Reinaldo José Lopes
Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros
Foha de S.Paulo
[RESUMO] Autor de "O Despertar de Tudo", livro sensação sobre a história da humanidade, o arqueólogo britânico David Wengrow diz em entrevista que outros best-sellers sobre o mesmo tema, como "Sapiens", de Yuval Noah Harari, estão defasados e repletos de erros. Ele também defende que estudos na Amazônia terão papel fundamental para entender a origem das civilizações. Wengrow fará palestras em São Paulo (2/10) e Porto Alegre (4/10), na programação do Fronteiras do Pensamento.
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O arqueólogo britânico David Wengrow, 50, tomou um susto quando se preparava para escrever seu mais recente livro, "O Despertar de Tudo", uma ambiciosa história das sociedades humanas produzida em parceria com o antropólogo americano David Graeber (que morreu em 2020, antes de a obra ser lançada).
Para ver como o tema andava sendo tratado em obras para o público leigo, os dois se puseram a folhear best-sellers como "Sapiens", do historiador israelense Yuval Noah Harari, e não gostaram nada do que viram.
Para ver como o tema andava sendo tratado em obras para o público leigo, os dois se puseram a folhear best-sellers como "Sapiens", do historiador israelense Yuval Noah Harari, e não gostaram nada do que viram.
O arqueólogo David Wengrow, autor de "O Despertar de Tudo" - @davidwengrow no twitter |
"O que notamos, para nosso horror, foi que esses livros simplesmente ignoram o que se descobriu nos nossos campos de estudo, a arqueologia e a antropologia, ao longo de várias gerações", diz ele.
Com entusiasmo iconoclasta, "O Despertar de Tudo" busca demolir muitas das premissas de "Sapiens" e seus antecessores.
Segundo o livro, mesmo antes da invenção da agricultura, já havia muita complexidade e diversidade sociopolítica entre os seres humanos; as primeiras sociedades agrícolas e as mais antigas cidades tinham organização relativamente igualitária e democrática, sem necessidade de monarcas e sumos sacerdotes; e o próprio Iluminismo europeu teria se inspirado no ceticismo e igualitarismo de povos indígenas na sua crítica ao Antigo Regime.
Wengrow, que vem ao Brasil em outubro para participar do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, disse à Folha que os estudos arqueológicos recentes na Amazônia terão papel fundamental para montar esse novo e mais fidedigno quadro da origem das civilizações.
Com entusiasmo iconoclasta, "O Despertar de Tudo" busca demolir muitas das premissas de "Sapiens" e seus antecessores.
Segundo o livro, mesmo antes da invenção da agricultura, já havia muita complexidade e diversidade sociopolítica entre os seres humanos; as primeiras sociedades agrícolas e as mais antigas cidades tinham organização relativamente igualitária e democrática, sem necessidade de monarcas e sumos sacerdotes; e o próprio Iluminismo europeu teria se inspirado no ceticismo e igualitarismo de povos indígenas na sua crítica ao Antigo Regime.
Wengrow, que vem ao Brasil em outubro para participar do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, disse à Folha que os estudos arqueológicos recentes na Amazônia terão papel fundamental para montar esse novo e mais fidedigno quadro da origem das civilizações.
Seu livro faz críticas muito fortes a best-sellers que abordam temas similares, em especial obras como "Sapiens", de Yuval Harari, e "Armas, Germes e Aço", de Jared Diamond. O sr. acha que esses livros chegam a ser um desserviço para o leitor que está começando a se informar sobre o passado profundo da humanidade? É preciso jogar fora as fundações em cima das quais esses livros foram escritos. Então, por assim dizer, é necessário que aconteça uma espécie de exercício de filtragem, no qual vamos permitir que, pela primeira vez, todos esses dados, toda essa informação científica que se acumulou nas últimas décadas, finalmente sejam usados.
Quero dizer, quando David [Graeber] e eu decidimos escrever "O Despertar de Tudo", uma das coisas que nos motivou foi dar uma olhada no tipo de livro que você mencionou, que, durante muito tempo, foi a parada inicial de todo mundo que queria absorver um quadro rápido da história humana.
E o que nós notamos, para nosso horror, foi que esses livros simplesmente ignoram o que se descobriu nos nossos campos de estudo, a arqueologia e a antropologia, ao longo de várias gerações. Ou seja, o que quer que você ache dos argumentos gerais dessas obras, dos métodos estatísticos ou sei lá o quê, essa abordagem deles não é uma maravilha. Não é uma coisa boa.
Nem é necessariamente culpa deles, porque esses autores são todos excelentes escritores, mas vêm de outras áreas. [Steven] Pinker é, claro, um psicólogo. Creio que Harari se especializou em história medieval. Diamond fez doutorado em fisiologia e é ornitólogo...
Então, a culpa é nossa. Quero dizer, nosso trabalho é fazer arqueologia e antropologia. É o nosso arroz com feijão, e é culpa das nossas disciplinas que tenhamos sido tão ruins em explicar para as pessoas o que andamos descobrindo, já que está tudo trancado nesses periódicos científicos de acesso pago ou em conferenciazinhas acadêmicas.
Então nós, em parte, em um nível muito simples, só queríamos escrever algo que ajudasse as pessoas a se atualizarem, mas esse processo, é claro, também retira as fundações de algumas narrativas muito antigas e familiares sobre o curso da história humana.
E eu acho que não há como voltar atrás. Quero dizer, o coelho já saiu da cartola. Posso estar errado, mas não consigo imaginar que veremos outro best-seller sobre a história humana que comece dizendo: "Era uma vez um mundo onde todos nós vivíamos em pequenos bandos igualitários. Aí a Revolução Agrícola aconteceu e tudo deu terrivelmente errado, e aí apareceram as cidades e as hierarquias". Se conseguirmos acabar com isso, vou ficar bastante feliz com o resultado.
Quero dizer, temos outros objetivos no livro, mas já me contento se conseguirmos acabar com isso. Com base no fato de que, primeiro, não é algo que as evidências apoiam, e, em segundo lugar, é um tédio, é algo que já ouvimos 1 milhão de vezes e que traz uma série de implicações políticas interessantes e bastante sérias, as quais continuam sendo repetidas, mas são essencialmente mitos.
No livro, os srs. criticam a comparação entre os grandes símios, como chimpanzés, e os primeiros seres humanos. Não haveria nada a se aprender de valioso a partir dessa comparação, na sua opinião? É, eu me lembro da frase à qual você se refere. Talvez não seja o caso de levá-la muito a sério. Estávamos só nos divertindo um pouco com a referência. Creio que é no livro de Harari que há uma descrição dos tipos possíveis de sociedades de caçadores-coletores, e ele diz algo como "Eles podiam ser tão gentis quanto bonobos [espécie de chimpanzé considerada muito pacífica] ou tão agressivos quanto gorilas".
Não é só Harari que escreve esse tipo de coisa, é claro, mas é o caso de se perguntar por que, quando esses autores abordam sociedades humanas muito antigas, acabam falando delas desse jeito tão estranho, como se não fossem pessoas de verdade.
Acho que há muito a se aprender com a comparação entre diferentes espécies de primatas e de animais, mas não acho que seja disso que estamos falando nessa passagem. Nossa crítica se refere a uma abordagem preguiçosa que, essencialmente, usa uma espécie de simplificação para falar das sociedades humanas primitivas, e que, no fim das contas, acaba retratando-as como se fossem burras.
O livro discute como populações nativas da Amazônia, como os nambikwaras, eram capazes de se revezar entre organizações sociais mais móveis e mais sedentárias, mais e menos hierárquicas, de acordo com a época do ano, e aponta que esse processo pode ter raízes muito antigas. Ao mesmo tempo, a obra aponta que as últimas décadas de pesquisa revelaram indícios de povoamentos extensos, com população numerosa e monumentos na Amazônia pré-colombiana. Haveria alguma contradição entre as duas coisas? O modo de vida mais flexível dos nambikwaras e outros grupos não poderia ser algo "pós-apocalíptico", surgindo apenas depois do morticínio ocasionado pela chegada dos europeus? O que nós estamos descobrindo é que existe uma história nessa região. E ela pode ser uma história de contradições e paradoxos. Da mesma maneira, é o que vemos nas sociedades indígenas da América do Norte, as quais, em algum momento mais de 600 anos atrás, na bacia do rio Mississipi, eram altamente centralizadas em torno dessa grande cidade antiga conhecida como Cahokia.
Mas, como tentamos descrever no livro, o que os europeus descobriram quando começaram a chegar àquelas áreas, a partir do século 16, foram formas completamente diferentes de sociedade, que tinham deixado tudo aquilo para trás e talvez tenham se definido por oposição ou rejeição ao que tinha existido antes.
Nos anos 1960, um famoso antropólogo chamado Pierre Clastres fez justamente essa pergunta sobre a Amazônia: por que é que tantas dessas sociedades parecem estar constituídas de forma que quase antecipa a possibilidade do Estado, ou de algum tipo de autoridade centralizada, e essa antecipação é algo tão vívido que eles são capazes de projetar sua própria sociedade como uma espécie de imagem negativa do Estado. Então, de onde vem essa imagem?
Nos anos 1960, é claro, as pessoas não sabiam praticamente nada sobre todas essas novas evidências que estamos obtendo nos últimos tempos, a partir de sensoriamento remoto e de todo o trabalho feito na bacia do rio Xingu, entre outras coisas. Mas claramente há uma história de grandes centros ali.
Pessoalmente, não acho que já saibamos o suficiente para dizer como esses centros estavam organizados. Mas não vejo isso como uma contradição, mas como uma evidência de que existe uma história profunda ali, que por enquanto compreendemos muito pouco.
De todo modo, uma coisa que podemos dizer com certeza é que se trata de algo completamente diferente da maneira como essas sociedades tradicionalmente foram imaginadas —como sociedades que sempre fizeram a mesma coisa, vivendo em espécie de estado natural inalterado desde o despertar dos tempos.
E uma das razões que me deixam tão empolgado para visitar o Brasil neste ano é que eu acho que ele talvez seja um dos países do mundo em que, apesar de todas as reviravoltas políticas e econômicas, está acontecendo mais progresso em encaixar as evidências sobre o passado humano profundo com os estudos antropológicos e etno-históricos mais recentes, de maneira que eles comecem a dialogar entre si.
Isso tem potencial para transformar não apenas nossa compreensão da história, mas também nossa compreensão sobre a própria ecologia da região. Há, por exemplo, a questão da chamada terra preta de índio, que é esse solo escuro da Amazônia, muito fértil, sendo compreendido como um solo produzido pelos seres humanos.
Isso reescreve não só a história social da região, mas também a de ambientes que eram considerados simplesmente naturais, e não são. Creio que o Brasil, de muitas maneiras, está liderando esse tipo de pesquisa.
Tudo isso significa que, no geral, talvez as condições nas Américas facilitassem mais a resistência das populações aos processos de controle e hierarquia que geraram Estados e impérios do que na Eurásia, por exemplo? Acho que depende muito do lugar específico que você examina. Nós não tentamos romantizar as Américas. Isso vale não só para os grandes impérios, como o dos astecas e incas, mas também para sociedades menores que praticavam a escravização e conviviam com guerras endêmicas, entre outras mazelas.
O que você menciona se encaixa melhor, por exemplo, com certos grupos encontrados por colonos franceses e missionários jesuítas no que os antropólogos chamam de Florestas Orientais da América do Norte. Essas sociedades, de fato, parecem ter contado com um sistema de direitos para as mulheres e formas de democracia participativa que impressionaram muitos observadores europeus.
O que argumentamos é que essas características não estão presentes porque esses povos viviam nas Américas, mas porque eles passaram por uma história de hierarquias contras as quais se voltaram e depois produziram algo diferente. Então se trata de uma questão de grupos específicos, histórias específicas e um ponto específico do tempo no qual essas civilizações colidiram.
Até que ponto isso faz com que seja inútil tentar encontrar fatores que expliquem por que os Estados europeus acabaram atuando como um rolo compressor contra as populações nativas nas Américas, na Oceania e em outros lugares? As vítimas desses processos não tiveram problema nenhum em identificar como esse processo aconteceu. Em parte, claro, é algo que teve a ver com o espalhamento de doenças infecciosas, mas o que teve um papel igualmente importante ou ainda mais importante foi a violência organizada e, em muitos casos, genocídio calculado.
Acho que parte do problema de narrativas como a que celebrizou Jared Diamond em "Armas, Germes e Aço" é que elas sublimam uma boa parte dessa violência.
Quando livros como o dele nos dizem que os processos históricos dos últimos 500 anos são, na verdade, apenas o ápice natural dos últimos 5.000 anos, da Revolução Agrícola do Neolítico no Oriente Médio há 10 mil anos, você acaba criando o que, para nós, é uma perspectiva falsa sobre a história humana —que tem o efeito infeliz de naturalizar grande parte dessa violência muito mais moderna.
FRONTEIRAS DO PENSAMENTO - 17ª TEMPORADA
Quando De 29/05 a 4/10 Onde São Paulo e Porto Alegre Mais informações fronteiras.com
O DESPERTAR DE TUDO: UMA NOVA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
Quero dizer, quando David [Graeber] e eu decidimos escrever "O Despertar de Tudo", uma das coisas que nos motivou foi dar uma olhada no tipo de livro que você mencionou, que, durante muito tempo, foi a parada inicial de todo mundo que queria absorver um quadro rápido da história humana.
E o que nós notamos, para nosso horror, foi que esses livros simplesmente ignoram o que se descobriu nos nossos campos de estudo, a arqueologia e a antropologia, ao longo de várias gerações. Ou seja, o que quer que você ache dos argumentos gerais dessas obras, dos métodos estatísticos ou sei lá o quê, essa abordagem deles não é uma maravilha. Não é uma coisa boa.
Nem é necessariamente culpa deles, porque esses autores são todos excelentes escritores, mas vêm de outras áreas. [Steven] Pinker é, claro, um psicólogo. Creio que Harari se especializou em história medieval. Diamond fez doutorado em fisiologia e é ornitólogo...
Então, a culpa é nossa. Quero dizer, nosso trabalho é fazer arqueologia e antropologia. É o nosso arroz com feijão, e é culpa das nossas disciplinas que tenhamos sido tão ruins em explicar para as pessoas o que andamos descobrindo, já que está tudo trancado nesses periódicos científicos de acesso pago ou em conferenciazinhas acadêmicas.
Então nós, em parte, em um nível muito simples, só queríamos escrever algo que ajudasse as pessoas a se atualizarem, mas esse processo, é claro, também retira as fundações de algumas narrativas muito antigas e familiares sobre o curso da história humana.
E eu acho que não há como voltar atrás. Quero dizer, o coelho já saiu da cartola. Posso estar errado, mas não consigo imaginar que veremos outro best-seller sobre a história humana que comece dizendo: "Era uma vez um mundo onde todos nós vivíamos em pequenos bandos igualitários. Aí a Revolução Agrícola aconteceu e tudo deu terrivelmente errado, e aí apareceram as cidades e as hierarquias". Se conseguirmos acabar com isso, vou ficar bastante feliz com o resultado.
Quero dizer, temos outros objetivos no livro, mas já me contento se conseguirmos acabar com isso. Com base no fato de que, primeiro, não é algo que as evidências apoiam, e, em segundo lugar, é um tédio, é algo que já ouvimos 1 milhão de vezes e que traz uma série de implicações políticas interessantes e bastante sérias, as quais continuam sendo repetidas, mas são essencialmente mitos.
No livro, os srs. criticam a comparação entre os grandes símios, como chimpanzés, e os primeiros seres humanos. Não haveria nada a se aprender de valioso a partir dessa comparação, na sua opinião? É, eu me lembro da frase à qual você se refere. Talvez não seja o caso de levá-la muito a sério. Estávamos só nos divertindo um pouco com a referência. Creio que é no livro de Harari que há uma descrição dos tipos possíveis de sociedades de caçadores-coletores, e ele diz algo como "Eles podiam ser tão gentis quanto bonobos [espécie de chimpanzé considerada muito pacífica] ou tão agressivos quanto gorilas".
Não é só Harari que escreve esse tipo de coisa, é claro, mas é o caso de se perguntar por que, quando esses autores abordam sociedades humanas muito antigas, acabam falando delas desse jeito tão estranho, como se não fossem pessoas de verdade.
Acho que há muito a se aprender com a comparação entre diferentes espécies de primatas e de animais, mas não acho que seja disso que estamos falando nessa passagem. Nossa crítica se refere a uma abordagem preguiçosa que, essencialmente, usa uma espécie de simplificação para falar das sociedades humanas primitivas, e que, no fim das contas, acaba retratando-as como se fossem burras.
O livro discute como populações nativas da Amazônia, como os nambikwaras, eram capazes de se revezar entre organizações sociais mais móveis e mais sedentárias, mais e menos hierárquicas, de acordo com a época do ano, e aponta que esse processo pode ter raízes muito antigas. Ao mesmo tempo, a obra aponta que as últimas décadas de pesquisa revelaram indícios de povoamentos extensos, com população numerosa e monumentos na Amazônia pré-colombiana. Haveria alguma contradição entre as duas coisas? O modo de vida mais flexível dos nambikwaras e outros grupos não poderia ser algo "pós-apocalíptico", surgindo apenas depois do morticínio ocasionado pela chegada dos europeus? O que nós estamos descobrindo é que existe uma história nessa região. E ela pode ser uma história de contradições e paradoxos. Da mesma maneira, é o que vemos nas sociedades indígenas da América do Norte, as quais, em algum momento mais de 600 anos atrás, na bacia do rio Mississipi, eram altamente centralizadas em torno dessa grande cidade antiga conhecida como Cahokia.
Mas, como tentamos descrever no livro, o que os europeus descobriram quando começaram a chegar àquelas áreas, a partir do século 16, foram formas completamente diferentes de sociedade, que tinham deixado tudo aquilo para trás e talvez tenham se definido por oposição ou rejeição ao que tinha existido antes.
Nos anos 1960, um famoso antropólogo chamado Pierre Clastres fez justamente essa pergunta sobre a Amazônia: por que é que tantas dessas sociedades parecem estar constituídas de forma que quase antecipa a possibilidade do Estado, ou de algum tipo de autoridade centralizada, e essa antecipação é algo tão vívido que eles são capazes de projetar sua própria sociedade como uma espécie de imagem negativa do Estado. Então, de onde vem essa imagem?
Nos anos 1960, é claro, as pessoas não sabiam praticamente nada sobre todas essas novas evidências que estamos obtendo nos últimos tempos, a partir de sensoriamento remoto e de todo o trabalho feito na bacia do rio Xingu, entre outras coisas. Mas claramente há uma história de grandes centros ali.
Pessoalmente, não acho que já saibamos o suficiente para dizer como esses centros estavam organizados. Mas não vejo isso como uma contradição, mas como uma evidência de que existe uma história profunda ali, que por enquanto compreendemos muito pouco.
De todo modo, uma coisa que podemos dizer com certeza é que se trata de algo completamente diferente da maneira como essas sociedades tradicionalmente foram imaginadas —como sociedades que sempre fizeram a mesma coisa, vivendo em espécie de estado natural inalterado desde o despertar dos tempos.
E uma das razões que me deixam tão empolgado para visitar o Brasil neste ano é que eu acho que ele talvez seja um dos países do mundo em que, apesar de todas as reviravoltas políticas e econômicas, está acontecendo mais progresso em encaixar as evidências sobre o passado humano profundo com os estudos antropológicos e etno-históricos mais recentes, de maneira que eles comecem a dialogar entre si.
Isso tem potencial para transformar não apenas nossa compreensão da história, mas também nossa compreensão sobre a própria ecologia da região. Há, por exemplo, a questão da chamada terra preta de índio, que é esse solo escuro da Amazônia, muito fértil, sendo compreendido como um solo produzido pelos seres humanos.
Isso reescreve não só a história social da região, mas também a de ambientes que eram considerados simplesmente naturais, e não são. Creio que o Brasil, de muitas maneiras, está liderando esse tipo de pesquisa.
Tudo isso significa que, no geral, talvez as condições nas Américas facilitassem mais a resistência das populações aos processos de controle e hierarquia que geraram Estados e impérios do que na Eurásia, por exemplo? Acho que depende muito do lugar específico que você examina. Nós não tentamos romantizar as Américas. Isso vale não só para os grandes impérios, como o dos astecas e incas, mas também para sociedades menores que praticavam a escravização e conviviam com guerras endêmicas, entre outras mazelas.
O que você menciona se encaixa melhor, por exemplo, com certos grupos encontrados por colonos franceses e missionários jesuítas no que os antropólogos chamam de Florestas Orientais da América do Norte. Essas sociedades, de fato, parecem ter contado com um sistema de direitos para as mulheres e formas de democracia participativa que impressionaram muitos observadores europeus.
O que argumentamos é que essas características não estão presentes porque esses povos viviam nas Américas, mas porque eles passaram por uma história de hierarquias contras as quais se voltaram e depois produziram algo diferente. Então se trata de uma questão de grupos específicos, histórias específicas e um ponto específico do tempo no qual essas civilizações colidiram.
Até que ponto isso faz com que seja inútil tentar encontrar fatores que expliquem por que os Estados europeus acabaram atuando como um rolo compressor contra as populações nativas nas Américas, na Oceania e em outros lugares? As vítimas desses processos não tiveram problema nenhum em identificar como esse processo aconteceu. Em parte, claro, é algo que teve a ver com o espalhamento de doenças infecciosas, mas o que teve um papel igualmente importante ou ainda mais importante foi a violência organizada e, em muitos casos, genocídio calculado.
Acho que parte do problema de narrativas como a que celebrizou Jared Diamond em "Armas, Germes e Aço" é que elas sublimam uma boa parte dessa violência.
Quando livros como o dele nos dizem que os processos históricos dos últimos 500 anos são, na verdade, apenas o ápice natural dos últimos 5.000 anos, da Revolução Agrícola do Neolítico no Oriente Médio há 10 mil anos, você acaba criando o que, para nós, é uma perspectiva falsa sobre a história humana —que tem o efeito infeliz de naturalizar grande parte dessa violência muito mais moderna.
FRONTEIRAS DO PENSAMENTO - 17ª TEMPORADA
Quando De 29/05 a 4/10 Onde São Paulo e Porto Alegre Mais informações fronteiras.com
O DESPERTAR DE TUDO: UMA NOVA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
Preço R$ 119,90 (696 págs.); R$ 49,90 (ebook) Autoria David Graeber e David Wengrow Editora Companhia das Letras Tradução Claudio Marcondes e Denise Bottmann
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