28 de junho de 2022

Como a esquerda está construindo a paz na Colômbia

Durante anos, o regime de direita da Colômbia colocou em risco o acordo de paz de 2016. Mas agora o primeiro presidente esquerdista do país se comprometeu com a plena implementação - incluindo a justiça econômica, o diálogo político e as demandas de paz por igualdade social.

Mariela Kohon


O candidato presidencial Gustavo Petro e sua candidata a vice-presidente Francia Marquez do Pacto Historico comemoram após o dia da eleição presidencial em 29 de maio de 2022 em Bogotá, Colômbia. (Guillermo Legaria / Getty Images)

Tradução / Em junho foram eleitos na Colômbia Gustavo Petro e Francia Marquez pelo Pacto Histórico (PH). Sua vitória é uma imenso avanço para a política progressista em toda a América Latina e seu significado na região não pode ser subestimado.

A Colômbia é às vezes referida como a “democracia mais antiga” da América Latina, geralmente por aqueles que não compreendem sua história complexa e violenta, ou por aqueles que têm um interesse direto em ocultá-la. Esta é a primeira vez que a Colômbia elege um governo de esquerda, que vem depois de uma longa e difícil luta para criar um espaço político progressista diante de décadas de repressão brutal sistemática.

Um legado de violência

Adifícil jornada até este ponto é melhor evidenciada pelo fato de que inúmeros candidatos presidenciais foram assassinados ao longo da história da Colômbia, desde Jorge Eliécer Gaitán em 1948 até Jaime Pardo Leal em 1987. Um partido político inteiro, a União Patriótica (UP) – fundada em 1985 durante uma longa insurgência armada, para dar vozes de esquerda a uma via democrática em busca de mudança – foi vítima de “genocídio político” entre seu início e 2018. A Jurisdição Especial para a Paz (conhecida pela sigla em espanhol JEP) – o tribunal de paz transitório criado pelo Acordo de Paz de 2016 – descobriu que 5.733 membros da UP foram assassinados nessa época.

A escala da repressão sofrida pela esquerda e pela sociedade civil não pode ser minimizada. Cerca de 3.000 sindicalistas foram assassinados. Mesmo após a assinatura do Acordo de Paz, mais de 1.300 mil ativistas políticos e sociais foram assassinados – 80 dos quais só este ano.

Francia Marquez vem do Sudoeste, do Distrito de Cauca na Colômbia, uma das regiões mais afetadas pelo conflito, com um número assombroso de líderes assassinados. Em seu discurso após as eleições, ela mesma, sobrevivente de uma tentativa de assassinato em 2019, prestou homenagem aos ativistas assassinados, agradecendo-lhes por “abrirem o caminho para o futuro, por semearem a resistência e a esperança”.

Esta eleição veio poucos dias antes de outro momento histórico para a Colômbia, no qual a Comissão da Verdade, um mecanismo criado pelo Acordo de Paz, divulgará seu relatório. Por todas estas razões, esta vitória deve ser vista em seu contexto histórico. E esse contexto histórico faz com que a eleição de Petro, ex-guerrilheiro e Márquez, uma líder de comunidades afro-colombianas, ativista ambiental e feminista, fortaleça especialmente aqueles que estão envolvidos no apoio à luta pela paz e justiça social no país.

A agitação de 2019-2020

Na história mais imediata, esta vitória só foi possível graças a uma luta mais determinada. Os protestos aconteceram em todo o país em uma escala sem precedentes em 2019 e 2020. Os jovens, os protagonistas desses protestos, ajudaram a quebrar os níveis históricos de abstenção nesta eleição: a participação foi de 58%, bem acima da média recente de 48%, refletindo a esperança renovada que o PH criou. A mãe de Dilan Cruz, um jovem assassinado pela polícia militar durante esses protestos, falou no comício da vitória de Petro e Márquez.

Embora tenha sido esta onda de ação popular que levou Petro e Márquez à vitória, a capacidade de construir alianças com o centro e partes da centro-direita também provou ser um fator importante, e será fundamental para a sobrevivência do governo.

Por exemplo, Petro obteve o apoio de figuras de alto nível da época de Juan Manuel Santos, o ex-presidente cujo o governo negociou o Acordo de Paz de 2016 com as FARC-EP. Estes políticos se tornaram importantes apoiadores de sua plataforma. Como resultado, nos dias seguintes a sua vitória, Petro renovou esforços para criar um “acordo nacional”, construindo um diálogo em todo o espectro político, inclusive convidando o ex-presidente de extrema-direita Álvaro Uribe a falar.

Marquez também desempenhou um papel crucial na mobilização de apoio ao PH entre os movimentos sociais de massa como a primeira vice-presidente negra em um país onde as comunidades negras e indígenas foram historicamente marginalizadas e desproporcionalmente afetadas pela desigualdade e exclusão sociopolítica. Ao receber suas credenciais como vice-presidente eleita, Marquez disse que isso em si foi um ato de justiça racial e justiça de gênero. Ela se comprometeu a fazer do combate à desigualdade racial estrutural e de gênero uma parte central do programa do PH para o governo e liderará um novo Ministério da Igualdade.

O Acordo de Paz

Omapa eleitoral mostra uma forte sobreposição entre aqueles que votaram em Petro e aqueles que votaram a favor do Acordo de Paz em 2016, tornando esse acordo um dos fatores cruciais para essa vitória histórica. No centro do acordo está o objetivo de criar um espaço democrático, abrindo a participação política e dando esperança à crença de que a Colômbia pode ser mudada por meios democráticos. Foi também este Acordo de Paz que abriu o caminho para a mobilização popular vista nas ruas entre 2019 e 2020.

Em sua essência, o conflito entre as FARC e o Estado colombiano – que o acordo buscava acabar – foi impulsionado pela terrível desigualdade da Colômbia e pela falta de espaço político para a oposição. O acordo, portanto, delineia importantes reformas estruturais para lidar com essas causas fundamentais. Mas muitos passos ainda precisam ser feitos para concretizar o acordo, prejudicado nos últimos 4 anos por uma sabotagem sistemática da extrema direita que se opõe ao processo.

Como resultado, o programa econômico da PH prioriza o desenvolvimento da produtividade doméstica em detrimento das indústrias puramente extrativistas, combatendo a desigualdade social através da reforma fiscal progressiva e protegendo o meio ambiente através da transição verde. Inclui a extensão dos serviços sociais como o acesso à saúde e à educação. A paz também depende da implementação da reforma agrária e da substituição de cultivos prevista no acordo a fim de corrigir a injustiça histórica no acesso à propriedade da terra, investindo no campo e dando aos camponeses opções além do cultivo da coca.

Petro se comprometeu em alcançar uma paz “completa”, tanto implementando o acordo de 2016 quanto abrindo negociações com as demais organizações guerrilheiras. O ELN, com quem o presidente Duque interrompeu as negociações em janeiro de 2018, já declarou sua disposição para entrar em diálogo. Outro grupo liderado por alguns ex-membros das FARC, que deixaram o processo atual desiludidos com seu processo, também fizeram uma declaração expressando esperança.

Desafios à frente

No entanto, Petro e sua ampla coalizão enfrentam enormes desafios. Apesar da disposição das demais forças de esquerda para entrar em diálogo, um teste fundamental para o novo governo será enfrentar os grupos paramilitares de direita e as organizações violentas de tráfico de drogas que ainda aterrorizam partes da Colômbia.

Nos últimos meses, vastas áreas do norte do país foram fechadas pelos grupos paramilitares do Clã do Golfo, faltando ao Estado a capacidade e talvez até mesmo a vontade de enfrentá-los. O Acordo de Paz inclui medidas para desmantelar esses grupos armados – responsáveis pelo assassinato de tantos líderes sociais – mas o próprio dia das eleições foi um lembrete sombrio da brutalidade enfrentada pelos militantes. Duas testemunhas eleitorais e militantes do PH, Roberto Rivas e Ersain Ramírez, foram mortos.

Ex-combatentes das FARC também são assassinados, com mais de 315 assassinatos desde que depuseram suas armas e cumpriram com suas obrigações no acordo de 2016. Outras organizações guerrilheiras precisarão ver resultados e ter certeza de que não arriscarão o mesmo destino.

Também será necessário fazer mudanças nas forças de segurança, já que o Exército e a polícia são responsáveis por algumas das piores atrocidades da Colômbia. Durante uma recente comitiva da Justiça para a Colômbia composta por sindicalistas e parlamentares britânicos, irlandeses e espanhóis, os defensores dos direitos humanos falaram da necessidade urgente de pôr um fim à doutrina militar de combate ao “inimigo interno”, que tem levado consistentemente a sociedade civil a se deparar com a violência do Estado. As greves e manifestações de 2019-20 levaram ao assassinato de 44 manifestantes pela polícia.

Quando nossa delegação viajou para Putumayo, no sul da Colômbia, ouvimos testemunhos assustadores de sobreviventes e parentes de vítimas de um massacre do Exército. Soldados haviam atirado em 11 civis em uma festa comunitária e depois os apresentaram como guerrilheiros dissidentes mortos em combate.

Este acontecimento fez lembrar o caso dos chamados “falsos positivos”, que viram soldados matarem 6.400 civis entre 2002 e 2008, e depois os apresentaram como guerrilheiros mortos em combate para inflar números e receber promoções e bônus. A reforma adequada das forças de segurança foi algo que o governo anterior não conseguiu incluir no Acordo de Paz final – portanto, esse é um grande desafio para o novo governo.

Aqueles justificadamente cheios de esperança por esta grande vitória também terão que controlar suas expectativas. Antes de 2016, o processo de paz dividiu o establishment, e nem todos os defensores de Petro são de esquerda. Como disse o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica em sua mensagem de felicitações ao povo colombiano, Petro “não pode fazer mágica”.

Sem uma maioria no Congresso, fazer as mudanças legislativas propostas exige que Petro continue a construir alianças, algo que ele já parece estar fazendo. Em seu discurso de vitória, ele deu um tom realista: “Vamos desenvolver o capitalismo”, disse Petro aos apoiadores, “não porque o amamos, mas porque primeiro temos que superar a pré-modernidade, o feudalismo… temos que criar uma democracia”. E com mandatos presidenciais que duram apenas quatro anos, fazer mudanças duradouras, incluindo organização e planejamento a longo prazo para o próximo governo, será crucial.

Uma mudança progressista

Reconhecendo os desafios futuros, Petro e Márquez desempenharão um papel importante consolidando uma nova onda de governos progressistas na América Latina. A mudança está em movimento em todo o continente: vimos a vitória socialista na Bolívia derrubando um golpe de extrema direita e a eleição de Gabriel Boric no Chile; a esperança está se consolidando com uma aparente vitória de Lula nas próximas eleições no Brasil, e uma série de outros governos de esquerda estão liderando o caminho da região.

Os efeitos desta mudança ainda não podem ser superestimados. A Colômbia é há muito tempo a principal base dos Estados Unidos na América Latina, um fiel aliado de Washington em suas relações hostis com a Venezuela e Cuba. Quando o regime de Duque se recusou a implementar acordos protocolares assinados no caso do fracasso das conversações de paz com o ELN, generosamente acolhido pelo governo cubano, estabeleceu-se um precedente perigoso para os processos de paz em todo o mundo.

Talvez surpreendentemente, então, dada a história de interferência sangrenta dos EUA e a falta de respeito pelos governos de esquerda democraticamente eleitos na América Latina, o governo Biden foi rápido em reconhecer Petro, com os dois falando apenas dias após o resultado. Petro também anunciou que conversou com o presidente venezuelano Maduro, e reabrirá a fronteira comum.

Mais amplamente, a comunidade internacional tem estado muito quieta por muito tempo em relação aos abusos ocorridos na Colômbia. A retórica hipócrita e inconsistente do governo britânico sobre os direitos humanos no exterior ficou exposta por sua atitude em relação à Colômbia, e os sindicatos britânicos e colombianos têm se manifestado em nossa oposição ao acordo de livre comércio Reino Unido-Colômbia. Para aqueles comprometidos com a paz e a justiça social na Colômbia, então, este é um momento entusiasmante e emocionante, e um momento que se propõe a aumentar o apoio a organizações como a Justiça para a Colômbia.

Talvez o mais crucial, agora, é o momento de prestar homenagem a todos aqueles que perderam suas vidas durante esta luta, que não estão mais conosco e que foram brutalmente silenciados no caminho. Há muitos com os quais gostaríamos de compartilhar este momento maravilhoso. Em vez disso, é em sua honra que celebramos o presente – e ansiamos por um futuro melhor e mais brilhante na Colômbia.

Colaboradora

Mariela Kohon é oficial internacional sênior do TUC, ex-assessora no processo de paz da Colômbia e vice-presidente de Justiça da Colômbia.

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