Patrícia Campos Mello
Folha de S.Paulo
Público na leitura dos manifestos pela democracia na Faculdade de Direito da USP, no largo São Francisco, no centro de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress |
Os dois manifestos pela democracia lidos nesta quinta-feira (11) na Faculdade de Direito da USP levaram mais de 12 meses para nascer, e os idealizadores agora debatem quais serão os próximos passos.
O caminho começou no dia 21 de julho de 2021, quando o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça no governo FHC e um dos autores de um pedido de impeachment de Dilma Rousseff, e José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça de Dilma, juntaram-se ao grupo de WhatsApp batizado de Comitê Cívico das Eleições.
O grupo havia sido criado por Oscar Vilhena, professor de direito da FGV, pela socióloga Neca Setúbal, presidente do conselho da Fundação Tide Setúbal e uma das herdeiras do grupo Itaú, e Maria Hermínia Tavares, professora aposentada de ciência política da USP, ao lado de integrantes do Pacto pela Democracia, que reúne 150 entidades da sociedade civil.
A preocupação com as ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e a membros do Supremo Tribunal Federal crescia, e Vilhena, Neca e Maria Hermínia queriam encontrar maneiras de mobilizar a sociedade civil.
O grupo articulou uma carta de ex-ministros da Justiça ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), atacando o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes enviado pelo presidente Jair Bolsonaro.
No feriado de 7 de setembro de 2021, Bolsonaro mais uma vez subiu o tom contra o STF, mas a trégua costurada pelo ex-presidente Michel Temer baixou a temperatura, pelo menos temporariamente.
As discussões no grupo arrefeceram, mas em 2022 Bolsonaro voltou a questionar sistematicamente a integridade eleitoral e a confiabilidade das urnas eletrônicas. O grupo voltou a debater maneiras de criar barreiras para desestimular setores da sociedade de embarcarem em uma aventura autoritária.
Enquanto isso, o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, começou a receber sinalizações de membros do STF e de algumas indústrias, preocupadas com a instabilidade no país diante de ameaças de Bolsonaro de não respeitar o resultado da eleição.
A entidade começou a discutir internamento se deveria se posicionar.
Em junho, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga foi incorporado ao grupo de WhatsApp, rebatizado como Comitê de Defesa da Democracia.
Arminio, Neca e Vilhena começaram a conversar com Josué sobre a possibilidade de fazer um manifesto unindo a Fiesp, a Febraban, sindicatos e sociedade civil.
Ao mesmo tempo, o grupo discutia com o CDPP (Centro de Debates de Políticas Públicas), entidade presidida pelo economista Pérsio Arida que reúne banqueiros, grandes empresários, investidores e economistas e já tinha lançado um manifesto pró-democracia em agosto de 2021.
Vilhena trouxe para a articulação Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP e seu amigo de 40 anos, que foi se reunir com Josué na Fiesp.
O grupo também estava conversando com os sindicatos, e Arminio e alguns banqueiros faziam gestões com a Febraban, onde emplacar o manifesto era mais difícil —a Caixa Econômica e o Banco do Brasil se opunham, e um dos grandes bancos estava receoso.
A percepção era a de que seria muito importante ter uma carta que unisse entidades da sociedade civil, entre eles sindicatos dos trabalhadores, à Fiesp, organização que congrega boa parte do PIB brasileiro, para mostrar que não se tratava de uma preocupação de esquerda ou de direita.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, na Vila Mariana (zona sul), nascia outro manifesto.
O juiz federal Ricardo de Castro Nascimento reuniu-se no início de junho com colegas da São Francisco para propor uma reedição da histórica "Carta aos Brasileiros" lida pelo jurista Goffredo da Silva Telles em 1977, em plena ditadura militar.
O plano era lançar una nova carta para apontar para os riscos à democracia, e trazer signatários da carta original para o mesmo Pátio das Arcadas da faculdade.
Nascimento sentou para escrever no dia 14 de junho. Em 20 de junho, mandou uma primeira versão para sua mulher, Satie Wada, e seu colega Roberto Vomero Monaco lerem.
Continuou discutindo com outros colegas. O grupo foi então falar com Campilongo. O diretor da São Francisco avisou que já estava discutindo um manifesto das entidades, junto com a Fiesp, mas topou conversar.
No dia 18 de julho a carta dos ex-alunos foi formalizada em um jantar na casa de Antonio Roque Citadini, conselheiro do TCE-SP, já com a participação do advogado Flávio Bierrenbach, um dos idealizadores da carta original, e os outros 10 autores.
Campilongo propôs que o ato das entidades se realizasse na manhã do dia 11 de agosto, no salão nobre, e o dos ex-alunos fosse no final da tarde.
Os autores argumentaram que não fazia sentido deixar a leitura para o fim do dia, quando o centro da cidade está esvaziado. "Dissemos para eles: a gente consegue levar mais de mil pessoas para o pátio. A Fiesp consegue?", lembra Nascimento.
Josué enfrentou resistência interna na Fiesp, e a carta dos ex-alunos ficou pronta antes do manifesto das entidades. Foi lançada em 26 de julho com 3.000 assinaturas.
Com uma "ajudinha de Bolsonaro" após a reunião em que o presidente reuniu embaixadores para questionar as urnas eletrônicas, como dizem os organizadores, o manifesto alcançou 1 milhão de assinaturas na noite desta quinta-feira (11). E garantiu sua vaga no horário nobre do pátio das arcadas.
Os idealizadores não tinham imaginado que o evento ia ficar tão grande e não tinham uma organização que desse conta.
A gestora cultural Mari Stockler, coordenadora do grupo 342 Artes, e as diretoras Bia Lessa e Daniela Thomas, envolvidas em muitas das mobilizações democráticas do país dos últimos meses, abraçaram a missão.
Além de assumirem a produção do ato na São Francisco, também fizeram o vídeo em que os artistas leem a carta e toda mobilização online. Os professores fizeram vaquinha e levantaram R$ 80 mil para alugar dois telões e alto falantes e fazer a transmissão.
Existia um cuidado de não "espetacularizar" o ato. "Não é um show, é um documento cívico, sóbrio, não é um lugar de encenação", disse Bia Lessa.
Campilongo passou dias se esquivando de pessoas que queriam falar no evento ou aparecer de alguma maneira. "Fui assediado de maneira infernal, beirava a indecência", conta.
Outro desafio era levar para o ato os signatários da carta original, muitos com mais de 90 anos —apenas o jurista Modesto Carvalhosa não assinou a versão 2022.
Acomodados nas únicas cadeiras estofadas da faculdade, que foram colocadas no palco, todos os 20 signatários compareceram.
José Afonso da Silva, 96, um dos mais importantes constitucionalistas do Brasil, autor dos livros usados pelos estudantes da São Francisco, foi para o ato de cadeira de rodas.
Também compareceu Marcelo Duarte de Oliveira, o Padre Agostinho, 91, que ajudava presos políticos durante a ditadura e denunciou tortura. "Eles avisaram que vão dar o golpe. As ameaças existem e nós temos que reagir", disse.
Depois de tantos meses de negociações, os organizadores respiravam aliviados com o sucesso do ato.
"O caminho aberto hoje ajudará a que o Brasil recupere a possibilidade de pensar em como enfrentar seus principais desafios", disse Oscar Vilhena.
"Não é tarde demais, o ato e a carta são a vacina para tudo o que pode acontecer, não vai parar mais, abriu o dique democrático", dizia Dimas Ramalho, presidente do Tribunal de Contas de São Paulo e um dos autores da carta.
No entanto, nenhum dos organizadores soube precisar como os atos desta quinta podem manter o "dique democrático" aberto até o dia 2 de outubro.
A menos de dois meses da eleição presidencial, eles ainda discutem como manter a mobilização popular. Não estão programadas outras manifestações em defesa do respeito ao resultado da eleição. E não há tempo para outros partos difíceis.
O caminho começou no dia 21 de julho de 2021, quando o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça no governo FHC e um dos autores de um pedido de impeachment de Dilma Rousseff, e José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça de Dilma, juntaram-se ao grupo de WhatsApp batizado de Comitê Cívico das Eleições.
O grupo havia sido criado por Oscar Vilhena, professor de direito da FGV, pela socióloga Neca Setúbal, presidente do conselho da Fundação Tide Setúbal e uma das herdeiras do grupo Itaú, e Maria Hermínia Tavares, professora aposentada de ciência política da USP, ao lado de integrantes do Pacto pela Democracia, que reúne 150 entidades da sociedade civil.
A preocupação com as ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e a membros do Supremo Tribunal Federal crescia, e Vilhena, Neca e Maria Hermínia queriam encontrar maneiras de mobilizar a sociedade civil.
O grupo articulou uma carta de ex-ministros da Justiça ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), atacando o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes enviado pelo presidente Jair Bolsonaro.
No feriado de 7 de setembro de 2021, Bolsonaro mais uma vez subiu o tom contra o STF, mas a trégua costurada pelo ex-presidente Michel Temer baixou a temperatura, pelo menos temporariamente.
As discussões no grupo arrefeceram, mas em 2022 Bolsonaro voltou a questionar sistematicamente a integridade eleitoral e a confiabilidade das urnas eletrônicas. O grupo voltou a debater maneiras de criar barreiras para desestimular setores da sociedade de embarcarem em uma aventura autoritária.
Enquanto isso, o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, começou a receber sinalizações de membros do STF e de algumas indústrias, preocupadas com a instabilidade no país diante de ameaças de Bolsonaro de não respeitar o resultado da eleição.
A entidade começou a discutir internamento se deveria se posicionar.
Em junho, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga foi incorporado ao grupo de WhatsApp, rebatizado como Comitê de Defesa da Democracia.
Arminio, Neca e Vilhena começaram a conversar com Josué sobre a possibilidade de fazer um manifesto unindo a Fiesp, a Febraban, sindicatos e sociedade civil.
Ao mesmo tempo, o grupo discutia com o CDPP (Centro de Debates de Políticas Públicas), entidade presidida pelo economista Pérsio Arida que reúne banqueiros, grandes empresários, investidores e economistas e já tinha lançado um manifesto pró-democracia em agosto de 2021.
Vilhena trouxe para a articulação Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP e seu amigo de 40 anos, que foi se reunir com Josué na Fiesp.
O grupo também estava conversando com os sindicatos, e Arminio e alguns banqueiros faziam gestões com a Febraban, onde emplacar o manifesto era mais difícil —a Caixa Econômica e o Banco do Brasil se opunham, e um dos grandes bancos estava receoso.
A percepção era a de que seria muito importante ter uma carta que unisse entidades da sociedade civil, entre eles sindicatos dos trabalhadores, à Fiesp, organização que congrega boa parte do PIB brasileiro, para mostrar que não se tratava de uma preocupação de esquerda ou de direita.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, na Vila Mariana (zona sul), nascia outro manifesto.
O juiz federal Ricardo de Castro Nascimento reuniu-se no início de junho com colegas da São Francisco para propor uma reedição da histórica "Carta aos Brasileiros" lida pelo jurista Goffredo da Silva Telles em 1977, em plena ditadura militar.
O plano era lançar una nova carta para apontar para os riscos à democracia, e trazer signatários da carta original para o mesmo Pátio das Arcadas da faculdade.
Nascimento sentou para escrever no dia 14 de junho. Em 20 de junho, mandou uma primeira versão para sua mulher, Satie Wada, e seu colega Roberto Vomero Monaco lerem.
Continuou discutindo com outros colegas. O grupo foi então falar com Campilongo. O diretor da São Francisco avisou que já estava discutindo um manifesto das entidades, junto com a Fiesp, mas topou conversar.
No dia 18 de julho a carta dos ex-alunos foi formalizada em um jantar na casa de Antonio Roque Citadini, conselheiro do TCE-SP, já com a participação do advogado Flávio Bierrenbach, um dos idealizadores da carta original, e os outros 10 autores.
Campilongo propôs que o ato das entidades se realizasse na manhã do dia 11 de agosto, no salão nobre, e o dos ex-alunos fosse no final da tarde.
Os autores argumentaram que não fazia sentido deixar a leitura para o fim do dia, quando o centro da cidade está esvaziado. "Dissemos para eles: a gente consegue levar mais de mil pessoas para o pátio. A Fiesp consegue?", lembra Nascimento.
Josué enfrentou resistência interna na Fiesp, e a carta dos ex-alunos ficou pronta antes do manifesto das entidades. Foi lançada em 26 de julho com 3.000 assinaturas.
Com uma "ajudinha de Bolsonaro" após a reunião em que o presidente reuniu embaixadores para questionar as urnas eletrônicas, como dizem os organizadores, o manifesto alcançou 1 milhão de assinaturas na noite desta quinta-feira (11). E garantiu sua vaga no horário nobre do pátio das arcadas.
Os idealizadores não tinham imaginado que o evento ia ficar tão grande e não tinham uma organização que desse conta.
A gestora cultural Mari Stockler, coordenadora do grupo 342 Artes, e as diretoras Bia Lessa e Daniela Thomas, envolvidas em muitas das mobilizações democráticas do país dos últimos meses, abraçaram a missão.
Além de assumirem a produção do ato na São Francisco, também fizeram o vídeo em que os artistas leem a carta e toda mobilização online. Os professores fizeram vaquinha e levantaram R$ 80 mil para alugar dois telões e alto falantes e fazer a transmissão.
Existia um cuidado de não "espetacularizar" o ato. "Não é um show, é um documento cívico, sóbrio, não é um lugar de encenação", disse Bia Lessa.
Campilongo passou dias se esquivando de pessoas que queriam falar no evento ou aparecer de alguma maneira. "Fui assediado de maneira infernal, beirava a indecência", conta.
Outro desafio era levar para o ato os signatários da carta original, muitos com mais de 90 anos —apenas o jurista Modesto Carvalhosa não assinou a versão 2022.
Acomodados nas únicas cadeiras estofadas da faculdade, que foram colocadas no palco, todos os 20 signatários compareceram.
José Afonso da Silva, 96, um dos mais importantes constitucionalistas do Brasil, autor dos livros usados pelos estudantes da São Francisco, foi para o ato de cadeira de rodas.
Também compareceu Marcelo Duarte de Oliveira, o Padre Agostinho, 91, que ajudava presos políticos durante a ditadura e denunciou tortura. "Eles avisaram que vão dar o golpe. As ameaças existem e nós temos que reagir", disse.
Depois de tantos meses de negociações, os organizadores respiravam aliviados com o sucesso do ato.
"O caminho aberto hoje ajudará a que o Brasil recupere a possibilidade de pensar em como enfrentar seus principais desafios", disse Oscar Vilhena.
"Não é tarde demais, o ato e a carta são a vacina para tudo o que pode acontecer, não vai parar mais, abriu o dique democrático", dizia Dimas Ramalho, presidente do Tribunal de Contas de São Paulo e um dos autores da carta.
No entanto, nenhum dos organizadores soube precisar como os atos desta quinta podem manter o "dique democrático" aberto até o dia 2 de outubro.
A menos de dois meses da eleição presidencial, eles ainda discutem como manter a mobilização popular. Não estão programadas outras manifestações em defesa do respeito ao resultado da eleição. E não há tempo para outros partos difíceis.
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