23 de setembro de 2022

Assata Shakur narra em biografia a revolução que irrompe da vida negra

Livro passa pela infância e juventude da ativista para então chegar à sua prisão em 1973, após um tiroteio com policiais

Fernanda Silva e Sousa
Doutoranda em teoria literária e literatura comparada na USP


Assata Shakur, ativista dos direitos civis, ex-membro do antigo Partido dos Panteras Negras - BlackPast.org/Divulgação

"Meu nome é Assata Shakur (nome de escrava Joanne Chesimard), e eu sou uma revolucionária. Uma revolucionária negra."

É com essas palavras que uma das maiores e mais perseguidas ativistas comunistas, exilada política em Cuba desde 1984, inicia seu lendário discurso "Para Minha Gente", em maio de 1973, gravado na prisão e transmitido em várias rádios antes de um dos tantos julgamentos que enfrentaria como efeito da criminalização de militantes negros nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos.

Em "Assata: Uma Autobiografia", publicada originalmente em 1987, acompanhamos a formação de uma revolucionária no contexto de uma "amérika" racista –sempre grafada em letra minúscula no livro–, em que o sonho americano é o pesadelo americano para a população negra.

Entretanto, ao contar sua história, Shakur revela os contornos humanos de um ativismo revolucionário que nasce das urgências materiais da vida e das lições aprendidas com seus mais velhos e seus irmãos e irmãs de luta.

Com uma estrutura não linear, a autobiografia alterna entre duas temporalidades ao longo dos seus 21 capítulos, a de sua infância e juventude no sul segregado dos Estados Unidos e, depois, em Nova York, e a da prisão em 1973, no contexto de seu envolvimento com organizações negras comunistas, após um tiroteio com policiais.

É com o ataque da polícia, aliás, que o livro se inicia, com Shakur baleada e com medo de morrer, apresentando o relato não apenas de uma revolucionária, mas também de uma sobrevivente.

Em meio a diferentes torturas e humilhações no hospital para onde é levada, Shakur afirma como uma memória do futuro —"de qualquer forma, eu ia viver".

Sua autobiografia assume, então, a dicção de uma sobrevivente que, no presente da escrita, nos lança para um passado em que, apesar de ela sentir que "todo dia era meu último dia na Terra", acreditava radicalmente no seu direito à vida digna e na luta contra um mundo capitalista, imperialista e racista.

Por um lado, a trajetória revolucionária reconstruída no livro se associa com lições ancestrais de sobrevivência. Do inegociável senso de dignidade pessoal transmitido pelos avós, que a ensinaram a não respeitar quem não a respeitasse, aos espíritos de mulheres negras que encontrava nos livros e na prisão e que "têm lutado e ajudado umas às outras a sobreviverem aos golpes da vida", Shakur nos mostra uma ética revolucionária que irrompe da própria vida negra.

Por outro, seu processo de se tornar revolucionária é influenciado pelas duras experiências racistas, que interditavam seus anseios de viver como se fosse livre. Ao fugir de casa aos 13 anos, foram as ruas do Harlem, belas e terríveis, que também a ensinaram a sobreviver, estando "cara a cara com o lado mais obsceno da vida". Nesse amadurecimento tortuoso, a literatura ganha um papel central, com ela se tornando uma leitora voraz e uma poeta "profunda" —como mostram os poemas que aparecem no livro.

É lendo o escritor James Baldwin que Shakur, ao ouvir as "vozes angustiadas gritando e choramingando" de pessoas negras nos seus textos, conclui que "queria ajudar a libertar o gueto, e não fugir dele". Indignada com o sofrimento humano causado por uma sociedade racista e capitalista, ela renova a sua fé na vida e na transformação do mundo ao conhecer a luta comunista por meio de organizações negras como Golden Drums e o Partido dos Panteras Negras.

Vemos, assim, uma Shakur que assume o cabelo black power, recusa o "nome de escrava" e se vê como uma "mulher africana", pois "nosso desejo de sermos livres precisa se manifestar em tudo que somos e fazemos".

Porém, essa mudança não se resume a elementos simbólicos; ela se alia à adoção de uma práxis comunista atenta às lutas por libertação na África e no mundo a partir de uma ética ancestral e de um profundo senso de autodeterminação do povo negro. Se a luta revolucionária era o que punha sua vida em risco, era a luta que a ajudava a sobreviver na medida em que "era como um remédio, me curando, me tornando inteira".

Para Shakur, "quando os Negros estão lutando é quando, para mim, são ainda mais lindos". Se é assim, então é a beleza de uma vida e de uma luta que encontramos em "Assata: Uma Autobiografia", um livro que talvez jamais fosse escrito sem a esperança no futuro que o nascimento de sua filha, Kakuya Amala Olugbala Shakur, em meio à prisão, proporciona, motivando a autora a fugir anos depois. Afinal, "essas pessoas podem trancar a gente, mas não podem parar a vida". E ninguém parou Assata Shakur até hoje.

ASSATA: UMA AUTOBIOGRAFIA

Preço R$ 98 (472 págs.)
Autor Assata Shakur
Editora Pallas
Tradutora Carla Branco

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