Hamza Shehryar
Jacobin
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O sargento da Força Aérea dos EUA Ryan Propst (centro) joga Call of Duty com um pequeno grupo de militares no lounge United Service Organizations no Kandahar Air Field em 8 de dezembro de 2010, em Kandahar, Afeganistão. (Paula Bronstein / Getty Images) |
Enquanto um helicóptero circunda a paisagem afegã infindável, um homem alto, musculoso e sem camisa se agacha atrás de um pico escarpado, montando cuidadosamente uma flecha afiada e seu arco. De repente, ele emerge, fazendo contato visual com um piloto soviético aterrorizado. Sua flecha atravessa o helicóptero, que explode em chamas — para o deleite dos estadunidenses em todos os lugares. Deleite, por quê? Porque eles acabaram de assistir a uma das cenas de ação mais memoráveis de Hollywood. Sylvester Stallone derrotou um invasor soviético assassino e saqueador em Rambo III. É uma sequência emocionante e um lembrete de que a liberdade e a liberdade sempre prevalecerão sobre o mal, não importa as probabilidades.
Embora essa cultuada cena ressurja regularmente nas redes sociais, o contexto da trama é menos conhecido. Em Rambo III, Rambo luta contra os invasores ao lado de seus irmãos mujahideen — ou como são mais conhecidos hoje, o Talibã.
Celebrar o Talibã em um blockbuster de ação pode parecer estranho agora, mas era normal naquele tempo. O enredo refletia diretamente as realidades políticas da época, quando o exército dos EUA treinava os mujahideen para lutar contra o exército soviético invasor.
Rambo III foi apenas um dos muitos filmes de propaganda produzidos por Hollywood durante a Guerra Fria. E não é uma relíquia como gostaríamos de pensar. O complexo de entretenimento militar é tão robusto hoje, com um vasto número de filmes e videogames americanos projetados para promover a ideologia imperialista estadunidense — frequentemente com o apoio dos próprios militares.
Propaganda hollywoodiana contra a ameaça vermelha durante a Guerra Fria
No jogo de tabuleiro Hollywood 1947, de Holly Hightower e Travis Hancock, lançado no ano passado, os jogadores são secretamente divididos em duas equipes: “Patriotas” ou “Comunistas”. No jogo, eles trabalham para garantir que os filmes feitos por Hollywood na época correspondam às suas respectivas ideologias, sendo o vencedor aquele que fizer mais filmes e garantir o maior alcance.
“Nossos jogos focam em períodos sombrios da história, e Hollywood 1947 segue isso”, disse Hancock à Jacobin:
Embora essa cultuada cena ressurja regularmente nas redes sociais, o contexto da trama é menos conhecido. Em Rambo III, Rambo luta contra os invasores ao lado de seus irmãos mujahideen — ou como são mais conhecidos hoje, o Talibã.
Celebrar o Talibã em um blockbuster de ação pode parecer estranho agora, mas era normal naquele tempo. O enredo refletia diretamente as realidades políticas da época, quando o exército dos EUA treinava os mujahideen para lutar contra o exército soviético invasor.
Rambo III foi apenas um dos muitos filmes de propaganda produzidos por Hollywood durante a Guerra Fria. E não é uma relíquia como gostaríamos de pensar. O complexo de entretenimento militar é tão robusto hoje, com um vasto número de filmes e videogames americanos projetados para promover a ideologia imperialista estadunidense — frequentemente com o apoio dos próprios militares.
Propaganda hollywoodiana contra a ameaça vermelha durante a Guerra Fria
No jogo de tabuleiro Hollywood 1947, de Holly Hightower e Travis Hancock, lançado no ano passado, os jogadores são secretamente divididos em duas equipes: “Patriotas” ou “Comunistas”. No jogo, eles trabalham para garantir que os filmes feitos por Hollywood na época correspondam às suas respectivas ideologias, sendo o vencedor aquele que fizer mais filmes e garantir o maior alcance.
“Nossos jogos focam em períodos sombrios da história, e Hollywood 1947 segue isso”, disse Hancock à Jacobin:
Sempre adorei assistir a filmes antigos dos anos 40 e 50, e achei a propaganda anticomunista fascinante. Isso me fez querer fazer algo que encorajasse as pessoas a darem uma olhada em como Hollywood era naquela época.
Em particular, Hancock e Hightower foram criativamente inspirados pela história da lista negra de Hollywood do aclamado roteirista Dalton Trumbo, depois que ele se recusou a testemunhar sobre supostas influências comunistas na indústria diante do Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara. Embora Hollywood 1947 não promova uma mensagem ou ideologia política, Hancock disse à Jacobin que o jogo critica a censura de Hollywood e que ele espera que “faça as pessoas entrarem e realmente aprenderem sobre a história por si mesmas”.
Hollywood 1947 é uma maneira incisiva e criativa de mostrar a extensão do controle editorial do governo sobre a indústria cinematográfica enquanto a Guerra Fria estava em curso. Dezenas de filmes de Hollywood daquela época ecoavam as perspectivas da política externa dos EUA. Alguns, como A Cortina de Ferro (1948) e Os Boinas Verdes (1968), eram sutis em suas mensagens políticas e centrados nos valores estadunidenses de liberdade e justiça prevalecendo sobre a ideologia comunista supostamente maligna. Outros, como Face to Face with Communism (1951), que dramatizou as consequências horríveis de uma invasão soviética imaginária aos Estados Unidos, e Invasão USA (1985), que mostrou Chuck Norris lutando contra guerrilheiros cubanos apoiados pelos soviéticos durante 107 minutos, eram mais abertos.
O exército dos EUA não foi um beneficiário passivo desses produtos culturais. Em muitos casos, especialmente os mais explícitos, ele ajudou ativamente a criá-los. Face to Face with Communism foi produzido pela Força Aérea, e Invasão USA foi feito após seu roteiro ser aprovado pelo Departamento de Defesa (DOD).
Não há nenhuma indicação de que Rambo III foi feito com envolvimento militar direto dos EUA (embora tenha se beneficiado da assistência direta do exército israelense). No entanto, sua ideologia motriz era perfeitamente compatível com os objetivos militares dos EUA na época. E como muitos outros filmes anticomunistas, Rambo III foi extremamente influente. Ele arrecadou US$ 189 milhões nas bilheterias globais e, para muitos, continua sendo um clássico de ação duradouro. O filme ainda estava em cartaz nos cinemas quando os mujahideen da vida real forçaram os soviéticos a se retirarem completamente do Afeganistão em fevereiro de 1989.
Três anos depois, a União Soviética se dissolveu, e os Estados Unidos emergiram vitoriosos da Guerra Fria. Consequentemente, o fluxo de filmes de propaganda anticomunista americanos diminuiu. Hollywood manteve um fervor nacionalista e chauvinista geral, mas sem um inimigo claramente definido. E então aconteceu o 11 de setembro.
O mesmo, mas diferente: propaganda pós-11 de setembro
Desde que Osama Bin Laden orquestrou o ataque que matou quase três mil pessoas em 11 de setembro de 2001, o governo, por meio da CIA e do DOD, expandiu seu controle editorial sobre filmes, programas de TV e videogames, reforçando o que desde então foi denominado de “Complexo de Entretenimento Militar” — a cooperação sistemática entre as forças armadas e a indústria do entretenimento. É um relacionamento que muitos nem sabem que existe, embora esteja evoluindo com velocidade inquietante.
A CIA e o DOD coescreveram ou coproduziram uma série de filmes populares do século XXI. Captão Phillips, Transformers e Top Gun: Maverick, bem como alguns filmes da Marvel, incluindo Homem de Ferro , Captã Marvel e Mulher Maravilha 1984, são alguns dos muitos que o DOD coescreveu nos últimos anos. O documentário Theaters of War de 2022 alega que mais de 2.500 filmes e programas de TV foram supervisionados pelos militares, com a extensão e o volume da supervisão aumentando nos últimos anos.
Entre todos esses filmes, um se destaca por ter sido submetido ao maior escrutínio e controle editorial direto da CIA: o drama histórico — ou melhor, claramente a-histórico — de Kathryn Bigelow sobre a perseguição internacional de uma década a Bin Laden, A Hora Mais Escura.
“Nós realmente temos a sensação de que este será o filme sobre a operação UBL — e todos nós queremos que a CIA seja o mais bem representada possível nele”, afirmou um e-mail interno enviado por Marie Harf, do Escritório de Relações Públicas da CIA em junho de 2011, sobre o filme de Bigelow.
Em A Hora Mais Escura, a protagonista Maya (Jessica Chastain), a autoproclamada “filha da puta” que encontrou o esconderijo de Bin Laden, é baseada em Alfreda Frances Bikowsky, que foi chefe da CIA na Bin Laden Issue Station de 2003 a 2005. Maya enfrenta grandes dilemas morais ao torturar presos, embora a pessoa em quem ela se baseia não o tenha feito. Em uma ocasião, Bikowsky insistiu no sequestro, detenção e tortura de um preso em um local da CIA no Afeganistão, mesmo depois de ficar claro que essa pessoa (Khaled el-Masri) havia sido confundida com outra (Khalid el-Masri). O filme retrata os militares dos EUA como benfeitores dispostos a sacrificar tudo para matar Bin Laden, incluindo contradizer sua moral no curto prazo para o bem maior. O filme não se envolve com o número de mortos e a destruição causada pela “guerra ao terror”.
O filme lembra regularmente o público do perigo real e iminente que Maya enfrenta quando está na capital do Paquistão, Islamabad. Mas não se esforça para demonstrar o perigo correspondente aos civis paquistaneses, muitos dos quais morreram em ataques de drones autorizados pela CIA. Estima-se que 24.000 civis foram mortos nesses ataques.
Eu vivi em Islamabad durante os anos 2000 e estava cercado pela miséria enfrentada por milhões de paquistaneses cuja própria existência lhes foi arrancada pela guerra ao terror. Toques de recolher, restrições de viagem, fechamento de escolas e uma séria possibilidade de morte iminente eram fatos da vida no Paquistão na época. Na verdade, eu poderia ter morrido em 20 de setembro de 2008, se o restaurante do Marriott Hotel onde eu deveria ter tomado o iftar (a refeição noturna durante o Ramadã) não estivesse totalmente lotado.
Há inúmeros paquistaneses com histórias semelhantes e muitos outros que não tiveram tanta sorte quanto eu. Em A Hora Mais Escura, o sofrimento de civis paquistaneses é omitido. Eles são meramente terroristas ou colaboradores não confiáveis — obstáculos para eliminar Bin Laden.
Tanner Mirrlees é professor associado em estudos de mídia digital na Ontario Tech University, autor de vários livros sobre propaganda na indústria do entretenimento. Em seu livro de 2016, Hearts and Mines [Corações e Minas], Mirrlees afirma que uma parte fundamental da contribuição da CIA e do DOD em filmes como A Hora Mais Escura gira em torno de enquadramento, omissão e descontextualização. “Longe de ser um entretenimento insignificante que oferece aos espectadores um escapismo da política e das práticas do Império dos EUA”, escreve Mirrlees, “muitos programas de TV e filmes de Hollywood contam histórias sobre os agentes coercitivos do Estado dos EUA que legitimam a guerra e as operações secretas, fazendo-as parecer normais, necessárias e boas”. Nesse sentido, “os programas de TV e filmes de Hollywood são formas perniciosas de Relações Públicas para o Império dos EUA”.
O centro de tortura de Abu Ghraib, cujas imagens chocaram o mundo, recebe apenas uma fala descartável no filme de 150 minutos de Bigelow — sem nenhuma menção do que era e do que aconteceu lá. A Hora Mais Escura, no entanto, conta o quão eficaz é a tortura e o quanto mais fácil teria sido confirmar a localização de Bin Laden se eles pudessem continuar utilizando “técnicas de interrogatório aprimoradas”, que foram restringidas depois que o que aconteceu em Abu Ghraib foi publicizado.
O sentimento sobre a necessidade de tortura no filme é tão evidente que até o senador republicano John McCain criticou o filme, chamando-o de “grosseiramente impreciso e enganoso em sua sugestão de que a tortura resultou em informações que levaram à captura”.
Top Gun: Maverick e déficits de recrutamento
O relacionamento do DOD e da CIA com Hollywood não existe somente para celebrar os militares e afirmar a validade de seus objetivos. Ele também serve a um propósito mais funcional: encorajar o alistamento em um momento em que os militares sofrem com graves déficits de recrutamento.
Os EUA têm hoje seu menor exército desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e os últimos anos têm visto algumas de suas campanhas de recrutamento mais agressivas. Junto com outras iniciativas, como relaxamento de requisitos, bônus aumentados e esforços expandidos para recrutar estrangeiros com visto permanente, filmes de Hollywood também são usados para impulsionar o alistamento. O exemplo mais claro é Top Gun: Maverick, que foi o filme de maior bilheteria de 2022, arrecadando US$ 1,5 bilhão em todo o mundo.
O Top Gun original (1986) levou a um aumento no alistamento da Força Aérea, talvez até 8%. Isso não foi acidente: o produtor de Top Gun, John Davis, afirmou abertamente que o filme era uma ferramenta de recrutamento. Sua sequência em 2022 tentou fazer o mesmo.
Recrutadores estavam posicionados do lado de fora de vários cinemas nos EUA para interagir com adolescentes impressionáveis que tinham acabado de assistir Maverick, que foi lançado um ano depois que os Estados Unidos se retiraram do Afeganistão e quando a COVID-19 espremia a lista de candidatos para a Força Aérea. Ao contrário do original, Maverick não levou a um boom de alistamento, mas seu objetivo de fazê-lo quando a confiança nas forças armadas dos EUA estava em seu nível mais baixo desde o 11 de setembro era inconfundível. Maverick se concentra fortemente na camaradagem na Força Aérea contra o pano de fundo de sequências de ação emocionantes e implacáveis. Quem não gostaria de ser como Tom Cruise, Miles Teller ou Glen Powell, pilotando jatos de combate para salvar a democracia estadunidense dos males do mundo?
Também houve um esforço para coproduzir filmes da Marvel para atingir públicos mais jovens, muitos dos quais vão ao cinema para ver cenas legais de ação, alheios a mensagens políticas. Um exemplo gritante é o do (suposto) filme de ação feminista Captã Marvel. O DOD e a Força Aérea estiveram envolvidos na produção, distribuição e promoção do filme.
Não só a Força Aérea estava envolvida na produção do filme, mas também autorizou os pilotos a se envolverem com a mídia para promove-lo e realizar sobrevoos na estreia. Brie Larson, que interpreta a protagonista do filme, disse que um dos traços mais centrais de sua personagem era “o espírito da Força Aérea”. Em um artigo da revista Los Angeles, o jornalista Samuel Braslow criticou o militarismo de Capitã Marvel, escrevendo: “O filme pega uma página da bonança de relações públicas de 1985, Top Gun… mas a atualiza para um público ‘atento’ de 2019, cauteloso com as Forças Armadas após 18 anos no Afeganistão e mais de uma década de revelações de abuso sexual”. Como Top Gun, Capitã Marvel arrecadou mais de US$ 1 bilhão em todo o mundo.
Call of Duty e o Complexo de Entretenimento Militar
O Complexo de Entretenimento Militar dificilmente se limita aos filmes. Na verdade, uma de suas estratégias mais confiáveis é a produção de videogames. Em seu cerne está a colaboração militar com a popular série Call of Duty (COD), que teve vinte e três episódios desde sua estreia em 2003 e vendeu mais de 400 milhões de cópias no mundo todo.
O US Army Esports é um time competitivo de videogame no qual militares ativos competem contra outros times profissionais de COD. Essas competições são muito populares: o principal torneio do jogo teve picos de audiência de 294.000 no ano passado. Com uma presença crescente no cenário competitivo de jogos, os militares basicamente dizem: “Junte-se a nós; é como jogar seu jogo favorito na vida real.”
Em Hearts and Mines, Mirrlees dedica um capítulo de trinta páginas ao “DOD–Digital Games Complex”, onde ele revela como Anders Breivik, um fascista supremacista branco que matou sessenta e nove adolescentes em um acampamento de jovens socialistas em Oslo em 2011, declarou que usou COD para se preparar para seu ataque terrorista. Em seu manifesto, Breivik escreveu: “COD: Modern Warfare 2 é o melhor simulador militar que existe.” COD: Modern Warfare 2 vendeu mais de 25 milhões de cópias desde que foi lançado em 2009.
COD também nunca se esquivou da política. Em vez disso, prospera com ela. A série, que teve seu último episódio lançado no final do ano passado, frequentemente praticou revisionismo histórico. COD: Modern Warfare (2019) envolve uma missão chamada “Highway of Death” na qual os russos bombardeiam a única estrada pela qual os civis podem fugir de uma invasão no país fictício do Oriente Médio, Urzikstan, para o desgosto de nossos protagonistas. É uma apropriação estranha e reveladora: “a Highway of Death” é o nome dado à rodovia de seis pistas muito real que conecta o Kuwait e o Iraque. Recebeu esse nome porque, em fevereiro de 1991, a coalizão liderada pelos americanos bombardeou indiscriminadamente a estrada, matando militares e civis enquanto as tropas iraquianas recuavam do Kuwait após sua invasão ilegal. Pelo menos duzentos civis foram mortos.
A série COD também ocasionou missões em que o jogador assassina Fidel Castro, bem como personagens fictícios que apresentam semelhanças impressionantes com Hugo Chávez e Qasem Soleimani — alimentando uma revisão da história para uma geração de jovens que desconhecem as realidades que sustentaram a Guerra Fria e a Guerra do Golfo.
Isso não é coincidência. Brian Bulatao, diretor administrativo da Activision Blizzard, a empresa que faz os jogos COD, trabalhou anteriormente para a CIA e também atuou como subsecretário de Estado para gestão do governo de Donald Trump antes de ingressar na na gigante dos jogos. Frances Townsend, que foi conselheira sênior da Activision Blizzard até setembro de 2022, atuou como conselheira de segurança nacional de George Bush Jr. de 2004 a 2008.
A próxima edição de COD, Black Ops 6, será ambientada em 1991. Ela abrangerá a Guerra do Golfo, contará com Saddam Hussein e incorporará uma história na qual a CIA é infiltrada por agentes desonestos. Está fadado a ser mais um exemplo de revisionismo histórico e de fervor nacionalista para encorajar adolescentes impressionáveis a se alistarem.
Quarenta anos atrás, você podia se deleitar com o nacionalismo assistindo Rambo matar os comunistas malignos, só desejando ser como ele. Bem, agora você pode. Pode pilotar helicópteros de ataque e destruir tanques com um controle de PlayStation. E se isso criar mais vontade de ação do que os videogames podem aplacar, há um escritório de recrutamento no fim do quarteirão.Com o lançamento de COD: Black Ops 6 em 25 de outubro, muitos mais se juntarão aos vários ramos das Forças Armadas dos EUA, sem perceber no que estão se metendo. Alguns serão mortos em serviço ativo, alguns matarão os civis que foram forçados a desumanizar, e alguns retornarão irreparavelmente quebrados, tudo porque lhes foi dito que se juntar ao exército seria como jogar seu videogame favorito.
Hollywood 1947 é uma maneira incisiva e criativa de mostrar a extensão do controle editorial do governo sobre a indústria cinematográfica enquanto a Guerra Fria estava em curso. Dezenas de filmes de Hollywood daquela época ecoavam as perspectivas da política externa dos EUA. Alguns, como A Cortina de Ferro (1948) e Os Boinas Verdes (1968), eram sutis em suas mensagens políticas e centrados nos valores estadunidenses de liberdade e justiça prevalecendo sobre a ideologia comunista supostamente maligna. Outros, como Face to Face with Communism (1951), que dramatizou as consequências horríveis de uma invasão soviética imaginária aos Estados Unidos, e Invasão USA (1985), que mostrou Chuck Norris lutando contra guerrilheiros cubanos apoiados pelos soviéticos durante 107 minutos, eram mais abertos.
O exército dos EUA não foi um beneficiário passivo desses produtos culturais. Em muitos casos, especialmente os mais explícitos, ele ajudou ativamente a criá-los. Face to Face with Communism foi produzido pela Força Aérea, e Invasão USA foi feito após seu roteiro ser aprovado pelo Departamento de Defesa (DOD).
Não há nenhuma indicação de que Rambo III foi feito com envolvimento militar direto dos EUA (embora tenha se beneficiado da assistência direta do exército israelense). No entanto, sua ideologia motriz era perfeitamente compatível com os objetivos militares dos EUA na época. E como muitos outros filmes anticomunistas, Rambo III foi extremamente influente. Ele arrecadou US$ 189 milhões nas bilheterias globais e, para muitos, continua sendo um clássico de ação duradouro. O filme ainda estava em cartaz nos cinemas quando os mujahideen da vida real forçaram os soviéticos a se retirarem completamente do Afeganistão em fevereiro de 1989.
Três anos depois, a União Soviética se dissolveu, e os Estados Unidos emergiram vitoriosos da Guerra Fria. Consequentemente, o fluxo de filmes de propaganda anticomunista americanos diminuiu. Hollywood manteve um fervor nacionalista e chauvinista geral, mas sem um inimigo claramente definido. E então aconteceu o 11 de setembro.
O mesmo, mas diferente: propaganda pós-11 de setembro
Desde que Osama Bin Laden orquestrou o ataque que matou quase três mil pessoas em 11 de setembro de 2001, o governo, por meio da CIA e do DOD, expandiu seu controle editorial sobre filmes, programas de TV e videogames, reforçando o que desde então foi denominado de “Complexo de Entretenimento Militar” — a cooperação sistemática entre as forças armadas e a indústria do entretenimento. É um relacionamento que muitos nem sabem que existe, embora esteja evoluindo com velocidade inquietante.
A CIA e o DOD coescreveram ou coproduziram uma série de filmes populares do século XXI. Captão Phillips, Transformers e Top Gun: Maverick, bem como alguns filmes da Marvel, incluindo Homem de Ferro , Captã Marvel e Mulher Maravilha 1984, são alguns dos muitos que o DOD coescreveu nos últimos anos. O documentário Theaters of War de 2022 alega que mais de 2.500 filmes e programas de TV foram supervisionados pelos militares, com a extensão e o volume da supervisão aumentando nos últimos anos.
Entre todos esses filmes, um se destaca por ter sido submetido ao maior escrutínio e controle editorial direto da CIA: o drama histórico — ou melhor, claramente a-histórico — de Kathryn Bigelow sobre a perseguição internacional de uma década a Bin Laden, A Hora Mais Escura.
“Nós realmente temos a sensação de que este será o filme sobre a operação UBL — e todos nós queremos que a CIA seja o mais bem representada possível nele”, afirmou um e-mail interno enviado por Marie Harf, do Escritório de Relações Públicas da CIA em junho de 2011, sobre o filme de Bigelow.
Em A Hora Mais Escura, a protagonista Maya (Jessica Chastain), a autoproclamada “filha da puta” que encontrou o esconderijo de Bin Laden, é baseada em Alfreda Frances Bikowsky, que foi chefe da CIA na Bin Laden Issue Station de 2003 a 2005. Maya enfrenta grandes dilemas morais ao torturar presos, embora a pessoa em quem ela se baseia não o tenha feito. Em uma ocasião, Bikowsky insistiu no sequestro, detenção e tortura de um preso em um local da CIA no Afeganistão, mesmo depois de ficar claro que essa pessoa (Khaled el-Masri) havia sido confundida com outra (Khalid el-Masri). O filme retrata os militares dos EUA como benfeitores dispostos a sacrificar tudo para matar Bin Laden, incluindo contradizer sua moral no curto prazo para o bem maior. O filme não se envolve com o número de mortos e a destruição causada pela “guerra ao terror”.
O filme lembra regularmente o público do perigo real e iminente que Maya enfrenta quando está na capital do Paquistão, Islamabad. Mas não se esforça para demonstrar o perigo correspondente aos civis paquistaneses, muitos dos quais morreram em ataques de drones autorizados pela CIA. Estima-se que 24.000 civis foram mortos nesses ataques.
Eu vivi em Islamabad durante os anos 2000 e estava cercado pela miséria enfrentada por milhões de paquistaneses cuja própria existência lhes foi arrancada pela guerra ao terror. Toques de recolher, restrições de viagem, fechamento de escolas e uma séria possibilidade de morte iminente eram fatos da vida no Paquistão na época. Na verdade, eu poderia ter morrido em 20 de setembro de 2008, se o restaurante do Marriott Hotel onde eu deveria ter tomado o iftar (a refeição noturna durante o Ramadã) não estivesse totalmente lotado.
Há inúmeros paquistaneses com histórias semelhantes e muitos outros que não tiveram tanta sorte quanto eu. Em A Hora Mais Escura, o sofrimento de civis paquistaneses é omitido. Eles são meramente terroristas ou colaboradores não confiáveis — obstáculos para eliminar Bin Laden.
Tanner Mirrlees é professor associado em estudos de mídia digital na Ontario Tech University, autor de vários livros sobre propaganda na indústria do entretenimento. Em seu livro de 2016, Hearts and Mines [Corações e Minas], Mirrlees afirma que uma parte fundamental da contribuição da CIA e do DOD em filmes como A Hora Mais Escura gira em torno de enquadramento, omissão e descontextualização. “Longe de ser um entretenimento insignificante que oferece aos espectadores um escapismo da política e das práticas do Império dos EUA”, escreve Mirrlees, “muitos programas de TV e filmes de Hollywood contam histórias sobre os agentes coercitivos do Estado dos EUA que legitimam a guerra e as operações secretas, fazendo-as parecer normais, necessárias e boas”. Nesse sentido, “os programas de TV e filmes de Hollywood são formas perniciosas de Relações Públicas para o Império dos EUA”.
O centro de tortura de Abu Ghraib, cujas imagens chocaram o mundo, recebe apenas uma fala descartável no filme de 150 minutos de Bigelow — sem nenhuma menção do que era e do que aconteceu lá. A Hora Mais Escura, no entanto, conta o quão eficaz é a tortura e o quanto mais fácil teria sido confirmar a localização de Bin Laden se eles pudessem continuar utilizando “técnicas de interrogatório aprimoradas”, que foram restringidas depois que o que aconteceu em Abu Ghraib foi publicizado.
O sentimento sobre a necessidade de tortura no filme é tão evidente que até o senador republicano John McCain criticou o filme, chamando-o de “grosseiramente impreciso e enganoso em sua sugestão de que a tortura resultou em informações que levaram à captura”.
Top Gun: Maverick e déficits de recrutamento
O relacionamento do DOD e da CIA com Hollywood não existe somente para celebrar os militares e afirmar a validade de seus objetivos. Ele também serve a um propósito mais funcional: encorajar o alistamento em um momento em que os militares sofrem com graves déficits de recrutamento.
Os EUA têm hoje seu menor exército desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e os últimos anos têm visto algumas de suas campanhas de recrutamento mais agressivas. Junto com outras iniciativas, como relaxamento de requisitos, bônus aumentados e esforços expandidos para recrutar estrangeiros com visto permanente, filmes de Hollywood também são usados para impulsionar o alistamento. O exemplo mais claro é Top Gun: Maverick, que foi o filme de maior bilheteria de 2022, arrecadando US$ 1,5 bilhão em todo o mundo.
O Top Gun original (1986) levou a um aumento no alistamento da Força Aérea, talvez até 8%. Isso não foi acidente: o produtor de Top Gun, John Davis, afirmou abertamente que o filme era uma ferramenta de recrutamento. Sua sequência em 2022 tentou fazer o mesmo.
Recrutadores estavam posicionados do lado de fora de vários cinemas nos EUA para interagir com adolescentes impressionáveis que tinham acabado de assistir Maverick, que foi lançado um ano depois que os Estados Unidos se retiraram do Afeganistão e quando a COVID-19 espremia a lista de candidatos para a Força Aérea. Ao contrário do original, Maverick não levou a um boom de alistamento, mas seu objetivo de fazê-lo quando a confiança nas forças armadas dos EUA estava em seu nível mais baixo desde o 11 de setembro era inconfundível. Maverick se concentra fortemente na camaradagem na Força Aérea contra o pano de fundo de sequências de ação emocionantes e implacáveis. Quem não gostaria de ser como Tom Cruise, Miles Teller ou Glen Powell, pilotando jatos de combate para salvar a democracia estadunidense dos males do mundo?
Também houve um esforço para coproduzir filmes da Marvel para atingir públicos mais jovens, muitos dos quais vão ao cinema para ver cenas legais de ação, alheios a mensagens políticas. Um exemplo gritante é o do (suposto) filme de ação feminista Captã Marvel. O DOD e a Força Aérea estiveram envolvidos na produção, distribuição e promoção do filme.
Não só a Força Aérea estava envolvida na produção do filme, mas também autorizou os pilotos a se envolverem com a mídia para promove-lo e realizar sobrevoos na estreia. Brie Larson, que interpreta a protagonista do filme, disse que um dos traços mais centrais de sua personagem era “o espírito da Força Aérea”. Em um artigo da revista Los Angeles, o jornalista Samuel Braslow criticou o militarismo de Capitã Marvel, escrevendo: “O filme pega uma página da bonança de relações públicas de 1985, Top Gun… mas a atualiza para um público ‘atento’ de 2019, cauteloso com as Forças Armadas após 18 anos no Afeganistão e mais de uma década de revelações de abuso sexual”. Como Top Gun, Capitã Marvel arrecadou mais de US$ 1 bilhão em todo o mundo.
Call of Duty e o Complexo de Entretenimento Militar
O Complexo de Entretenimento Militar dificilmente se limita aos filmes. Na verdade, uma de suas estratégias mais confiáveis é a produção de videogames. Em seu cerne está a colaboração militar com a popular série Call of Duty (COD), que teve vinte e três episódios desde sua estreia em 2003 e vendeu mais de 400 milhões de cópias no mundo todo.
O US Army Esports é um time competitivo de videogame no qual militares ativos competem contra outros times profissionais de COD. Essas competições são muito populares: o principal torneio do jogo teve picos de audiência de 294.000 no ano passado. Com uma presença crescente no cenário competitivo de jogos, os militares basicamente dizem: “Junte-se a nós; é como jogar seu jogo favorito na vida real.”
Em Hearts and Mines, Mirrlees dedica um capítulo de trinta páginas ao “DOD–Digital Games Complex”, onde ele revela como Anders Breivik, um fascista supremacista branco que matou sessenta e nove adolescentes em um acampamento de jovens socialistas em Oslo em 2011, declarou que usou COD para se preparar para seu ataque terrorista. Em seu manifesto, Breivik escreveu: “COD: Modern Warfare 2 é o melhor simulador militar que existe.” COD: Modern Warfare 2 vendeu mais de 25 milhões de cópias desde que foi lançado em 2009.
COD também nunca se esquivou da política. Em vez disso, prospera com ela. A série, que teve seu último episódio lançado no final do ano passado, frequentemente praticou revisionismo histórico. COD: Modern Warfare (2019) envolve uma missão chamada “Highway of Death” na qual os russos bombardeiam a única estrada pela qual os civis podem fugir de uma invasão no país fictício do Oriente Médio, Urzikstan, para o desgosto de nossos protagonistas. É uma apropriação estranha e reveladora: “a Highway of Death” é o nome dado à rodovia de seis pistas muito real que conecta o Kuwait e o Iraque. Recebeu esse nome porque, em fevereiro de 1991, a coalizão liderada pelos americanos bombardeou indiscriminadamente a estrada, matando militares e civis enquanto as tropas iraquianas recuavam do Kuwait após sua invasão ilegal. Pelo menos duzentos civis foram mortos.
A série COD também ocasionou missões em que o jogador assassina Fidel Castro, bem como personagens fictícios que apresentam semelhanças impressionantes com Hugo Chávez e Qasem Soleimani — alimentando uma revisão da história para uma geração de jovens que desconhecem as realidades que sustentaram a Guerra Fria e a Guerra do Golfo.
Isso não é coincidência. Brian Bulatao, diretor administrativo da Activision Blizzard, a empresa que faz os jogos COD, trabalhou anteriormente para a CIA e também atuou como subsecretário de Estado para gestão do governo de Donald Trump antes de ingressar na na gigante dos jogos. Frances Townsend, que foi conselheira sênior da Activision Blizzard até setembro de 2022, atuou como conselheira de segurança nacional de George Bush Jr. de 2004 a 2008.
A próxima edição de COD, Black Ops 6, será ambientada em 1991. Ela abrangerá a Guerra do Golfo, contará com Saddam Hussein e incorporará uma história na qual a CIA é infiltrada por agentes desonestos. Está fadado a ser mais um exemplo de revisionismo histórico e de fervor nacionalista para encorajar adolescentes impressionáveis a se alistarem.
Quarenta anos atrás, você podia se deleitar com o nacionalismo assistindo Rambo matar os comunistas malignos, só desejando ser como ele. Bem, agora você pode. Pode pilotar helicópteros de ataque e destruir tanques com um controle de PlayStation. E se isso criar mais vontade de ação do que os videogames podem aplacar, há um escritório de recrutamento no fim do quarteirão.Com o lançamento de COD: Black Ops 6 em 25 de outubro, muitos mais se juntarão aos vários ramos das Forças Armadas dos EUA, sem perceber no que estão se metendo. Alguns serão mortos em serviço ativo, alguns matarão os civis que foram forçados a desumanizar, e alguns retornarão irreparavelmente quebrados, tudo porque lhes foi dito que se juntar ao exército seria como jogar seu videogame favorito.
Colaborador
Hamza Shehryar é escritor e jornalista. Ele cobre a indústria do entretenimento, cultura e política global, com foco em perspectivas interseccionais e do Sul Global.
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