Filme é obra sólida que proporcionou terremoto no público e na crítica
Marcelo Rubens Paiva
Escritor e dramaturgo. Autor, entre outros livros, de "Feliz Ano Velho", "Malu de Bicicleta" e "Ainda Estou Aqui"
[RESUMO] Zeitgeist do Brasil de 1977 é o protagonista de "O Agente Secreto", escreve Marcelo Rubens Paiva, que elogia a profusão de atores espetaculares, cenas de suspense, a trilha sonora, o mistério da trama e o roteiro sem muitas explicações do novo filme de Kleber Mendonça Filho, que acaba de estrear no Brasil.
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Em "Nunca Fomos Tão Felizes", filme de Murilo Salles de 1984, um pai busca o filho órfão em um colégio interno religioso e o leva para um apartamento sem móveis de Copacabana. Não sabemos o que o pai faz. Está envolvido na luta contra a ditadura? Está clandestino, se preparando para fugir com o filho para o exílio?
O que movimentava a narrativa era justamente o desconhecido. "O Agente Secreto" narra, também na ditadura, a história de um pai em fuga, Marcelo, que vai em busca do filho órfão na casa do avô, para fugirem do Brasil. Foge por quê? Como morreu a mãe?
Homem de camiseta azul inclina-se para examinar um painel elétrico aberto em ambiente interno com iluminação amarelada. O foco está no rosto concentrado e na mão que toca o painel.Homem de camiseta azul inclina-se para examinar um painel elétrico aberto em ambiente interno com iluminação amarelada. O foco está no rosto concentrado e na mão que toca o painel.
O que movimentava a narrativa era justamente o desconhecido. "O Agente Secreto" narra, também na ditadura, a história de um pai em fuga, Marcelo, que vai em busca do filho órfão na casa do avô, para fugirem do Brasil. Foge por quê? Como morreu a mãe?
Homem de camiseta azul inclina-se para examinar um painel elétrico aberto em ambiente interno com iluminação amarelada. O foco está no rosto concentrado e na mão que toca o painel.Homem de camiseta azul inclina-se para examinar um painel elétrico aberto em ambiente interno com iluminação amarelada. O foco está no rosto concentrado e na mão que toca o painel.
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| Wagner Moura em cena de "O Agente Secreto" - Victor Juca/Divulgação |
Tudo na época dos telefones grampeados era dito em metáforas. Ninguém sabia quem era o quê? Era prudente agir com introversão e sutileza. A verdade era a conveniente. Me permite o testemunho de alguém que viveu naquela época claustrofóbica e ainda por cima andou (no banco de passageiro) em um camburão exatamente como o do filme.
Dois países se colidiam: aquele em que o Estado tratava seu povo como inimigo, tacando o terror sem controle, e aquele de uma parcela do povo acuada, que era solidária, amorosa, que mesmo arriscando a vida ajudava quem precisasse.
Marcelo se instala em um conjunto de casas de pessoas também escondidas, como o garoto que fugiu porque o queriam "homem do jeito que eles querem, o garoto é homem, mas não do jeito que eles querem", local tocado por dona Sebastiana, a pessoa mais amorosa da cidade.
Muitos da resistência que entrevistei pela vida me contaram do carinho e amor que uns sentiam pelos outros nos aparelhos, escondidos, ou nas prisões. É difícil descrever essa atmosfera de amor e horror. Atrás de tanta maldade, tinha muita solidariedade.
Naquele período, muita coisa era sem explicação. Assim é o filme de Kleber Mendonça Filho, com "Culto à Terra" na trilha, do disco esquecido de Zé Ramalho e Lula Cortês, "Paêbirú", de 1975, em uma cena de perseguição que parece ter sido feita para ela.
O magnum opus do rock psicodélico brasileiro, que ninguém comprou, sumiu das prateleiras, cuja primeira tiragem foi destruída em uma enchente, é o espelho da identidade sincretista brasileira, do duelo entre modernidade e passado, em que se jogava bola com uma manga: luz e obscuro, mito e razão, lamento e júbilo.
O disco fala da trilha milenar do povo guarani, que ligava o Atlântico ao Pacífico. Cinquenta anos depois, está no filme que atravessa o Brasil que buscava um futuro, de Chacrinha, Tarcísio Meira aos filmes "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" e "Iracema: uma Transa Amazônica", homenageados na abertura.
Mendonça é um caso sério. Seu cinema não passa em branco, porque é antropológico, é história, é raiz, é conflito social centenário, é coração. Quem gosta de cinema conhece seus longas e manifesta opiniões exaltadas.
"O Agente Secreto" acelera no circuito de obras sólidas que marcam, nos fazem pensar e debatem o país das contradições e choques de placas tectônicas, proporcionando um terremoto no público e na crítica.
Juliette Binoche, presidente do júri deste ano do Festival de Cannes, que confessou que queria dar um prêmio maior para o longa, disse que o filme tem muitas camadas.
Nos tempos da ditadura e censura, a imprensa sensacionalista foi a salvação das empresas de comunicação. Jornais, programas de rádio e TV viraram um circo de aberrações. Está sempre no pano de fundo em "O Agente Secreto", amplificando o ruído da época.
Aproveitava-se do Brasil místico, supersticioso, assustado. A notícia de que uma perna decepada com unhas grandes e podres perseguia as pessoas na madrugada e as atacava dando chutes virou núcleo no filme.
Na música "Banditismo por uma Questão de Classe", Chico Science fala de um tempo em que se glorificava o progresso, bandidos e a televisão. Em um certo momento, canta: "Galeguinho do Coque não tinha medo da perna cabeluda."
Perna Cabeluda é uma lenda urbana do Recife, cuja paternidade é disputada. Gilberto Freyre a incluiu na sua obra de 1955, "Assombrações do Recife Velho", com Papa-figo, A Mulher da Sombrinha e outras. Relatou a relação nostálgica e afetiva com o passado pré-aldeia global, de uma sociedade que tratava as assombrações como parte da alma e da memória, cultuada e popularizada em cordéis.
Outra camada: policiais do esquadrão da morte desovam cadáveres pelos rios e açudes. Um tubarão é encontrado com uma perna cabeluda no estômago. Perna de algum dos corpos desovados.
Enquanto isso, no cinema São Luis, o filme "Possessão" leva as pessoas a surtos, como "Tubarão", sim, o de Spielberg, "King Kong" e "O Magnífico" ou "Agente Secreto", uma sátira francesa do cinema de espionagem, com Jean-Paul Belmondo.
Tubarão, perna cabeluda, Marcelo (Wagner Moura) chegando no Recife em 1977 durante o Carnaval, atravessando uma estrada em um canavial, garotas pesquisando essa história no presente, compõem algumas camadas desse thriller intrigante e surreal.
Por certo, o ponto de partida foi a atmosfera de um Brasil sem rumo. Marcelo se meteu com pessoas poderosas e volta para a terra da pirraça. Ele não é um dissidente de esquerda, mas um acadêmico que entra em conflito com o departamento da universidade. É no meio do filme que sabemos o real motivo da fuga.
Identidade e memória são temas recorrentes até o final. Cheguei a ler as críticas que saíram lá fora, para conjecturar a universalidade do filme.
O jornal Le Monde fala da metáfora do período da ditadura: "Este membro inferior, meio decomposto na câmara frigorífica, funciona como uma metáfora do período da ditadura, com seus desaparecimentos e cadáveres nas esquinas".
O crítico da badalada revista Telerama escreveu: "Nove anos depois de um grande filme que já havia marcado o Festival de Cannes e, em seguida, os espectadores franceses, 'Aquarius'', o diretor Kleber Mendonça Filho reencontra a preciosa alquimia: um personagem central em dificuldades, tão cativante quanto encantador; uma história de suspense que se enraíza nos meandros da história do Brasil e se desenrola ao longo de décadas; uma qualidade de olhar excepcional, que dá vida a todos os protagonistas e locais filmados".
The Guardian: "Este filme, visual e dramaticamente soberbo em todos os aspectos, avança pela tela com uma confiança tranquila, fazendo pausas para saborear cada bizarro toque de comédia ou desvio erótico, ou nota de páthos, em seu caminho sinuoso até o violento desfecho".
O zeitgeist da época é, para mim, o protagonista do filme. A munição de Mendonça foi uma profusão de atores espetaculares, cenas de suspense, muita música, o mistério da trama e um roteiro sem muitas explicações. É daqueles filmes que o espectador pensa: "Preciso ver de novo". Se quer ver de novo, é porque é bom.
Dois países se colidiam: aquele em que o Estado tratava seu povo como inimigo, tacando o terror sem controle, e aquele de uma parcela do povo acuada, que era solidária, amorosa, que mesmo arriscando a vida ajudava quem precisasse.
Marcelo se instala em um conjunto de casas de pessoas também escondidas, como o garoto que fugiu porque o queriam "homem do jeito que eles querem, o garoto é homem, mas não do jeito que eles querem", local tocado por dona Sebastiana, a pessoa mais amorosa da cidade.
Muitos da resistência que entrevistei pela vida me contaram do carinho e amor que uns sentiam pelos outros nos aparelhos, escondidos, ou nas prisões. É difícil descrever essa atmosfera de amor e horror. Atrás de tanta maldade, tinha muita solidariedade.
Naquele período, muita coisa era sem explicação. Assim é o filme de Kleber Mendonça Filho, com "Culto à Terra" na trilha, do disco esquecido de Zé Ramalho e Lula Cortês, "Paêbirú", de 1975, em uma cena de perseguição que parece ter sido feita para ela.
O magnum opus do rock psicodélico brasileiro, que ninguém comprou, sumiu das prateleiras, cuja primeira tiragem foi destruída em uma enchente, é o espelho da identidade sincretista brasileira, do duelo entre modernidade e passado, em que se jogava bola com uma manga: luz e obscuro, mito e razão, lamento e júbilo.
O disco fala da trilha milenar do povo guarani, que ligava o Atlântico ao Pacífico. Cinquenta anos depois, está no filme que atravessa o Brasil que buscava um futuro, de Chacrinha, Tarcísio Meira aos filmes "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" e "Iracema: uma Transa Amazônica", homenageados na abertura.
Mendonça é um caso sério. Seu cinema não passa em branco, porque é antropológico, é história, é raiz, é conflito social centenário, é coração. Quem gosta de cinema conhece seus longas e manifesta opiniões exaltadas.
"O Agente Secreto" acelera no circuito de obras sólidas que marcam, nos fazem pensar e debatem o país das contradições e choques de placas tectônicas, proporcionando um terremoto no público e na crítica.
Juliette Binoche, presidente do júri deste ano do Festival de Cannes, que confessou que queria dar um prêmio maior para o longa, disse que o filme tem muitas camadas.
Nos tempos da ditadura e censura, a imprensa sensacionalista foi a salvação das empresas de comunicação. Jornais, programas de rádio e TV viraram um circo de aberrações. Está sempre no pano de fundo em "O Agente Secreto", amplificando o ruído da época.
Aproveitava-se do Brasil místico, supersticioso, assustado. A notícia de que uma perna decepada com unhas grandes e podres perseguia as pessoas na madrugada e as atacava dando chutes virou núcleo no filme.
Na música "Banditismo por uma Questão de Classe", Chico Science fala de um tempo em que se glorificava o progresso, bandidos e a televisão. Em um certo momento, canta: "Galeguinho do Coque não tinha medo da perna cabeluda."
Perna Cabeluda é uma lenda urbana do Recife, cuja paternidade é disputada. Gilberto Freyre a incluiu na sua obra de 1955, "Assombrações do Recife Velho", com Papa-figo, A Mulher da Sombrinha e outras. Relatou a relação nostálgica e afetiva com o passado pré-aldeia global, de uma sociedade que tratava as assombrações como parte da alma e da memória, cultuada e popularizada em cordéis.
Outra camada: policiais do esquadrão da morte desovam cadáveres pelos rios e açudes. Um tubarão é encontrado com uma perna cabeluda no estômago. Perna de algum dos corpos desovados.
Enquanto isso, no cinema São Luis, o filme "Possessão" leva as pessoas a surtos, como "Tubarão", sim, o de Spielberg, "King Kong" e "O Magnífico" ou "Agente Secreto", uma sátira francesa do cinema de espionagem, com Jean-Paul Belmondo.
Tubarão, perna cabeluda, Marcelo (Wagner Moura) chegando no Recife em 1977 durante o Carnaval, atravessando uma estrada em um canavial, garotas pesquisando essa história no presente, compõem algumas camadas desse thriller intrigante e surreal.
Por certo, o ponto de partida foi a atmosfera de um Brasil sem rumo. Marcelo se meteu com pessoas poderosas e volta para a terra da pirraça. Ele não é um dissidente de esquerda, mas um acadêmico que entra em conflito com o departamento da universidade. É no meio do filme que sabemos o real motivo da fuga.
Identidade e memória são temas recorrentes até o final. Cheguei a ler as críticas que saíram lá fora, para conjecturar a universalidade do filme.
O jornal Le Monde fala da metáfora do período da ditadura: "Este membro inferior, meio decomposto na câmara frigorífica, funciona como uma metáfora do período da ditadura, com seus desaparecimentos e cadáveres nas esquinas".
O crítico da badalada revista Telerama escreveu: "Nove anos depois de um grande filme que já havia marcado o Festival de Cannes e, em seguida, os espectadores franceses, 'Aquarius'', o diretor Kleber Mendonça Filho reencontra a preciosa alquimia: um personagem central em dificuldades, tão cativante quanto encantador; uma história de suspense que se enraíza nos meandros da história do Brasil e se desenrola ao longo de décadas; uma qualidade de olhar excepcional, que dá vida a todos os protagonistas e locais filmados".
The Guardian: "Este filme, visual e dramaticamente soberbo em todos os aspectos, avança pela tela com uma confiança tranquila, fazendo pausas para saborear cada bizarro toque de comédia ou desvio erótico, ou nota de páthos, em seu caminho sinuoso até o violento desfecho".
O zeitgeist da época é, para mim, o protagonista do filme. A munição de Mendonça foi uma profusão de atores espetaculares, cenas de suspense, muita música, o mistério da trama e um roteiro sem muitas explicações. É daqueles filmes que o espectador pensa: "Preciso ver de novo". Se quer ver de novo, é porque é bom.

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