1 de novembro de 2022

Ler Lima Barreto, morto há cem anos, é pensar em preconceito e ódio

Obra do autor carioca põe os seus leitores para refletir e debater sobre os movimentos feministas e antirracistas

Beatriz Resende
É professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de S.Paulo

A cena da morte de Lima Barreto, em 1º de novembro de 1922, com apenas 41 anos, resume a vida do escritor. Contou sua irmã, Evangelina, que Barreto estava acamado, com a saúde desgastada, no quarto de sua solidão. No cômodo ao lado, o pai agonizava e Evangelina cuidava dos dois. O romancista lia uma das revistas que chegavam da França à casa no subúrbio de Todos os Santos, a Vila Quilombo, como dizia. Pendeu a cabeça sobre a Revue des Deux Mondes e morreu.

Pouco tempo antes perdera meses da vida enclausurado no Hospício Nacional de Alienados, lugar onde eram recolhidos bêbados, loucos, mulheres consideradas histéricas, crianças a quem se atribuía "idiotice", os miseráveis da cidade cartão-postal, a grande maioria negros. Era um "cemitério dos vivos", como intitulou o romance inacabado.

Ilustração de "Triste Visionário", feita por Dalton Paula - Companhia das Letras/Divulgação

Depois de sua morte, anunciada nos principais jornais e revistas —não, Lima Barreto não era um escritor desconhecido— e lembrada como "a morte do mestre", o romance "Clara dos Anjos" ainda foi publicado. Em seguida morreu novamente.

A eugenia, o racismo científico, já chegara ao Brasil, entusiasmando médicos, políticos e escritores que tinham suas convicções racistas justificadas e expressavam sem problemas o desprezo pelos negros. Os conservadores acusavam seu estilo coloquial como desleixado. Nem mesmo os modernistas de 1922 puderam perceber o que nela havia de inovador, especialmente no livre trânsito entre o literário e o jornalístico.

O que mais desagradava era mesmo a temática. A denúncia de injustiça, da desigualdade, da misoginia que autorizava o assassinato de mulheres, da arrogância e vaidade do mundo literário. A outra cidade, os subúrbios onde morava a gente miúda da capital, as habitações pobres do entorno do morro do Castelo, a corrupção apontada na república que se queria moderna, nada disso deveria ser lembrado nas comemorações dos cem anos da Independência.

Foi apenas em 1952 que Francisco de Assis Barbosa trouxe Lima Barreto novamente à vida no país. Com a publicação de "A Vida de Lima Barreto", começamos a conhecer melhor o autor, um grande personagem.

Em seguida veio a edição de "Obras de Lima Barreto". Pela primeira vez eram conhecidas as anotações que compuseram o "Diário do Hospício" e o "Diário Íntimo", além correspondência e crônicas. Foram chamados a elaborar o prefácio de cada volume os principais interpretes do Brasil.

Sérgio Buarque de Hollanda não gostou de "Clara dos Anjos" e disse na apresentação que "a verdade é que Lima Barreto não foi o gênio de que suspeitam alguns dos seus admiradores, não conseguiu forças para vencer, ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o humilhava".

O estigma, ainda nos 1950, continuava sendo a cor.

Ao receber a biografia, Heitor Pérez, diretor da Colônia Juliano Moreira, agradeceu ao historiador numa carta em que comenta que Lima Barreto buscou superar "o sentimento de cor", por meio da literatura "onde se desforra de várias maneiras", naquilo que "é próprio do mulato –uma atitude paranoide (supervalorização de seus dotes intelectuais, egofilia, autojulgamento megalômano, ressentimento etc.)".

Em seguida a Francisco de Assis Barbosa, Nicolau Sevcenko, Antonio Arnoni Prado e outros acadêmicos levaram de forma definitiva o autor carioca aos estudos universitários. A leitura da obra continuava, no entanto, distante do leitor comum que Lima Barreto quisera atingir.

Foi só há cinco anos que tudo mudou. Lima Barreto foi a estrela da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, no litoral fluminense. O público talvez não fosse exatamente o sonhado pelo autor suburbano, mas a repercussão foi surpreendente.

A peça "Traga-me a Cabeça de Lima Barreto", de Luiz Marfuz, encenada por Hilton Cobra em 2017, apresentando trechos dos diários de Lima Barreto continua circulando pelo país em forte denúncia do que foi o processo de eugenia no Brasil.

Lilia Moritz Schwarcz lançou a importante biografia "Lima Barreto - Triste Visionário", trazendo novas chaves de leitura de vida e obra a partir de debates e pesquisas contemporâneas.

Neste ano, novas edições e novos formatos se dedicam à divulgação do autor. Um podcast está sendo lançado pela Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles.

A Festa Literária da Periferia, a Flup, no Rio de Janeiro, prepara a publicação de um volume de contos criados por participantes de outros de seus processos formativos, a partir de histórias narradas por Lima Barreto. Os servidores do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro ainda preparam um evento de comemoração do centenário da morte.

O mais importante é vermos o despertar do interesse de estudantes, especialmente negros, alguns deles cotistas das universidades, fascinados com o autor que ousou romper com padrões restritos da literatura. Emociona ver as jovens rediscutindo o poderoso "Clara do Anjos" a partir de falas de mulheres negras e feministas.

Ler ou reler Lima Barreto depois de suas diversas mortes é se abrir para os debates em torno de movimentos feministas e antirracistas. É pensar em desigualdade e intolerância. E na falta que Lima Barreto nos faz.

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