David Broder
A perspectiva para as eleições italianas de 25 de setembro é de que a coalizão nomeada pela mídia italiana como “centro-direita” chegue perto de 50% das intenções de voto — quase garantindo uma larga maioria no parlamento. Piores notícias surgem quando nos damos conta de que a expressão “centro-direita” é um eufemismo. Tanto o principal partido da aliança — o pós-fascista Fratelli d’italia de Giorgia Meloni (alcançando 24% das intenções de voto), quanto sua segunda força, o Lega de Matteo Salvini (14% das intenções de voto) combinam planos de varrer as isenções de impostos com uma torrente de propaganda de ódio contra imigrantes, “lobbies” LGBT, “planos de substituição étnica” e outras coisas parecidas.
O Fratelli d’Italia está longe de ser o partido mais popular. Ele está numa corrida apertada com o Democratas, de centro esquerda, que, no entanto, mantém uma posição mais fraca em termos de conversão de votos em assentos, dada a ausência de grandes aliados. Os Democratas insistem em afirmar que continuarão o trabalho feito pelo governo tecnocrático e multipartidário de Mario Draghi, iniciado em fevereiro com o pagamento dos fundos de recuperação europeus. A maioria de Draghi, ex-Presidente do Banco Central Europeu, contava com o Forza Italia, de Silvio Berlusconi, o Lega e com o eclético Movimento Cinque Stelle, mas com a saída desses apoios em julho, os Democratas ficaram isolados.
Isso recriou, por sua vez, uma ilusão de ótica típica da política italiana, na qual a mais recente onda de insurgentes de direita afirma estar derrotando a esquerda sempre hegemônica, mesmo que na Itália não exista quase nada parecido com a esquerda. O gabinete criado por Draghi foi o último de uma série de grandes coalizões e “governos técnicos” das décadas recentes que, sustentado por vários outros partidos, tiveram os Democratas como os garantidores da estabilidade institucional. Mas dado o substrato neoliberal decadente de toda a politica italiana, a campanha de 2022 será travada novamente entre a centro direita tecnocrata neoliberal e a extrema direita outsider que se pretende a colocar um fim “a uma década de esquerda no poder”.
Em meio à atual turbulência no sistema partidário, ter estado fora do governo Draghi certamente ajudou o Fratelli d’Italia a aglutinar os eleitores de direita. Ele tiveram apenas 4% dos votos em 2018 e cerca de metade desses votos vieram de transferências recentes do Lega, que despontou em 2018-2019 durante o mandato de Salvini como Ministro do Interior. No entanto, o pacto existente desde 2021 entre os principais partidos deu a Meloni espaço para monopolizar a crítica e enfatizar a sua abordagem “construtiva”, hostil à “esquerda no poder”, mas não a Draghi pessoalmente. O Fratelli d’Italia também enfatiza a sua lealdade à União Europeia, à OTAN e à disponibilização de armas para a Ucrânia como uma forma de mostrar as suas credenciais “atlanticistas”.
Algumas alas da centro direita não ficaram satisfeitas com o fim do governo Draghi. Nos primeiros dias da campanha, os democratas se irritaram com figuras como Renato Brunetta, um antigo aliado de Berlusconi que desistiu de seu partido Forza Italia em resposta. Um pouco como os democratas nos Estados Unidos em busca de republicanos moderados “anti-Trump”, uma certa mentalidade de centro esquerda consiste em tentar encontrar representantes de direita responsáveis que sirvam como interlocutores, mesmo que isso signifique que figuras (notadamente Silvio Berlusconi) que antes tinham se apresentado como o “mal” que deveria ser impedido através de um voto em um “mal menor”. O único problema é que, com o tempo, os “maus” vêm ficando mais malvados.
Escavando o passado
Muitos na mídia italiana são intolerantes aos esforços de “demonização” de Meloni. “Não podemos ficar dois meses sem falar sobre história?” perguntou o especialista Paolo Mieli no início da campanha. Apesar dos comentários de Mieli, ninguém realmente afirmou que o Fratelli d’Italia teria planos para fazer uma nova “Marcha sobre Roma” para coroar o centenário da ascensão ao poder de Benito Mussolini em 1922. Na verdade, até o líder dos Democratas, Enrico Letta, cogitou relações cordiais com Meloni recentemente. No entanto, claramente há algo incomum em uma aspirante a primeiro-ministro que precisa insistir que os “nostálgicos” de seu partido – um eufemismo para os funcionários que usam os símbolos e bandeiras da República de Salò, colaboracionista nazista – são “traidores da causa”.
Enquanto Mieli, um ex-aluno do famoso biógrafo de Mussolini, Renzo de Felice, é autor de vários livros sobre a Itália do século XX, seu chamado ao fim das discussões sobre história tem sido retomado por amplos setores da mídia nacional que frequentemente se mostram amnésicos até em relação a eventos de um passado mais recente do país. O Fratelli d’italia, herdeiro do neofascista Movimento Sociale Italiano, criado em 1946, frequentemente minimiza a exposição de racismo, elogios ao fascismo e ligações a grupos militares de seus integrantes, dizendo que tudo isso não passa de uma tentativa de assassinato de reputação pela mídia (muckraking). Isso é sustentado por um coro de jornalistas de periódicos de direita que insistem em afirmar que como o “fascismo não está voltando” — e literalmente, claro, não está — toda essa discussão é perda de tempo.
Há sinais de que alguns passados constrangedores vêm assombrando candidatos, mas não aqueles da ala pós-fascista da política italiana. A candidata democrata da região da Basilicata, no sul da Itália, teve que retirar a sua candidatura neste final de semana após revelações de que teria questionado o direito à existência do Estado de Israel em 2020. Grandes diários como o Il Corriere e o La Repubblica atentaram para o fato de que postagens antigas de políticos nas mídias sociais têm sido usadas como ferramentas de propaganda eleitoral. Mesmo assim, isso depende de suas capacidades de se sentirem realmente envergonhados; e as repetidas afirmações de Meloni de que o “agiota” George Soros, um judeu húngaro, estaria “financiando um plano para a substituição étnica de europeus” ainda chacoalharão a campanha atual.
A verdadeira ameaça representada pelo Fratelli d’Italia, uma vez que se estabeleça no governo, é menos um “retorno do fascismo” do que uma forma de erosão das normas e difamação de críticos e minorias típicos de países como a Polônia e a Hungria. De fato, até mais do que a Hungria, a direita polonesa é o modelo para o partido de Meloni e aquele que parece estar ganhando renovada legitimidade nos circuitos de poder na Europa desde a invasão russa na Ucrânia. Meloni já fez elogios a Vladimir Putin no passado, mas está mais amplamente comprometida com as posições “atlanticistas” do que o Lega, apesar de seu partido ser mais próximo da CPAC e da ala trumpista dos Republicanos do que do governo incumbente em Washington.
Se, por um lado, não há chance de que Meloni vá buscar um distanciamento do euro e da União Europeia, por outro há pelo menos duas formas com as quais um governo sob sua liderança poderia causar danos de longo prazo. Uma delas se refere a um bloqueio naval contra embarcações de imigrantes, um ato arrogante que não é apenas ilegal, mas capaz de matar centenas de milhares de seres humanos. A outra inclui vários planos de se reescrever a Constituição italiana para incluir meios vagos e abrangentes para prender os críticos de esquerda como, por exemplo a criminalização da “apologia ao comunismo” ou do “totalitarismo islâmico”. Para além desta inflexão do “preconceito” antifascista atual (raramente aplicado) da Constituição, está posto o plano de transformar a Itália em uma república presidencialista, substituindo o atual sistema parlamentarista por outro baseado num Executivo mais forte e centralizador.
Aborde os problemas!
Devido a sua liderança dominante nas pesquisas, a campanha de Meloni vem sendo bastante silenciosa, quase inteiramente focada em responder às acusações da esquerda sobre suas ligações com o fascismo. Um indicativo da seriedade com a qual estes assuntos vem sendo discutidos na Italia foi um vídeo disponibilizado por Meloni à mídia mundial — uma afirmação direta à câmera, sem perguntas de repórteres — no qual ela insiste no fato de que o fascismo já teria sido “consignado à história” e denuncia as “leis anti-Judeus de 1938” e a “ditadura”. A escolha por estas palavras, menos críticas ao passado do que as do histórico líder do MSI, Gianfranco Fini, nos anos 1990-2000, é evidentemente desenhada para evitar a condenação de (neo)fascismo. Em suma, ela reclama que a esquerda só fala de história por não ter nenhum programa de governo para apresentar.
De fato, são raras as propostas reais para os próximos cinco anos. A busca dos Democratas por votos —em grande medida míticos — centristas (e a multidão de pequenos partidos neoliberais que se intitulam representantes da “terceira via”) também são um fenômeno deste problema. Enquanto o Fratelli d’Italia aglutina o eleitorado de direita em torno de uma nova liderança, a centro-esquerda parece, a seu tempo, paralizada, capaz apenas de entrincherar-se na defesa de um modelo econômico que contribui para a estagnação do crescimento italiano desde os anos de 1990, respondendo aos seus efeitos apenas com subsídios temporários e medidas assistenciais. Não se trata apenas de uma questão relativa à participação na Zona do Euro, sem nenhum grande desafio político, mas está ligado a ele, na medida em que os governos estão presos em um ciclo de baixos investimentos, baixos ganhos de produtividade, dívida pública esmagadora e níveis estruturalmente baixos de emprego.
Mas nada disso significa que Meloni esteja realmente interessada em discutir sobre economia. As propostas da “centro-direita” sinalizam para um corte genérico nos impostos e na burocracia, mas com aumentos dessas ações sobre negócios conduzidos por cidadãos de fora da União Europeia, tratados como os únicos responsáveis pelo buraco sem fundo de evasão de recursos na Itália. A proposta do Fratelli d’Italia para aumentar o emprego — cortes de impostos para companhias (geridas por italianos) para que contratem mais — é apenas maquiagem na fraqueza econômica estrutural e nem de longe substitui o seguro-desemprego cuja proposta também visa acabar. Dentro da coalizão da direita, a proposta do Lega por um taxa fixa de 15% — provavelmente abrindo um rombo de €80 bilhões nas contas públicas — é tão absurda que nos faz pensar por quê não propor uma taxa de 10% ou 5% no lugar. A candidatura do ex-ministro das Finanças da era Berlusconi, Giulio Tremonti, é um sinal claro da intencional falta de medidas e políticas econômicas mais dramáticas.
Há forças mais ou menos à esquerda dos Democratas que vêm tentando inserir políticas sociais na campanha. Uma delas, ainda que quixotesca, é de Giuseppe Conte do Movimento Cinco Estrelas; depois de servir como um fraco aliado à Lega de Salvini em seu último mandato, ele fez do seguro desemprego introduzido em 2019 (mal-nomeado como “renda cidadã”) sua principal política. O partido tem aproximadamente 10% dos votos, muito abaixo dos 32% de 2018, após um percurso político errante e a saída do antigo líder Luigi di Magio. Assim como os aliados Democratas da esquerda verde (especialmente a candidatura do líder camponês marfinense Aboubakar Soumahoro), há uma esquerda independente na forma da Unione Popolare, liderada pelo prefeito de Nápoles Luigi de Magistris. Formado pouco tempo antes das eleições, que são esperadas para acontecer na próxima primavera, esta lista tem poucas chances de chegar ao parlamento.
Observando a política italiana, é frequentemente tentador concluirmos que para além da intensa polarização retórica e a recorrência de simbolismos históricos, as alternativas reais são bem menos dramáticas. De fato, a doença econômica italiana é crônica e não redutível a um momento de crise singular: a aderência cada vez menor dos cidadãos aos partidos já tem mais de três décadas e não estamos a ponto de ver uma reviravolta dramática. Além disso, o momento atual certamente traz novos perigos com a ascensão de um partido cuja grande parte de seus líderes é abertamente adepta de teorias da conspiração nacionalistas e defensora de criminosos de guerra fascistas.
Ao divulgar um vídeo de uma mulher sendo supostamente estuprada por um imigrante, Meloni nos disse muito sobre quem ela realmente é. A esperança de não a vê-la no poder, no entanto, é pequena.
Giorgia Meloni, líder da Fratelli d'Italia (Irmãos da Itália). (NurPhoto / Getty Images) |
A perspectiva para as eleições italianas de 25 de setembro é de que a coalizão nomeada pela mídia italiana como “centro-direita” chegue perto de 50% das intenções de voto — quase garantindo uma larga maioria no parlamento. Piores notícias surgem quando nos damos conta de que a expressão “centro-direita” é um eufemismo. Tanto o principal partido da aliança — o pós-fascista Fratelli d’italia de Giorgia Meloni (alcançando 24% das intenções de voto), quanto sua segunda força, o Lega de Matteo Salvini (14% das intenções de voto) combinam planos de varrer as isenções de impostos com uma torrente de propaganda de ódio contra imigrantes, “lobbies” LGBT, “planos de substituição étnica” e outras coisas parecidas.
O Fratelli d’Italia está longe de ser o partido mais popular. Ele está numa corrida apertada com o Democratas, de centro esquerda, que, no entanto, mantém uma posição mais fraca em termos de conversão de votos em assentos, dada a ausência de grandes aliados. Os Democratas insistem em afirmar que continuarão o trabalho feito pelo governo tecnocrático e multipartidário de Mario Draghi, iniciado em fevereiro com o pagamento dos fundos de recuperação europeus. A maioria de Draghi, ex-Presidente do Banco Central Europeu, contava com o Forza Italia, de Silvio Berlusconi, o Lega e com o eclético Movimento Cinque Stelle, mas com a saída desses apoios em julho, os Democratas ficaram isolados.
Isso recriou, por sua vez, uma ilusão de ótica típica da política italiana, na qual a mais recente onda de insurgentes de direita afirma estar derrotando a esquerda sempre hegemônica, mesmo que na Itália não exista quase nada parecido com a esquerda. O gabinete criado por Draghi foi o último de uma série de grandes coalizões e “governos técnicos” das décadas recentes que, sustentado por vários outros partidos, tiveram os Democratas como os garantidores da estabilidade institucional. Mas dado o substrato neoliberal decadente de toda a politica italiana, a campanha de 2022 será travada novamente entre a centro direita tecnocrata neoliberal e a extrema direita outsider que se pretende a colocar um fim “a uma década de esquerda no poder”.
Em meio à atual turbulência no sistema partidário, ter estado fora do governo Draghi certamente ajudou o Fratelli d’Italia a aglutinar os eleitores de direita. Ele tiveram apenas 4% dos votos em 2018 e cerca de metade desses votos vieram de transferências recentes do Lega, que despontou em 2018-2019 durante o mandato de Salvini como Ministro do Interior. No entanto, o pacto existente desde 2021 entre os principais partidos deu a Meloni espaço para monopolizar a crítica e enfatizar a sua abordagem “construtiva”, hostil à “esquerda no poder”, mas não a Draghi pessoalmente. O Fratelli d’Italia também enfatiza a sua lealdade à União Europeia, à OTAN e à disponibilização de armas para a Ucrânia como uma forma de mostrar as suas credenciais “atlanticistas”.
Algumas alas da centro direita não ficaram satisfeitas com o fim do governo Draghi. Nos primeiros dias da campanha, os democratas se irritaram com figuras como Renato Brunetta, um antigo aliado de Berlusconi que desistiu de seu partido Forza Italia em resposta. Um pouco como os democratas nos Estados Unidos em busca de republicanos moderados “anti-Trump”, uma certa mentalidade de centro esquerda consiste em tentar encontrar representantes de direita responsáveis que sirvam como interlocutores, mesmo que isso signifique que figuras (notadamente Silvio Berlusconi) que antes tinham se apresentado como o “mal” que deveria ser impedido através de um voto em um “mal menor”. O único problema é que, com o tempo, os “maus” vêm ficando mais malvados.
Escavando o passado
Muitos na mídia italiana são intolerantes aos esforços de “demonização” de Meloni. “Não podemos ficar dois meses sem falar sobre história?” perguntou o especialista Paolo Mieli no início da campanha. Apesar dos comentários de Mieli, ninguém realmente afirmou que o Fratelli d’Italia teria planos para fazer uma nova “Marcha sobre Roma” para coroar o centenário da ascensão ao poder de Benito Mussolini em 1922. Na verdade, até o líder dos Democratas, Enrico Letta, cogitou relações cordiais com Meloni recentemente. No entanto, claramente há algo incomum em uma aspirante a primeiro-ministro que precisa insistir que os “nostálgicos” de seu partido – um eufemismo para os funcionários que usam os símbolos e bandeiras da República de Salò, colaboracionista nazista – são “traidores da causa”.
Enquanto Mieli, um ex-aluno do famoso biógrafo de Mussolini, Renzo de Felice, é autor de vários livros sobre a Itália do século XX, seu chamado ao fim das discussões sobre história tem sido retomado por amplos setores da mídia nacional que frequentemente se mostram amnésicos até em relação a eventos de um passado mais recente do país. O Fratelli d’italia, herdeiro do neofascista Movimento Sociale Italiano, criado em 1946, frequentemente minimiza a exposição de racismo, elogios ao fascismo e ligações a grupos militares de seus integrantes, dizendo que tudo isso não passa de uma tentativa de assassinato de reputação pela mídia (muckraking). Isso é sustentado por um coro de jornalistas de periódicos de direita que insistem em afirmar que como o “fascismo não está voltando” — e literalmente, claro, não está — toda essa discussão é perda de tempo.
Há sinais de que alguns passados constrangedores vêm assombrando candidatos, mas não aqueles da ala pós-fascista da política italiana. A candidata democrata da região da Basilicata, no sul da Itália, teve que retirar a sua candidatura neste final de semana após revelações de que teria questionado o direito à existência do Estado de Israel em 2020. Grandes diários como o Il Corriere e o La Repubblica atentaram para o fato de que postagens antigas de políticos nas mídias sociais têm sido usadas como ferramentas de propaganda eleitoral. Mesmo assim, isso depende de suas capacidades de se sentirem realmente envergonhados; e as repetidas afirmações de Meloni de que o “agiota” George Soros, um judeu húngaro, estaria “financiando um plano para a substituição étnica de europeus” ainda chacoalharão a campanha atual.
A verdadeira ameaça representada pelo Fratelli d’Italia, uma vez que se estabeleça no governo, é menos um “retorno do fascismo” do que uma forma de erosão das normas e difamação de críticos e minorias típicos de países como a Polônia e a Hungria. De fato, até mais do que a Hungria, a direita polonesa é o modelo para o partido de Meloni e aquele que parece estar ganhando renovada legitimidade nos circuitos de poder na Europa desde a invasão russa na Ucrânia. Meloni já fez elogios a Vladimir Putin no passado, mas está mais amplamente comprometida com as posições “atlanticistas” do que o Lega, apesar de seu partido ser mais próximo da CPAC e da ala trumpista dos Republicanos do que do governo incumbente em Washington.
Se, por um lado, não há chance de que Meloni vá buscar um distanciamento do euro e da União Europeia, por outro há pelo menos duas formas com as quais um governo sob sua liderança poderia causar danos de longo prazo. Uma delas se refere a um bloqueio naval contra embarcações de imigrantes, um ato arrogante que não é apenas ilegal, mas capaz de matar centenas de milhares de seres humanos. A outra inclui vários planos de se reescrever a Constituição italiana para incluir meios vagos e abrangentes para prender os críticos de esquerda como, por exemplo a criminalização da “apologia ao comunismo” ou do “totalitarismo islâmico”. Para além desta inflexão do “preconceito” antifascista atual (raramente aplicado) da Constituição, está posto o plano de transformar a Itália em uma república presidencialista, substituindo o atual sistema parlamentarista por outro baseado num Executivo mais forte e centralizador.
Aborde os problemas!
Devido a sua liderança dominante nas pesquisas, a campanha de Meloni vem sendo bastante silenciosa, quase inteiramente focada em responder às acusações da esquerda sobre suas ligações com o fascismo. Um indicativo da seriedade com a qual estes assuntos vem sendo discutidos na Italia foi um vídeo disponibilizado por Meloni à mídia mundial — uma afirmação direta à câmera, sem perguntas de repórteres — no qual ela insiste no fato de que o fascismo já teria sido “consignado à história” e denuncia as “leis anti-Judeus de 1938” e a “ditadura”. A escolha por estas palavras, menos críticas ao passado do que as do histórico líder do MSI, Gianfranco Fini, nos anos 1990-2000, é evidentemente desenhada para evitar a condenação de (neo)fascismo. Em suma, ela reclama que a esquerda só fala de história por não ter nenhum programa de governo para apresentar.
De fato, são raras as propostas reais para os próximos cinco anos. A busca dos Democratas por votos —em grande medida míticos — centristas (e a multidão de pequenos partidos neoliberais que se intitulam representantes da “terceira via”) também são um fenômeno deste problema. Enquanto o Fratelli d’Italia aglutina o eleitorado de direita em torno de uma nova liderança, a centro-esquerda parece, a seu tempo, paralizada, capaz apenas de entrincherar-se na defesa de um modelo econômico que contribui para a estagnação do crescimento italiano desde os anos de 1990, respondendo aos seus efeitos apenas com subsídios temporários e medidas assistenciais. Não se trata apenas de uma questão relativa à participação na Zona do Euro, sem nenhum grande desafio político, mas está ligado a ele, na medida em que os governos estão presos em um ciclo de baixos investimentos, baixos ganhos de produtividade, dívida pública esmagadora e níveis estruturalmente baixos de emprego.
Mas nada disso significa que Meloni esteja realmente interessada em discutir sobre economia. As propostas da “centro-direita” sinalizam para um corte genérico nos impostos e na burocracia, mas com aumentos dessas ações sobre negócios conduzidos por cidadãos de fora da União Europeia, tratados como os únicos responsáveis pelo buraco sem fundo de evasão de recursos na Itália. A proposta do Fratelli d’Italia para aumentar o emprego — cortes de impostos para companhias (geridas por italianos) para que contratem mais — é apenas maquiagem na fraqueza econômica estrutural e nem de longe substitui o seguro-desemprego cuja proposta também visa acabar. Dentro da coalizão da direita, a proposta do Lega por um taxa fixa de 15% — provavelmente abrindo um rombo de €80 bilhões nas contas públicas — é tão absurda que nos faz pensar por quê não propor uma taxa de 10% ou 5% no lugar. A candidatura do ex-ministro das Finanças da era Berlusconi, Giulio Tremonti, é um sinal claro da intencional falta de medidas e políticas econômicas mais dramáticas.
Há forças mais ou menos à esquerda dos Democratas que vêm tentando inserir políticas sociais na campanha. Uma delas, ainda que quixotesca, é de Giuseppe Conte do Movimento Cinco Estrelas; depois de servir como um fraco aliado à Lega de Salvini em seu último mandato, ele fez do seguro desemprego introduzido em 2019 (mal-nomeado como “renda cidadã”) sua principal política. O partido tem aproximadamente 10% dos votos, muito abaixo dos 32% de 2018, após um percurso político errante e a saída do antigo líder Luigi di Magio. Assim como os aliados Democratas da esquerda verde (especialmente a candidatura do líder camponês marfinense Aboubakar Soumahoro), há uma esquerda independente na forma da Unione Popolare, liderada pelo prefeito de Nápoles Luigi de Magistris. Formado pouco tempo antes das eleições, que são esperadas para acontecer na próxima primavera, esta lista tem poucas chances de chegar ao parlamento.
Observando a política italiana, é frequentemente tentador concluirmos que para além da intensa polarização retórica e a recorrência de simbolismos históricos, as alternativas reais são bem menos dramáticas. De fato, a doença econômica italiana é crônica e não redutível a um momento de crise singular: a aderência cada vez menor dos cidadãos aos partidos já tem mais de três décadas e não estamos a ponto de ver uma reviravolta dramática. Além disso, o momento atual certamente traz novos perigos com a ascensão de um partido cuja grande parte de seus líderes é abertamente adepta de teorias da conspiração nacionalistas e defensora de criminosos de guerra fascistas.
Ao divulgar um vídeo de uma mulher sendo supostamente estuprada por um imigrante, Meloni nos disse muito sobre quem ela realmente é. A esperança de não a vê-la no poder, no entanto, é pequena.
Sobre o autor
David Broder é editor para a Europa da revista Jacobin.
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