secularizado. Não havia mais descontinuidade essencial entre o indivíduo e o geral. O invisível e o diverso não intervieram mais entre cada indivíduo e o mundo. Estava se tornando cada vez mais difícil pensar em termos de ter sido posto no mundo. Um homem era parte do mundo e indivisível disso. Em um sentido inteiramente original, que permanece na base da consciência moderna, um homem era o mundo que ele herdou.
Novamente, Apollinaire expressa o seguinte:
Todos os problemas espirituais de religião e moralidade já existentes seriam agora cada vez mais concentrados na escolha de atitude do homem em relação ao estado existente do mundo, considerado como seu próprio estado existente.
Agora é apenas contra o mundo, dentro de sua própria consciência, que ele pode medir seu tamanho. Ele é aprimorado ou diminuído de acordo com a forma como ele age para o aprimoramento ou diminuição do mundo. Seu eu apartado do mundo, seu eu arrancado de seu contexto global – a soma de todos os contextos sociais existentes – é um mero acidente biológico. A secularização do mundo exige seu preço, além de oferecer o privilégio de uma escolha, mais clara que qualquer outra na história.
Apollinaire:
Assim que mais de um homem diz isso, ou sente, ou aspira a senti-lo – e deve-se lembrar que a noção e o sentimento são a consequência de numerosos desenvolvimentos materiais que afetam milhões de vidas – assim que isso acontece, a unidade do mundo foi proposta.
O termo unidade do mundo pode adquirir uma aura perigosamente utópica. Mas somente se for considerado politicamente aplicável ao mundo tal como é. Uma condição sine qua non para a unidade do mundo é o fim da exploração. A evasão desse fato é o que torna o termo utópico.
Enquanto isso, o termo tem outras significações. Em muitos aspectos (a Declaração dos Direitos Humanos, estratégia militar, comunicações e assim por diante), o mundo desde 1900 foi tratado como uma unidade única. A unidade do mundo recebeu reconhecimento de fato.
Hoje sabemos que o mundo deve ser unificado, assim como sabemos que todos os homens devem ter direitos iguais. Na medida em que um homem nega isso ou aceita sua negação, ele nega a unidade de si mesmo. Daí a profunda doença psicológica dos países imperialistas, daí a corrupção implícita em grande parte da sua aprendizagem – quando o conhecimento é usado para negar o conhecimento.
No momento do cubismo, nenhuma negação era necessária. Foi um momento de profecia, mas a profecia como a base de uma transformação que realmente havia começado.
Apollinaire:
Não desejo sugerir um período geral de otimismo efervescente. Foi um período de pobreza, exploração, medo e desespero. A maioria só poderia se preocupar com os meios de sobrevivência e milhões não sobreviveram. Mas para aqueles que fizeram perguntas, houve novas respostas positivas cuja autenticidade parecia ser garantida pela existência de novas forças.
Os movimentos socialistas na Europa (com exceção da Alemanha e de setores do movimento sindical nos Estados Unidos) estavam convencidos de que estavam às vésperas da revolução e que a revolução se espalharia para se tornar uma revolução mundial. Essa crença era compartilhada até mesmo por aqueles que discordavam sobre os meios políticos necessários – por sindicalistas, parlamentares, comunistas e anarquistas.
Um tipo particular de sofrimento estava chegando ao fim: o sofrimento do desespero e da derrota. As pessoas agora acreditavam, se não para si, para o futuro, no triunfo. A crença era frequentemente mais forte quando as condições eram piores. Todos os que foram explorados ou oprimidos e que tinham forças para perguntar sobre o propósito de sua vida miserável puderam ouvir em resposta o eco de declarações como a de Lucheni, o anarquista italiano que esfaqueou a imperatriz da Áustria em 1898: a hora não está muito distante quando um novo sol brilhará sobre todos os homens “, ou como o de Kalyaev em 1905 que, ao ser condenado à morte pelo assassinato do governador-geral de Moscou, disse ao tribunal” para aprender a procurar a revolução que avança direto nos olhos ‘.
Um fim estava à vista. A ausência de limites, que até agora sempre lembraram os homens da insustentabilidade de suas esperanças, tornaram-se subitamente um encorajamento. O mundo se tornou um ponto de partida.
Um sistema global e interligado do imperialismo; do outro lado, o socialismo internacionalista; a fundação da física, psicologia e sociologia modernas; o crescente uso da eletricidade; a invenção do rádio e do cinema; o início das produções em massa; a publicação de jornais de larga circulação; as novas estruturas possíveis permitidas pela disponibilidade do aço e do alumínio; o rápido desenvolvimento da indústria química e da produção de materiais sintéticos; o surgimento do carro a motor e do avião: o que tudo isso significou?
A pergunta parece tão abrangente que beira o desespero. Porém, há raros momentos na história em que tal pergunta pode ser aplicada. Estes foram momentos de convergência, em que numerosos avanços entram em um período de mudança qualitativa similar, antes de se dispersarem em uma variedade de novos caminhos. Poucos que vivem em momentos como esse conseguem entender o significado total das mudanças qualitativas que vão tomando espaço: mas todos se sentem alertados de que os tempos estão mudando. O futuro, ao invés de oferecer uma continuidade, se mostra avançar sobre eles.
Este certamente foi o caso na Europa entre 1900 a 1914 – embora há que se lembrar de que, quando se estudam as evidências, a reação de muitas pessoas ao seu próprio alerta de mudanças é fingir ignorá-las.
Apollinaire, um dos maiores e mais representativos poetas do movimento Cubista, se referia repetidamente ao futuro em seus poemas:
Onde minha juvenilidade tombou
Você vê as chamas do futuro
Você deve saber que eu me pronuncio hoje
Para falar a todo o mundo
Que a arte da profecia enfim nasceu
Os avanços que se concentram no começo do século vinte na Europa mudaram o significado de tempo e espaço. Todos eles, alguns bárbaros e outros mais esperançosos, de diferentes maneiras ofereceram uma libertação do imediatismo, da rígida distinção entre ausência e presença. O conceito de campo, primeiramente proposto por Faraday quando confrontava o problema – como definido em termos tradicionais – de “ação à distância”, entrava agora, sem reconhecimento, em todos os modos de planejamento e cálculo e até mesmo em muitos modos de sentir. Houve uma surpreendente extensão no tempo e no espaço do poder e do conhecimento humanos. Pela primeira vez o mundo, como uma totalidade, deixou de ser uma abstração e tornou-se apreensível.
Se Apollinaire foi o maior poeta Cubista, Blaise Cendrars foi o primeiro. Seu poema Les Paques à New York (1912) exerceu uma profunda influência em Apollinaire, e demonstrou a ele como era possível alguém romper radicalmente com a tradição. Os três maiores poemas de Cendrars à época eram todos sobre viagem – mas viajar em um novo sentido trazido pelos novos sentidos de mundo inteligível. Em Le Panama ou Les Aventures de Mes Sept Oncles, ele escreve:
A poesia é de hoje
A Via Láctea em volta do meu pescoço
Os dois hemisférios nos meus olhos
Na velocidade máxima
Não há mais colapsos
Se eu tivesse tempo para economizar um pouco de dinheiro,
estaria voando num show aéreo
Eu reservei meu assento no primeiro trem através
do túnel sob o canal
Eu sou o primeiro piloto a atravessar o Atlântico
900 milhões
Os 900 milhões provavelmente se referiam à população estimada do mundo.
É importante perceber a extensão das consequências filosóficas destas mudanças e porque isso pode ser classificado qualitativamente. Não era meramente uma questão de transportes mais velozes, mensagem mais rápidas, um vocabulário científico mais complexo, maior acumulação de capital, mercados amplos, organizações internacionais e assim em diante. O processo de secularização do mundo estava por fim completo. Argumentos contra a existência de Deus tiveram pouco êxito. Mas agora o homem foi capaz de submeter a si mesmo indefinidamente além do imediato: ele assumiu o território no espaço e no tempo onde presumia-se existir Deus.
Zone, o poema que Apollinaire escreveu sob imediata influência de Cendrars, contém o seguinte trecho:
Pupilo aos olhos de Cristo
Vigésimo pupilo dos séculos sabe como
Este século se transformou em um pássaro ascende como Jesus
Diabos em sarjetas levantam suas cabeças para assistir
Eles dizem que está imitando Simon Magus da Judéia
Se ele puder voar, nós chamaremos de primeiro vôo
Anjos balançam passando por seu trapézio
Ícaro Enoque Elias Apolônio de Tiana
Flutuam em torno do primeiro avião
Dispersando às vezes para deixar passar os padres
Enquanto eles carregam a Santa Eucaristia
Para sempre subindo e elevando o Anfitrião.
A segunda conseqüência dizia respeito à relação do eu com o mundo secularizado. Não havia mais descontinuidade essencial entre o indivíduo e o geral. O invisível e o diverso não intervieram mais entre cada indivíduo e o mundo. Estava se tornando cada vez mais difícil pensar em termos de ter sido posto no mundo. Um homem era parte do mundo e indivisível disso. Em um sentido inteiramente original, que permanece na base da consciência moderna, um homem era o mundo que ele herdou.
Novamente, Apollinaire expressa o seguinte:
Mas eu já sabia naquela hora qual era o sabor do Universo
Eu estou bêbado de ter bebido todo o Universo.
Todos os problemas espirituais de religião e moralidade já existentes seriam agora cada vez mais concentrados na escolha de atitude do homem em relação ao estado existente do mundo, considerado como seu próprio estado existente.
Agora é apenas contra o mundo, dentro de sua própria consciência, que ele pode medir seu tamanho. Ele é aprimorado ou diminuído de acordo com a forma como ele age para o aprimoramento ou diminuição do mundo. Seu eu apartado do mundo, seu eu arrancado de seu contexto global – a soma de todos os contextos sociais existentes – é um mero acidente biológico. A secularização do mundo exige seu preço, além de oferecer o privilégio de uma escolha, mais clara que qualquer outra na história.
Apollinaire:
Eu estou em toda parte ou melhor, eu começo a estar em todos os lugares
Sou eu quem está começando essa coisa dos séculos
porvir.
Assim que mais de um homem diz isso, ou sente, ou aspira a senti-lo – e deve-se lembrar que a noção e o sentimento são a consequência de numerosos desenvolvimentos materiais que afetam milhões de vidas – assim que isso acontece, a unidade do mundo foi proposta.
O termo unidade do mundo pode adquirir uma aura perigosamente utópica. Mas somente se for considerado politicamente aplicável ao mundo tal como é. Uma condição sine qua non para a unidade do mundo é o fim da exploração. A evasão desse fato é o que torna o termo utópico.
Enquanto isso, o termo tem outras significações. Em muitos aspectos (a Declaração dos Direitos Humanos, estratégia militar, comunicações e assim por diante), o mundo desde 1900 foi tratado como uma unidade única. A unidade do mundo recebeu reconhecimento de fato.
Hoje sabemos que o mundo deve ser unificado, assim como sabemos que todos os homens devem ter direitos iguais. Na medida em que um homem nega isso ou aceita sua negação, ele nega a unidade de si mesmo. Daí a profunda doença psicológica dos países imperialistas, daí a corrupção implícita em grande parte da sua aprendizagem – quando o conhecimento é usado para negar o conhecimento.
No momento do cubismo, nenhuma negação era necessária. Foi um momento de profecia, mas a profecia como a base de uma transformação que realmente havia começado.
Apollinaire:
Já ouço o som estridente da voz amiga chegar
Que anda com você na Europa
Apesar de nunca sair da América.
Não desejo sugerir um período geral de otimismo efervescente. Foi um período de pobreza, exploração, medo e desespero. A maioria só poderia se preocupar com os meios de sobrevivência e milhões não sobreviveram. Mas para aqueles que fizeram perguntas, houve novas respostas positivas cuja autenticidade parecia ser garantida pela existência de novas forças.
Os movimentos socialistas na Europa (com exceção da Alemanha e de setores do movimento sindical nos Estados Unidos) estavam convencidos de que estavam às vésperas da revolução e que a revolução se espalharia para se tornar uma revolução mundial. Essa crença era compartilhada até mesmo por aqueles que discordavam sobre os meios políticos necessários – por sindicalistas, parlamentares, comunistas e anarquistas.
Um tipo particular de sofrimento estava chegando ao fim: o sofrimento do desespero e da derrota. As pessoas agora acreditavam, se não para si, para o futuro, no triunfo. A crença era frequentemente mais forte quando as condições eram piores. Todos os que foram explorados ou oprimidos e que tinham forças para perguntar sobre o propósito de sua vida miserável puderam ouvir em resposta o eco de declarações como a de Lucheni, o anarquista italiano que esfaqueou a imperatriz da Áustria em 1898: a hora não está muito distante quando um novo sol brilhará sobre todos os homens “, ou como o de Kalyaev em 1905 que, ao ser condenado à morte pelo assassinato do governador-geral de Moscou, disse ao tribunal” para aprender a procurar a revolução que avança direto nos olhos ‘.
Um fim estava à vista. A ausência de limites, que até agora sempre lembraram os homens da insustentabilidade de suas esperanças, tornaram-se subitamente um encorajamento. O mundo se tornou um ponto de partida.
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