Richard Brody
Em meio à escalada da violência na terceira parte do filme, “Transfusão de Sangue”, Marcelo permanece o centro sereno, vivendo escondido em sua cidade natal, sua identidade dividida entre disfarces públicos e privados, sua mente pressionada ao limite pelo esforço de manter as aparências. Apesar de tudo isso, ele possui uma essência inabalável de princípios, que Mendonça destila em um símbolo físico icônico — um gravador de fita cassete antigo que adquire poder totêmico ao preservar o testemunho de Marcelo. As fitas resultantes dão origem a um golpe de cinema de audácia e simplicidade de tirar o fôlego, um salto no tempo que traz vozes silenciadas de volta à vida. Com esse recurso, Mendonça transmite uma indignação justa, porém esperançosa, uma visão de generosidade sincera e solidariedade intergeracional diante da autoridade implacável, de ontem e de hoje. ♦
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| No filme de Kleber Mendonça Filho, ambientado no Brasil dos anos setenta, Wagner Moura interpreta um homem que se esconde em sua cidade natal. Ilustração de Woodrow White. |
O protagonista de “O Agente Secreto” não é um agente secreto; ele apenas vive como um. O motivo de suas manobras clandestinas fica evidente logo na primeira cena do filme, quando ele para em um posto de gasolina em uma estrada rural. Antes que possa ir embora com o tanque cheio, a polícia aparece. A chegada dos policiais não é nenhuma surpresa: há um cadáver em decomposição no local. O que surpreende é que eles ignoram o corpo. Em vez disso, um deles interroga o viajante e revistam seu carro com uma indiferença ameaçadora. Isso se passa no Brasil de 1977, quando o país estava sob o domínio de uma ditadura militar e, como o filme mostra, as noções de crime e castigo eram profundamente distorcidas: uma palavra imprudente dita à pessoa errada era suficiente para mandar alguém para a cadeia.
"O Agente Secreto" é um thriller político que talvez seja também o filme mais profuso e populoso do ano, repleto de personagens marcantes que preenchem a tela com ação ousada e propósitos ardentes (sejam eles honrados ou corruptos). O roteirista e diretor do filme, Kleber Mendonça Filho, constrói uma narrativa concisa com surpreendente liberdade, saltando entre os personagens para evocar suas interconexões fatídicas, ao mesmo tempo que lhes confere, a todos perseguidos e perseguidores, uma identidade e uma voz. Nesse processo, ele dá vida à história com uma imediaticidade revigorante — um feito ainda mais raro pelas audaciosas reviravoltas de forma cinematográfica com as quais transforma o filme em um ato de resgate de arquivos.
O homem do posto de gasolina, um cientista de meia-idade chamado Marcelo (Wagner Moura), chega à sua cidade natal, Recife, no litoral nordeste do Brasil, durante o Carnaval, e encontra a cidade em um estado de agitação festiva. Ao chegar ao prédio onde se esconderá, ele é imediatamente encharcado por crianças alegres com pistolas de água improvisadas. Mas a gravidade da situação torna-se clara rapidamente quando, momentos depois, ele é recebido por Sebastiana (Tânia Maria), a matriarca da casa segura, onde abriga outros em circunstâncias semelhantes. Sebastiana demonstra sua compaixão de imediato, perguntando-lhe se teve problemas com "os porcos" durante a viagem. Com setenta e sete anos, eloquente, franca e com princípios firmes, ela apresenta Marcelo, viúvo, a um grupo de novos vizinhos, especialmente a uma mulher chamada Cláudia (Hermila Guedes), professora de odontologia, com quem Sebastiana tenta imediatamente juntá-lo. Então, quando os vizinhos estão fora de vista, ela lhe dá algum dinheiro e instruções para sua nova vida, expressando seu compromisso com a causa dele com um discreto fechar de lábios.
O filme é dividido em três partes, cada uma com um título instigante que revela e esconde o suficiente. A primeira, “O Pesadelo do Menino”, narra o conturbado retorno de Marcelo para casa, ainda sob a sombra do luto pela morte da esposa, e seu reencontro com o filho pequeno, Fernando (Enzo Nunes), que está morando em Recife com os avós maternos, Lenira (Aline Marta Maia) e Alexandre (Carlos Francisco), projecionista em um cinema local. Sem a mãe e separado do pai, o menino sofre com pesadelos, mas sua preocupação imediata é bem mais comum: o cinema de Alexandre está exibindo “Tubarão”, e Fernando — obcecado pelos anúncios do filme — implora para assisti-lo.
Enquanto isso, um tubarão de verdade encalhou na praia; o MacGuffin do filme é uma perna humana encontrada na barriga da criatura. Para investigar, o astuto e pomposo chefe de polícia da cidade, Euclides (Robério Diógenes), sai direto de suas próprias festas de Carnaval, coberto de confete e manchas de batom, para ver o membro em um laboratório de oceanografia, onde se junta a dois outros policiais — seus filhos adultos, Arlindo (Ítalo Martins) e Sérgio (Igor de Araújo). Euclides espera manter a descoberta longe da imprensa por razões que logo se tornam evidentes: dois assassinos de aluguel, um padrasto (Roney Villela) e um enteado (Gabriel Leone), estão atuando na cidade com a aprovação tácita da polícia, jogando corpos de uma ponte no mar.
Apesar da censura sofrida pela imprensa brasileira na época, os desaparecimentos ainda são notícia, incluindo o de um estudante que não é visto há vários dias — a vítima desmembrada, como se sugere — que é o tema de um artigo que aparece na segunda parte do filme, “Instituto de Identidade”. O título se refere a um órgão governamental que emite carteiras de identidade, onde Marcelo, agora bem vestido e arrumado, começa um trabalho de escritório arranjado por um simpatizante influente (Buda Lira). Marcelo tem um motivo adicional para trabalhar lá: pesquisando o arquivo do instituto, ele espera preencher lacunas antigas e perturbadoras sobre sua história familiar. No escritório, a história se entrelaça de forma ameaçadora, com Euclides aparecendo como parte de um plano sórdido para ajudar uma mulher rica enquanto nega justiça a uma pobre. Ele se torna amigo de Marcelo — mesmo enquanto, durante as rondas noturnas, se associa aos assassinos de aluguel.
Mendonça, de 57 anos, cresceu em Recife e centrou sua carreira cinematográfica na cidade, explorando sua política e dinâmicas de poder nos dramas “O Som ao Redor” (2012) e “Aquário” (2016). Ele fez desvios temáticos em “Bacurau” (2019), uma fantasia futurista ambientada em uma vila fictícia em outro lugar do estado de Pernambuco, e “Imagens de Fantasmas” (2023), um documentário pessoal sobre os cinemas de Recife. “O Agente Secreto” é, de longe, seu filme mais bem-sucedido até o momento, e o único ambientado na época em que cresceu. O design físico do filme transmite deleite, admiração e uma nostalgia amarga; parece estar enraizado igualmente na memória e na pesquisa, na imaginação estética e na consciência política. Com sua escolha de detalhes específicos da época — o Fusca amarelo de Marcelo, as máquinas de escrever manuais do escritório sob protetores de plástico contra poeira, os telefones públicos na calçada cercados por cabines modernistas em formato de bolha — o diretor abraça a moda e a música daquele período sem perder de vista a brutal desordem associada a elas.
Mendonça ama o processo, e em “O Agente Secreto” ele estende as cenas, desdobrando jogos de ocultação e evasão com precisão discreta e tensão avassaladora, revelando informações angustiantes com contenção precisa. Sua direção é repleta de detalhes memoravelmente excêntricos que reverberam com significado temático. Uma das cenas mais marcantes do filme é uma curiosa digressão que surge de uma trivialidade — um telegrama que Marcelo envia a um benfeitor (Marcelo Valle) cujo telefone provavelmente está grampeado. Mendonça mostra o telegrama em cada etapa de sua jornada: um funcionário recebe a mensagem, outro a transmite, um terceiro a imprime na outra ponta e, em seguida, um mensageiro a leva dobrada entre os dedos até o escritório do simpatizante. Essa cena paralela, estranhamente descontraída, culmina em uma surpresa arrepiante: o destinatário fica chocado ao descobrir que o telegrama já foi aberto.
A paranoia permeia o filme sem ostentação ou exageros — não há ângulos distorcidos, nem trilha sonora ameaçadora. O terror ambiente emerge, em vez disso, do comportamento cauteloso dos personagens que estão na mira, como em duas cenas longas e primorosamente construídas — os pilares emocionais mais importantes do filme — que mostram Marcelo conversando com outros suspeitos. Na primeira, ele encontra, em um local secreto, uma mulher chamada Elza (Maria Fernanda Cândido), que o informa que ele está sob ameaça de morte. Ele, por sua vez, conta a ela a história por trás de sua perseguição, um conto que envolve alguns dos aproveitadores predadores do regime autoritário e, ao fazê-lo, oferece um retrato comovente de uma antiga aliada, sua falecida esposa, Fátima (Alice Carvalho). Em outra cena semelhante, os moradores da casa segura realizam uma sessão espontânea de apoio mútuo, durante a qual Sebastiana, a matriarca, é questionada sobre uma foto antiga em sua lareira e responde com uma reminiscência, quase uma ária, de seu passado político sombrio e romântico.
De forma semelhante, Mendonça reconstrói a cidade em sua totalidade com fervor, tanto por seu vigor exterior quanto por sua vida interior. O cinema onde Alexandre trabalha é um ponto de encontro informal, como um café, e uma praça pública, mas muitos dos acontecimentos cotidianos escondem segredos, sejam eles macabros ou reconfortantes. Nos cenários urbanos do filme, repletos de figurantes, a rotina diária se mistura ao drama, preenchendo as imagens panorâmicas habilmente compostas por Mendonça com um tumulto apaixonado. Mesmo ao mostrar pequenos grupos em ambientes internos, os planos fechados do diretor transmitem uma sensação de agitação, amplificada pelas performances expressivas e vívidas do elenco — especialmente a de Moura, que conduz o filme com uma atuação estelar de determinação elegante, energia ponderada e uma calma sobrenatural diante do perigo mortal.

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