Fernanda Canofre
Folha de S.Paulo
O pecado original da República, na avaliação de José Murilo de Carvalho, foi não ter incluído o povo. "A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais", afirma o historiador sobre a proclamação que completa 130 anos nesta sext a-feira (15).
"Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940", diz Murilo de Carvalho, 80, que é cientista político e imortal da Academia Brasileira de Letras.
Em entrevista à Folha, o historiador reflete sobre o caráter autoritário e pouco inclusivo do início do período republicano no Brasil e afirma que, 130 anos depois, nossa república "continua sujeita à interferência 'moderadora' das Forças Armadas".
O historiador José Murilo de Carvalho - Raquel Cunha - 25.mai.19/Folhapress |
A ausência de povo, eis o pecado original da República, segundo o senhor. Como e por que o povo não fez parte dela? A afirmação refere-se à origem de nossa República. Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940. Até essa data, tínhamos uma participação eleitoral inferior à que existiu até 1881, quando foi introduzido o voto direto. Era uma república patrícia, uma república sem democracia.
Qual o significado de uma República sem povo? Na Grécia, Roma, Estados Unidos a República convivia com a escravidão e com a exclusão política das mulheres. Mas todo homem livre era cidadão ativo. A partir da Revolução Francesa, no entanto, a democracia passou a ser componente indispensável das repúblicas. No Brasil, a efetiva incorporação de povo, homens e mulheres, no sistema representativo só aconteceu após a queda do Estado Novo. A partir daí houve rápida e massiva inclusão eleitoral de povo. Nossa República não suportou a carga e desmoronou em 1964.
O fato de ela ter vindo por um golpe militar e não por uma revolução mudou o curso dela? Só Silva Jardim acreditava em revolução do tipo da Francesa e pregava o fuzilamento do conde d’Eu [marido da princesa Isabel, descendente da dinastia Orleans]. Não foi nem avisado do golpe. Ninguém mais, além dele, queria sangue. A busca do apoio dos militares do Exército foi oportunismo dos civis, sobretudo de Quintino Bocaiuva.
O problema dos políticos na primeira década da República foi livrarem-se dos militares. Floriano Peixoto garantiu o novo regime, mas era incômodo por despertar um movimento popular jacobino. A posição dominante entre os republicanos, sobretudo os paulistas, era esperar a morte do imperador e então impedir que Isabel tomasse posse. A transição viria de preferência via Constituinte, solução aceita até mesmo por monarquistas como Saraiva [José Antônio Saraiva, que chegou a ser nomeado pelo imperador para formar um gabinete na madrugada de 16 de novembro mas nunca assumiu].
A partida da família imperial foi antecipada para evitar conflitos. Mas o Brasil é um país violento, sustentou séculos de escravidão e tem sequelas. Qual o papel da violência na nossa questão republicana? A violência está embutida em nosso DNA, independentemente de regimes políticos. Os dez primeiros anos da República foram violentos: revoltas militares, guerra federalista no Sul, Revolta da Armada e, sobretudo, o terrível massacre de Canudos.
Qual tem sido o papel dos militares na nossa República, visto que vez ou outra eles assumem papel na política? O papel variou ao longo do tempo. Após a consolidação do regime com Campos Sales até 1930, a participação foi em boa parte antioligárquica, liderada por oficiais subalternos do Exército. Depois do Estado Novo, o papel passou a ser de tutela, quando não de intervenção direta, comandada pela cúpula militar.
Antes da Proclamação da República, tivemos várias repúblicas que não vingaram pelo Brasil. O que lhes faltou? Eram manifestações locais e provinciais, todas derrotadas pelas armas. A de maior êxito foi a Farroupilha que separou o Rio Grande do Sul por dez anos e terminou por um acordo do Império com os gaúchos. A repressão mais violenta verificou-se em revoltas que envolviam segmentos populares, como a Confederação do Equador, a Cabanagem e, já na República, Canudos e Contestado.
O que os brasileiros desse final do século 19 entendiam então por República? Os republicanos, sobretudo os paulistas, queriam autogoverno, isto é, eleição dos governantes, e federalismo à moda norte-americana. A monarquia significava privilégio de uma família ou dinastia, marca do antigo regime. A palavra democracia, significando governo pelo povo, fazia parte da retórica, mas em nenhum momento foi ativada.
Esse conceito mudou de alguma forma até 2019? Hoje é difícil saber o que as pessoas querem dizer quando falam em República, além de um sistema de governo. O conceito confunde-se com o de democracia, como queriam os propagandistas.
Os poucos que ainda o distinguem de democracia corretamente o vinculam a certos valores como a igualdade perante a lei, a ausência de privilégios, o bom governo, o cuidado com o bem público. Nesse sentido, pode-se dizer que há hoje mais democracia do que República e talvez seja este um de nossos principais problemas.
O senhor cita em seus escritos a exclusão pelo voto —de 30,6 milhões de brasileiros, apenas 2,4 milhões podiam votar na virada do século 19 para 20— e, além dele, a questão da abstenção —nas eleições de 1910, chegou a 40%. Qual a importância do voto para uma República? Segundo a distinção proposta, participação eleitoral tem mais a ver com democracia e menos com República. Hoje, uma não pode existir sem a outra. Democracia sem república, sem bom governo, sem igualdade civil, marcada por clientelismo, patrimonialismo, nepotismo, é frágil. Assim como República sem ampla participação não tem futuro.
Desde 1930, só cinco eleitos pelo voto direto conseguiram concluir seus mandatos [o atual presidente está no primeiro ano de governo]; quatro não completaram a gestão e sete presidentes não foram eleitos pelo voto. Essa democracia é fruto de falhas da República? É em boa parte fruto da entrada tardia e rápida do povo no sistema político, da democratização da República. A República patrícia não suportou o impacto e recorreu aos militares para conter a onda democrática, aproveitando-se do conflito ideológico que dominava o cenário internacional.
A República está em crise? Quase todas as repúblicas estão. A nossa continua sujeita à interferência “moderadora” das Forças Armadas.
Como o senhor analisa a questão federativa? A Federação foi uma das demandas mais fortes dos propagandistas, sobretudo dos paulistas e gaúchos. O federalismo norte-americano era o modelo, embora ele tenha assumido aqui sentido oposto.
Isto é, os federalistas norte-americanos eram os que queriam salvar a união das colônias contra as tendências separatistas afinal adotadas pelos sulistas para garantir a escravidão. O federalismo dos pais fundadores acabou preservando a União e abolindo a escravidão, embora à custa de uma sangrenta guerra civil, ao mesmo tempo em que dava ampla liberdade às unidades federadas.
Entre nós, federalismo e centralização é um debate secular. A enorme desigualdade das unidades da Federação leva a uma grande dependência do governo central que, por sua vez, coíbe iniciativas estaduais.
Por volta de 1627, frei Vicente do Salvador escreve uma citação que virou clássico sobre o Brasil: “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. O que nos fez assim? Apesar de ser lugar-comum, não é possível deixar de mencionar a gênese de nossa economia e de nossa sociedade. Não é que o passado nos condene. Mas as sociedades têm biografia, têm valores e práticas arraigadas. Se não, como entender que com tanta desigualdade não tenhamos tido qualquer revolução social? Como entender que com uma das maiores franquias eleitorais do mundo não consigamos produzir políticas redistributivas, limitando-nos ao assistencialismo distributivista?
O Brasil de hoje tem repúblicos? Nossos repúblicos podem ser contados nos dedos. Olhando pelo ângulo da preocupação com o bem coletivo, só os positivistas ortodoxos do início da República foram republicanos. Até iniciativas republicanas acabam comprometidas. Veja-se a Operação Lava Jato.
Nada mais republicano do que igualdade perante a lei. Rico e poderoso no Brasil nunca ia para a cadeia. A Lava Jato os mandou para lá. Vitória da República. Mas aí vem a denúncia de práticas arbitrárias por parte de promotores e juízes que ameaçam a validade das sentenças. Podemos voltar à estaca zero. Derrota da República.
E nossa República, tem salvação? Só por milagre de frei Vicente. Temos que avançar aos trancos e barrancos, combatendo sistematicamente as desigualdades na economia e os privilégios na sociedade. A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais.
Temos pela frente o imenso problema de incorporar ao mercado de trabalho os milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis. Só uma combinação de República e democracia, de bom governo e inclusão, pode resolver o problema, se ainda tiver solução.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO, 80
Nascido em Andrelândia (MG), é formado em sociologia e política pela UFMG, mestre e doutor ciência política pela Universidade de Stanford (EUA). Entre suas obras estão “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não Foi” (1987), “A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil” (2003), “O Pecado Original da República: Debates, Personagens e Eventos para Compreender o Brasil” (2017) e "Forças Armadas e Política no Brasil" (2019, 2ª ed.)
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