Em 1971, com o aborto na França ainda ilegal, 343 mulheres francesas se organizaram para declarar que haviam feito um. Foi um ato de desafio que quebrou tabus de longa data - e deve ser defendido hoje.
Vincent Chabany-Douarre
Manifestantes do Movimento de Libertação das Mulheres Francesas confrontam as forças de segurança em Paris em novembro de 1972, durante o julgamento de Chevalier. (AFP/Getty Images) |
Tradução / No outono de 1971, Marie-Claire Chevalier percebe que está grávida. Ela não quer esse filho: ela tem 16 anos, foi agredida sexualmente por um colega de classe e vem de uma família da classe trabalhadora com pouco dinheiro para subsistência. Mas em 1971, os abortos são ilegais na França, a menos que a vida de uma mulher esteja em perigo.
A mãe-solo de Marie Claire, Michèle, estica seu magro salário para conseguir um aborto clandestino à filha. O procedimento quase mata a jovem, mas ela sobrevive. Algumas semanas depois, Marie-Claire é presa, assim como Michèle. O estuprador de Marie-Claire, que foi pego roubando um carro e esperava aliviar sua sentença, a denunciou às autoridades.
O julgamento começa em 1972. As Chevaliers são representadas por Gisèle Halimi, que recentemente fora notícia por defender Djamila Boupacha, uma combatente da libertação argelina que foi torturada e agredida sexualmente por soldados franceses. Há muitas mulheres no julgamento, apoiando Marie-Claire e testemunhando em seu favor, explicando por que elas também fizeram abortos ilegais. Essas mulheres não têm nenhum problema em admitir o que continua sendo um ato criminoso: toda a nação já sabe que interromperam uma gravidez.
Quem são essas mulheres e por que seu aborto já era um assunto de registro público? Poucos meses antes do julgamento de Marie-Claire, elas faziam parte de um coletivo de 343 mulheres francesas, que foram à mídia para contar a toda a França que haviam feito um aborto. Ao fazer isso, elas se denunciaram como criminosas e incitaram um Estado abusivo a puni-las. Mas, mesmo assim, elas venceram.
Embora o aborto na França tenha sido proibido no século XVI, a aplicação rigorosa da lei só começou com a Primeira Guerra Mundial. A guerra devastou a França e, com uma série de políticas nativistas, os políticos franceses procuraram reconstruir a população do país. Assim, em 1920, 314 deputados, todos homens, eleitos por um corpo eleitoral exclusivamente masculino, decidiram que qualquer mulher considerada culpada por fazer um aborto seria punida com três anos de prisão e uma pesada multa de 5.000 francos.
Essa repressão chegaria ao clímax na década de 1940. O hiperconservador regime ditatorial de Vichy encorajou avidamente a denúncia e a vigilância. No chão de fábrica, em leitos de hospital, nas ruas de suas próprias aldeias: nenhum lugar era seguro para as mulheres que procuravam interromper uma gravidez indesejada. Em 1940, 1.255 mulheres foram consideradas culpadas pelos tribunais franceses por terem feito um aborto, o dobro do registrado em 1938. Em 1944, em média, mais de dez mulheres foram condenadas todos os dias por essa acusação.
Embora o período do pós-guerra tenha marcado o fim de anos de dificuldades econômicas e lutas, ele trouxe pouco apetite por mudanças radicais. O aborto ainda era um tabu vergonhoso. Uma lei de 1955 permitia aos médicos interromper a gravidez apenas se a vida de uma mulher estivesse em perigo significativo, mas uma reação liderada pelos católicos ameaçou que houvesse mais progressos. A pílula anticoncepcional tornou-se disponível em 1967, mas as mulheres com menos de 21 anos precisavam da aprovação por escrito de seus pais. As únicas áreas onde o aborto e a contracepção foram relaxados foram Guadalupe, Martinica e La Réunion, onde pânicos racistas sobre o crescimento populacional levaram o Estado a abrandar a lei de 1920.
E, no entanto, algo estava se formando. Os protestos de 1968, nas palavras do jornalista Patrick Rotman, impulsionaram a França do século XIX ao XX. Nesse período, o feminismo encontrou novo vigor e, em 1970, nasceu o Mouvement de Libération des Femme (MLF) [em tradução livre Movimento de Libertação das Mulheres]. O MLF não estava interessado em concessões: elas protestaram, agitaram através de rádios e meios de comunicação franceses como Elle, e jogaram carne crua em líderes anti-aborto.
Mesmo com toda a proibição, o aborto não havia desaparecido. Mulheres ricas foram para a Inglaterra, Holanda e Suíça. Mulheres pobres faziam abortos clandestinos na França. O procedimento era muitas vezes traumático. A atriz Bulle Ogier, em sua autobiografia J’ai Oublié [Eu Esqueci, em tradução livre], conta como sua amiga quase morreu de sepse depois de interromper uma gravidez com uma agulha de tricô. Quando Ogier fez um aborto, ela foi agredida sexualmente pelo médico que o fez. O mesmo aconteceu com a cantora Brigitte Fontaine, no final da década de 1950, durante seu segundo aborto. Quanto à sua primeira interrupção de gravidez em 1956, Fontaine recebeu instruções claras: se algo der errado, não volte. Durante duas semanas, ela se automedicou com uísque para uma febre de 41 graus. Em 1958, Nadine Trintignant, a famosa diretora, conseguiu o dinheiro emprestado e foi para a Suíça: o médico a chamou de prostituta.
Essas histórias eram como segredos, sussurradas em círculos íntimos, mas nunca divulgadas na esfera pública. Isto, até 1971, quando o MLF foi abordada pela jornalista do Nouvel Observateur, Nicole Muchnik. Muchnik e seu editor-chefe queriam que as famosas integrantes da MLF anunciassem publicamente seus abortos. Eles argumentaram que, se figuras públicas respeitadas como Catherine Deneuve ou Françoise Sagan se manifestassem, quebrariam o tabu sobre o aborto e influenciariam a opinião pública – e o silêncio finalmente terminaria.
Esta era uma proposta perigosa. Embora as prisões por aborto fossem menos comuns do que na década de 1940, elas ainda eram frequentes. 289 mulheres foram condenadas por terem feito aborto em 1960, 720 em 1966 e 340 em 1970. Mas o manifesto também era cheio de potencial. Essas prisões prosperaram no silêncio e na vergonha. O aborto só acontecia com “pessoas estranhas”, com “mulheres más”. Se as mulheres do MLF se mantivessem juntas, o Estado francês teria uma escolha: prender essas celebridades amadas ou reconhecer a crueldade de suas leis.
A reação no MLF não foi unânime. A socióloga Christine Delphy deu as boas-vindas ao plano, mas participantes da base do MLF estavam relutantes. Eles não gostavam da ideia de fazer uma aliança com a imprensa burguesa e relutavam em fazer das mulheres ricas as figuras de proa de um movimento onde as mulheres pobres mais sofriam. Eventualmente, o MLF concordou, mas a lista teria que incluir muito mais do que apenas celebridades. Também apresentaria ativistas do MLF, de todas as idades, de todas as classes. Algumas seriam nomeadas, outras permaneceriam anônimas. Eles usariam as famosas assinaturas como escudos. Antecipando a reação, a advogada Gisèle Halimi fundou o Choisir, um grupo de ação, para defendê-las.
O manifesto foi escrito coletivamente no apartamento de Simone De Beauvoir em Paris. Agnès Varda assinou, assim como a física nuclear Annie Sugier, a tradutora Emmanuelle de Lesseps e a filósofa Monique Wittig, entre outras. Algumas, como a jornalista Yvette Roudy, colocaram o nome sem ter feito um aborto, por solidariedade.
Em 5 de abril de 1971, a capa do Nouvel Observateur dizia, em letras maiúsculas sobre fundo preto:
A lista das 343 francesas que tiveram a coragem de assinar o manifesto “EU FIZ UM ABORTO”.
Um pequeno texto explicava que um milhão de mulheres na França faziam abortos todos os anos, em condições perigosas. O manifesto exigia abortos livres e seguros e afirmava que cada signatária havia infringido a lei ao fazer um aborto.
Nenhuma das mulheres foi presa. Ainda assim, muitas pagaram por terem falado sobre seus abortos. Segundo Claudine Monteil, a signatária mais jovem, algumas perderam o emprego. Algumas foram ameaçadas. Algumas foram alijadas por suas famílias. A mãe de Claudine era uma acadêmica de renome, uma mulher educada e com visão de futuro. Mas quando ela leu o nome de sua filha naquela lista, durante uma viagem de trem, ela caiu em prantos na frente dos outros passageiros. Ela pensou que a vida de Claudine tinha acabado.
Mas Claudine não se arrependeu. Ao longo de quarenta e oito horas, o aborto passou de um segredo indescritível a uma palavra no rádio, falada em jantares de família em toda a França. Algo palpável havia mudado. Como observou a historiadora Bibia Pavard, pela primeira vez na história francesa, foram as mulheres que lideraram a conversa sobre o aborto e o enquadraram como um ato de libertação e autonomia. Mais tarde naquele ano, a revista alemã Stern publicou uma carta onde 374 mulheres alemãs, incluindo a atriz Romy Schneider, fizeram a mesma declaração. Médicos e ginecologistas franceses posteriormente publicaram cartas reconhecendo que haviam realizado a operação.
O manifesto influenciou a opinião pública durante o julgamento de Marie-Claire em 1972 e o juiz absolveu a jovem. O terceiro ato do manifesto veio alguns anos depois: em 1975, o governo francês aprovou a primeira lei do país legalizando o aborto. Foi um primeiro passo tímido. As mulheres elegíveis tinham que estar “em perigo”, receber aconselhamento médico e pagar do próprio bolso. Mas foi um marco – uma pequena chama, acesa pela faísca das 343 mulheres que deram um passo à frente em 1971.
Em 1974, Claudine Monteil, a mais jovem das 343, disse a Simone de Beauvoir que elas haviam vencido. Beauvoir a advertiu: uma crise e os direitos das mulheres seriam derrubados. Durante toda a sua vida, disse Beauvoir à Claudine, você deve permanecer vigilante.
Quando os Estados Unidos revogaram Roe v. Wade em junho de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron imediatamente anunciou sua intenção de consagrar o aborto na Constituição francesa. A esquerda francesa já havia proposto essa ideia em julho de 2018. Mas o partido do presidente, então maioria na assembleia francesa, votou contra. Vários membros do gabinete de Macron foram acusados de agressão sexual. Alguns de seus principais aliados, como o deputado Eric Woerth, expressaram recentemente que, ao formar uma coalizão na Assembleia Francesa, o partido do presidente preferiria trabalhar com a extrema direita do que com a esquerda.
Por isso, precisamos permanecer vigilantes.
Sobre o autor
Vincent Chabany-Douarre é historiador. Ele aponta a necessidade urgente de que suas leitoras e leitores doem à Brigid Alliance (em tradução livre Aliança Brígida) e à National Network of Abortion Funds (em tradução livre, Fundo Nacional de Redes de Apoio ao Aborto).
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