18 de junho de 2022

América Latina seguirá irrelevante sem atuação em bloco, diz García Linera

Ex-vice boliviano afirma que líderes da nova onda rosa atuam mais como participantes do sistema político do que construtores de um novo

Mayara Paixão


Com formulações que influenciam diversos líderes latino-americanos, do conterrâneo Luis Arce ao chileno Gabriel Boric, o ex-vice-presidente da Bolívia Álvaro García Linera afirma que a atual onda de esquerda na região difere, e muito, da qual fez parte no início do século ao lado de Evo Morales.

Se, por um lado, ele diz haver hoje uma tendência a atuar mais como participante de um sistema político do que como construtor de um novo sistema, por outro a Guerra da Ucrânia apenas reforçou uma lição ignorada: sem atuar em bloco, não há chance de a América Latina cravar um lugar no xadrez geopolítico.

O ex-vice-presidente da Bolívia Álvaro García Linera durante evento no palácio presidencial, em La Paz. Créditos: David Mercado/Reuters

Ele falou à Folha por ​videochamada do México. Nesta segunda (20), ele estará no Salão do Livro Político, às 19h, no teatro Tucarena (rua Monte Alegre, 1.024, Perdizes), em São Paulo, evento do qual a Folha é parceira de mídia e que terá transmissão pelo YouTube. O salão vai até sábado (25).

Há uma semana, Jeanine Áñez foi condenada a dez anos de prisão devido à acusação de que tramou um golpe. Como viu este capítulo da história da Bolívia? Uma sentença necessária para proteger a democracia. Um grupo de pessoas sem apoio social e legitimidade eleitoral não pode se apoiar nas Forças Armadas para invalidar a Constituição e tomar o poder. Pensávamos que essas histórias haviam ficado nos anos 1960 e 1970, mas não. Houve uma ameaça à democracia e é importante uma resposta forte para garantir que ninguém usurpe a vontade popular ocupando o poder por vias não democráticas.

Organizações internacionais dizem que o sistema de Justiça boliviano tem sido alvo de interferências do poder. O Judiciário precisa de reformas? Esse é um problema no mundo todo. Há o mesmo tipo de queixa nos EUA, onde os membros da Suprema Corte são nomeados por um presidente. Não há mais intervenção política que isso. Na Bolívia fizemos uma série de reformas, e os juízes são eleitos por voto universal, mas não foi suficiente. É uma tarefa pendente das democracias contemporâneas.

Qual avaliação faz da maré rosa 2.0 na América Latina? É muito diferente da primeira, já que não vem da mão de grandes levantes ou de ações coletivas. Vem das mãos de governantes moderados, talvez com a exceção de [Gustavo] Petro. São governantes administrativos, menos propensos a grandes mudanças radicais. E isso não é um defeito, mas um sinal dos tempos. Eles tendem a atuar mais como participantes de um sistema político do que construtores de um novo sistema. Assim, não são portadores de um horizonte de longo prazo, são expressão de um momento de transição do qual possivelmente vai haver alternância contínua entre governos conservadores e progressistas.

Há uma crise antissistema na região? É um problema global, mas que se expressa mais intensamente aqui. Nos diziam que o livre mercado era uma determinação natural da humanidade, que o Estado era um mau administrador e que o mercado resolvia seus problemas: em 2020, sem dúvidas a economia teria caído não fosse o Estado. O antigo se mostra cada vez mais obsoleto, mas ninguém define o que será o novo, e, assim, o tempo se suspende. O que predomina é um estupor, um mal-estar coletivo.

Como define o papel latino-americano no xadrez geopolítico hoje? Irrelevante. O que me dá muita pena de dizer. E será muito mais irrelevante se não fizermos esforços desesperados para atuar como bloco. É um tempo no qual vivemos tensões, reacomodações políticas e redefinição de influências. A América Latina existe como um lugar passivo de disputas de outros, o que vai ser mais intenso se não tivermos uma ação conjunta. Nem digo para influenciar, mas para nos proteger desse esquartejamento planetário. E trata-se de acordos pontuais mínimos, em termos de segurança jurídica, segurança e transição energética.

Como vê a possibilidade de um golpe no Brasil? O Brasil é o maior país e o economicamente mais forte. Ainda que o Brasil não olhe muito para a América Latina, a região está atenta ao que se passa no país. Os riscos de uma interrupção democrática seriam catastróficos para o continente e para o mundo, porque pode soltar a rédea para que em outros lugares as forças antidemocráticas se sintam incentivadas.

Que avaliação faz da Cúpula das Américas capitaneada por Joe Biden? Foi um duplo fracasso. Primeiro, um fracasso de início: quais propostas foram lançadas antes do encontro? Nenhuma. O segundo fracasso é que não tenham ido seis presidentes da América Latina. Isso é uma medida de uma região que reconhece que os EUA já não são o grande timoneiro do seu destino.

E quais as consequências da Guerra da Ucrânia para os latino-americanos? Ambivalentes. Para os países que produzem energia e alimentos, a guerra está produzindo o aumento dos preços das exportações, assim terão mais ingressos e divisas. Será um ciclo de preços altos de commodities de longa duração.

Para os países que importam alimentos, energia ou fertilizantes, são problemas, justamente porque estão subindo os preços, e os Estados terão que destinar mais recursos para assegurar o abastecimento. Assim como te globalizam, te desglobalizam no dia seguinte. As regras do mundo mudaram de maneira drástica, e isso precisa levar os latino-americanos a pensar que o desenvolvimento continental tem que surgir a partir de reflexões próprias, não da imitação obtusa e ortodoxa de modelos que nos lançam do Norte.

Para vencer candidatos autoritários, diferentes alianças têm sido construídas entre setores tradicionais da esquerda e outros moderados, ou mesmo conservadores. Tivemos isso com Lula e Alckmin no Brasil. Como vê essas alianças? Há uma crescente divergência de elites políticas. Anos atrás, havia um consenso geral: todos concordavam que o mundo se encaminhava para uma economia de livre comércio e que era preciso reduzir o Estado e atender aos pobres, para que não houvesse levantes. Isso se quebrou.

Emergiu uma espécie de cansaço. Quando há declínio de algo, há setores e elites que buscam outras opções. Alguns buscam projetos de esquerda, de justiça social, e outros dizem que é preciso medidas autoritárias. E nessas buscas se ensaiam diferentes tipos de aliança, inverossímeis tempos atrás.

RAIO-X | ÁLVARO GARCÍA LINERA, 59

Matemático e cientista social, foi vice-presidente da Bolívia (2006-2019). Escreveu, entre outros livros, "A Potência Plebeia" (ed. Boitempo) e "O que É uma Revolução?" (ed. Expressão Popular) e é coautor do recém-lançado "Qual Horizonte: Hegemonia, Estado e Revolução Democrática" (ed. Autonomia Literária).

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