Impõe-se revisão profunda de opções econômicas que nos trouxeram até aqui
Renato Maluf
Presidente da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), é ex-presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional)
Ana Segall
Médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan
Rosana Salles
Nutricionista e pesquisadora da Rede Penssan
Com ampla repercussão nacional e internacional, os resultados do 2º Vigisan (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil - 2021/2022), divulgados recentemente pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), revelaram a existência de 33,1 milhões de pessoas passando fome no Brasil.
Se somarmos aquelas que estão comendo menos ou pior, chegaremos ao assombroso contingente de 125,2 milhões com algum grau de insegurança alimentar (58,7%). Espanta a velocidade do agravamento dessa condição, pois o contingente de famintos passou de 19 milhões (1º Vigisan) para 33,1 milhões (2º Vigisan), um aumento de 14,1 milhões de pessoas em pouco mais de um ano.
Em 2022 aparece o pior cenário desde que a fome passou a ser medida pelo IBGE. Em 2004, 64,8% das famílias estavam em segurança alimentar, chegando a 77,1% em 2014. A reversão dessa tendência nas aferições quadrienais pelo IBGE começa em 2017-18, quando a segurança alimentar das famílias desce para 63,3%. Em seguida, os dois inquéritos da Rede Penssan mostram o aprofundamento dessa reversão, registrando apenas 44,8% (2020) e 42,5% (2021-22) das famílias em segurança alimentar. Já não importa a pergunta se o Brasil voltou ao Mapa da Fome, do qual havia saído em 2014, pois o mapa do país é o retrato da fome em proporções assombrosas, semelhante ao que era conhecido 30 anos atrás.
Compreender os fatores que provocaram o recrudescimento da fome requer "voltar" aos primeiros sinais de recessão econômica anunciados desde 2011, com retração do investimento privado, entre outros motivos, como reação aos anos anteriores de quase pleno emprego e aumento real dos salários, ao que se somaram a piora do mercado internacional de commodities, a reação de banqueiros a ameaças aos seus privilégios e a permanente pressão dos ruralistas.
A mudança de rota da política econômica, a partir de 2015, seguida da chamada "ponte para o futuro" propiciada pelo golpe de 2016 deram lugar ao famigerado teto de gastos, ataques sucessivos a direitos sociais, precarização do mundo do trabalho, interrupção da valorização do salário mínimo e gradativo desmantelamento da institucionalidade e das políticas de promoção da segurança alimentar e de enfrentamento da fome.
Aumento progressivo do desemprego, ampliação do trabalho incerto e mal remunerado, retrocessos na proteção social e retração do apoio à agricultura familiar são a raiz da crescente restrição de acesso aos alimentos de um número cada vez maior de famílias brasileiras.
O governo Jair Bolsonaro (PL) radicalizou esse processo, iniciando seu mandato com o fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a paralisia da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, culminando com a retirada desse tema da agenda governamental. O advento da pandemia surge como fator de agravamento do processo em curso, mas não sua causa primária, devido à conhecida negação da gravidade do problema sanitário e às omissões e ações deliberadas do governo federal, que culminaram com excesso de mortes e aprofundamento das desigualdades.
A transferência monetária tardia e precariamente iniciada teve impacto reduzido, sobretudo pelo aumento do desemprego, redução de rendimentos e endividamento das famílias. Não nos surpreendeu o quadro assombroso de fome ora revelado e sua presença cruel nas camadas mais empobrecidas, rural ou urbana, na população negra, nas famílias chefiadas por mulheres e entre pessoas submetidas a condições precárias e instáveis de trabalho.
Tal cenário torna urgente encarar a fome como problema tanto social quanto político, o que impõe revisão profunda das opções econômicas que nos trouxeram até aqui, reconstrução do quadro político-institucional e a retomada de políticas intersetoriais e com participação social efetiva para a redução das desigualdades sociais e de garantia do direito humano à alimentação suficiente, adequada e saudável para todo o povo brasileiro
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