Lenadro Morgenfeld
Foto de grupo da IX Cúpula das Américas no Centro de Convenções de Los Angeles em 10 de junho de 2022. (Foto: Moneymaker / Getty Images) |
Ao assumir o cargo em janeiro do ano passado, Biden imaginava que a IX Cúpula das Américas seria o cenário ideal para o relançamento das relações com a América Latina e o Caribe. O Hemisfério Ocidental, como é formalmente chamado seu desprezado quintal, é essencial para a projeção imperial dos EUA e para continuar sustentando sua hegemonia global, enfraquecida pela ascensão da China e de outros grandes atores, como Rússia e Índia, que se articulam no grupo dos BRICS. No entanto, o conclave de Los Angeles resultou em um retumbante fracasso diplomático e político para a Casa Branca. Nuestra América, por sua vez, tem uma nova oportunidade de relançar a coordenação política regional e unificar uma estratégia emancipatória.
Como representante da facção globalista da classe dominante, Biden tenta, sem sucesso, reverter a crise de hegemonia dos EUA. Procura reconstruir o multilateralismo unipolar enfraquecido, ao contrário de Trump, que promoveu o unilateralismo unipolar, desdenhando esferas multilaterais como a ONU, a OEA ou o G20. É por isso que no ano passado o democrata declarou pomposamente que "os Estados Unidos estavam de volta" (Trump, por outro lado, faltou à cúpuça hemisférica de Lima no último minuto em 2018).
A IX Cúpula das Américas, insinuou Biden, seria o cenário perfeito para relançar o vínculo com a América Latina e o Caribe, tal como Obama havia feito na Cúpula de Trinidad e Tobago, em 2009, poucos meses depois de chegar à Casa Blanca, depois do revés que significou o "Não à ALCA" em Mar del Plata quatro anos antes. Justamente o atual presidente se vangloriou de ter visitado a região 16 vezes durante seus 8 anos como vice-presidente (ao contrário de Trump, que não viajou para sul do Rio Grande durante todo o seu mandato, exceto uma visita fugaz a Buenos Aires em 30 de novembro de 2018, para participar na Cúpula Presidencial do G20).
No entanto, a tão esperada reunião em Los Angeles ocorreu em um momento muito inoportuno para os Estados Unidos, após a constrangedora retirada do Afeganistão em 2021, que implicou uma humilhação para o império após duas décadas de ocupação daquele país (o que acrescenta a incapacidade de ter materializado a queda dos governos da Venezuela e da Síria, hostilizados de todas as formas possíveis).
À crise global que a pandemia aprofundou soma-se agora a guerra na Ucrânia, depois de a Rússia ter reagido à pressão crescente da OTAN. Esta situação desencadeou problemas econômicos internos nos Estados Unidos (a inflação mais elevada dos últimos 40 anos obrigou o FeD a aumentar as taxas de juro, incentivando um arrefecimento da economia, que poderá consequentemente entrar em recessão em 2023) e a deterioração acelerada da imagem do governo Democrata, cujo partido provavelmente perderá o controle apertado do Congresso nas eleições intermediárias de novembro.
Tentando um delicado equilíbrio entre necessidades internas e externas, Biden cedeu às pressões do senador republicano Marco Rubio, do senador democrata Bob Martínez e do presidente do BID, o trumpista Mauricio Claver-Carone, e decidiu que só convidaria líderes "eleitos democraticamente", excluindo assim os líderes de Cuba (tinha regressado à Cúpula das Américas em 2015), da Venezuela (tinha sido excluída em Lima) e da Nicarágua.
A manutenção da política de Trump de sitiar a chamada "troika do mal" desencadeou uma tempestade política no continente e marcou o destino da cúpula. Além disso, os Estados Unidos, em termos econômicos, não têm quase nada para oferecer à região, face a uma China que avança incansavelmente como parceiro comercial, credor e investidor em todo o continente. Washington quer que os países latino-americanos lhe sejam subservientes na sua disputa global com Pequim e Moscou, mas, ao contrário do que aconteceu na década de 1990, já não tem o projecto (a ALCA ou mais tarde o Tratado Transpacífico) nem o peso econômico tinha há alguns anos.
Quando em 2 de maio o subsecretário de Estado Brian Nichols reiterou que não seriam convidados governos que "não respeitassem a carta democrática", foi planteado pelo presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO) aos Estados Unidos, que, após visitar Cuba, declarou que não viajaria para Los Angeles se fossem impostas restrições à participação de países soberanos. Ele logo foi apoiado por membros da Comunidade do Caribe (CARICOM), pelo presidente boliviano Luis Arce e pelo presidente hondurenho Xiomara Castro.
A partir desse momento, e perante a possibilidade de a cúpulaa não se realizar, a administração Biden viu-se obrigada a realizar intensos esforços diplomáticos, incluindo as viagens da primeira-dama e ex-senadora Chris Dodd, para evitar que o boicote naufragasse. Finalmente conseguiu que Bolsonaro viajasse - em troca de uma reunião bilateral com o seu homólogo americano - e comprometeu-se com a assistência de Gabriel Boric e Alberto Fernández, que, embora criticassem a decisão do Departamento de Estado, não concordaram com AMLO. Entretanto, no dia 27 de maio, os dirigentes da ALBA (criada em 2004 como projeto alternativo à ALCA) reuniram-se em Havana para repudiar as exclusões e enviar uma mensagem aos Estados Unidos.
Dada a ausência de muitos líderes da região (no final, apenas 23 dos 35 acabaram por comparecer, resultando na edição da cúpula com mais faltas a nível presidencial), a participação ou não de Alberto Fernández foi especialmente relevante. Se se juntasse a AMLO, Luis Arce e Xiomara Castro, que mantiveram a palavra e não foram por causa das exclusões anacrónicas, o golpe na cúpula teria sido letal (os governos de direita da Guatemala e de El Salvador também faltaram, por outros razões, que foram fundamentais porque juntamente com o México são fundamentais para resolver a crise migratória que preocupa a Casa Branca).
Nos dias anteriores, o presidente argentino elevou o tom das críticas aos Estados Unidos. Porém, após o telefonema de Biden e a promessa de uma visita à Casa Branca em 25 de julho, ele anunciou que participaria da Cúpula, rompendo efetivamente a harmonia diplomática que vinha sendo cultivada com o México desde a formação do Grupo de Puebla e que foi importante, por exemplo, para conseguir a fuga com vida de Evo Morales e Álvaro García Linera após o golpe de estado na Bolívia em 2019.
Embora tenha viajado para Los Angeles, o tom do discurso de Alberto Fernández (hoje presidente pro tempore da CELAC) foi extremamente duro. Ressaltou que o país anfitrião não poderia exercer o direito de admissão, pediu a substituição de Luis Almagro na OEA por seu apoio ao golpe contra Evo ("A OEA foi usada como um gendarme que facilitou um golpe na Bolívia") e afirmou que a gestão do BID deveria voltar às mãos de um latino-americano. Também apresentou a reivindicação pela soberania das Malvinas: criticou que o logotipo da Cúpula não as incluísse. Além disso, convidou Biden para a Cúpula da CELAC que será realizada no dia 1º de dezembro em Buenos Aires, dando a entender que é necessária uma articulação regional para a partir daí propor de forma unificada um diálogo ou negociação com os Estados Unidos.
Às múltiplas ausências, somadas aos discursos críticos - especialmente o do chanceler mexicano, que viajou a Los Angeles -, a escaramuça contra o golpista Luis Almagro na terça-feira, 7 de junho (repudiado como "assassino", "mentiroso" e "fantoche de Washington"), a realização da contra-Cúpula dos Povos e a mobilização nas ruas contra as exclusões, mostram que os Estados Unidos já não podem impor a sua vontade como antes.
O problema, deste lado, é a ausência de uma estratégia regional conjunta: a iniciativa precisa ser recuperada. A UNASUL, convalescendo após a retirada dos governos de direita alinhados com os Estados Unidos durante a chamada restauração conservadora, bem como a CELAC, poderia ser um lugar para começar a avançar em direção a uma maior cooperação política e integração regional.
A Nuestra América deve promover uma estratégia multilateral multipolar e propor um programa mínimo com alguns pontos-chave baseados em iniciativas que foram delineadas nos últimos tempos: discutir conjuntamente as condições para a exploração dos seus recursos naturais estratégicos (a "OPEP do lítio", juntamente com uma empresa estatal latino-americana para explorá-la, seria um bom exemplo), avançar para uma moeda comum baseada na recente proposta de Lula, propor uma investigação e uma moratória conjunta sobre a dívida externa, avançar para uma política de saúde soberana - produzindo a nível regional, por por exemplo, algumas das vacinas cubanas contra a COVID - e, fundamentalmente, negociar em conjunto com intervenientes extra-regionais como os Estados Unidos, a União Europeia e a China. É a única forma de equilibrar minimamente as enormes assimetrias com os países mais desenvolvidos.
Na sexta-feira, 10 de junho, Biden encerrou a reunião de presidentes com a assinatura da "Declaração de Los Angeles" e algumas promessas muito limitadas de ajuda econômica para conter os migrantes e aumentar para 20.000 o número anual de refugiados que os Estados Unidos aceitarão. Na realidade, há uma militarização do problema, uma vez que os Estados Unidos pretendem agregar o México e a Colômbia como principais aliados não-OTAN, ou seja, subordiná-los à estratégia de Washington contra os outros pólos do poder global. No discurso oficial apareceram os habituais apelos à democracia, à segurança hemisférica, ao mercado livre, aos direitos humanos e ao investimento privado. Desta vez, porém, os Estados Unidos não conseguiram aplicar a Doutrina Monroe de "América para os (Norte) Americanos", que completará exatamente 200 anos no próximo ano.
E não só o fez a nível governamental, mas também, a partir de baixo, e intimamente relacionado com as lutas que estão fazendo recuar os governos neoliberais desde 2018, a articulação da resistência está crescendo. Não apenas se realizou a habitual contra Cúpula dos Povos em Los Angeles. Na Cidade do México, na semana passada, milhares de acadêmicos e ativistas se reuniram na Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais para pensar e debater como construir esse outro mundo possível.
No mesmo dia em que encerrou o conclave de líderes nos Estados Unidos, mais de 100 mil pessoas encheram o Zócalo da capital asteca para ouvir o cubano Silvio Rodríguez, no encerramento mais que simbólico do evento organizado pela CLACSO. Como destacou ali Álvaro García Linera, em diálogo com La Jornada:
Há, da América Latina aos Estados Unidos, perda de medo e até falta de respeito perante os poderosos. A idolatria e a submissão voluntária das elites políticas aos norte-americanos desapareceram. Era uma espécie de corrente mental que te prendia a mexer a cabeça sempre dizendo sim ao que os Estados Unidos diziam. Agora você não ouve. Você vai. Não vens. Você diz o que quiser. Os outros nos desprezam e perdemos o respeito por eles. O México liderou esse divórcio.
O fracasso da encenação imperial em Los Angeles abre grandes oportunidades para revigorar o multipolarismo e expandir as margens de autonomia da Nuestra América, que sob o domínio imperial continua a ser a região mais desigual do mundo, com mais de 200 milhões de pessoas pobres, segundo as Nações Unidas. Resta agora que as forças políticas e sociais progressistas, de esquerda e nacional-populares coloquem mais uma vez o projeto da Pátria Grande no horizonte das suas lutas.
Sobre o autor
Professor da Universidade de Buenos Aires, pesquisador do CONICET e co-coordenador do Grupo de Trabalho CLACSO "Estudos sobre os Estados Unidos".
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