Mona Khneisser
O choque remove manifestantes que ocupam o cruzamento do "Anel" em 4 de novembro de 2019 em Beirute, Líbano. Sam Tarling / Getty Images |
Tradução / Por mais de vinte dias, chamas desafiadoras de protesto e descontentamento têm se espelhado como um incêndio selvagem através do Líbano. O que começou como uma conflagração de incêndio real atingindo mais de três mil acres de florestas de norte ao sul do país se transformou em chamas de raiva contra as condições socioeconômicas deterioradas e impasses políticos.
Os fogos que arrasaram as florestas do país explicitaram a voracidade do sistema de acumulação e lucro do país, bem como a pura negligência das necessidades ambientais e humanas. Tão cedo as chamas foram extintas, em 17 de outubro eclodiram protestos, greves e bloqueios de estradas seguido de uma decisão do governo de cobrar impostos de todos os aplicativos online – naquilo que ficou conhecido como o “imposto WhatsApp” – e aumentar as taxas sobre combustível, cigarros e consumo.
O país vem lutando com sérios problemas socioeconômicos que culminaram em escassez de dólar, desvalorização da moeda e uma crise de pão e combustível de meses, alertando a população em geral. Apesar do retrocesso do governo sobre o plano de impostos, os protestos cresceram e se difundiram em escopo e escala. A tentativa, por parte de líderes políticos de reprimir a raiva e de conter a frustração se mostrou fútil em meio à desilusão e desgosto com a litania de promessas quebradas. Numa entrevista recente à CNN, o diretor do Banco Central libanês, Riad Salameh, admitiu que um colapso econômico é iminente.
O escopo e a difusão nacional dos protesto – se sobrepondo a divisões sectárias, regionais e de classe – não tem precedentes na história recente do Líbano. É estimado que 2 milhões de manifestantes tenham ido às ruas na maior das manifestações nacionais, no domingo, dia 20 de outubro. Manifestações eclodiram em regiões previamente consideradas fortalezas sectárias incontestes: Nabatiyeh, Tripoli, Baalbek, Saida, Sour, Halba, Aley, Jal el Dib e Zouk.
Os manifestantes foram reprimidos pela polícia e pelo exército – resultando em diversas lesões e prisões – bem como violência e ameaças de contra-manifestantes e capangas partidários, elevando a preocupação de que a situação se tornasse uma disputa sectária (os partidos políticos podem estar dispostos a pagar um preço muito grande para manterem suas posições de poder). Ainda assim, esses ataques falharam em aniquilar os protestos.
Depois de treze dias de tensões em alta, greves massivas e paralisações escolares, universitárias e bancárias, o primeiro-ministro, Saad Hariri anunciou, em 29 de outubro, que se afastaria. Entretanto, ativistas insistiram na continuação das manifestações, greves e bloqueios. Os ativistas veem a resignação do gabinete como uma vitória fragmentada face à longa luta requerida para reparar o sistema econômico e a crise política agitando o país.
Agora em sua quarta semana, os levantes se mostraram implacáveis como protestos nacionais espontâneos como centenas de milhares de pessoas, tomando as ruas e praças das maiores cidades e de diferentes regiões. No domingo, manifestantes iniciaram sua maior manifestação desde a demissão de Hariri. Num movimento histórico, estudantes escolares e universitários foram às ruas através do país nas últimas semanas desafiando os chamados de volta às aulas e expressando seu apoio às demandas do movimento por um futuro melhor.
Os manifestantes têm se distanciado das principais focos de corrupção, se manifestado numerosamente contra a invasão ilegítima de investimentos privados lucrativos em propriedades públicas (por exemplo em Ramle el Bayda e na Baía de Zaytouna). E na noite do dia 6 as mulheres marcharam no coração de Beirute numa vigília de velas, ao som de panelaços através dos bairros da cidade.
Um ponto de inflexão crítico há muito tempo em preparo
Os atuais protestos vêm se preparando há tempos. As elites políticas e os partidos políticos sectários que lideram o país desde o fim da guerra civil (1975-1990) afundaram o Líbano ainda mais na degeneração socioeconômica. Segundo o pesquisador Fawwaz Traboulsi, o período de reconstrução pós-conflito representou uma “guerra extraordinária” contra as classes trabalhadoras através da “fragmentação e faccionalização do trabalho organizado”. A classe dominante – enraizada no setor bancário e nos grandes monopólios de mercado – cooptou e enfraqueceu as organizações e os sindicatos de trabalho formal
Mudanças estruturais profundas também estão em andamento entre a classe operária. Seguindo-se à guerra, a migração de mão-de-obra especializada e profissionalmente treinada foi acoplada a um influxo de trabalhadores não qualificadas, explorados por seu trabalho barato sob o sistema de kalafa (patrocínio). Enquanto isso, problemas de pobreza e desemprego têm sido obscurecidos por metodologias problemáticas de avaliação, ou simplesmente desconsiderados pelo credo neoliberal de auto-ajuda e assistência escassa.
O resultado tem sido o seguinte: a classe alta libanesa (a “oligarquia”, como Traboulsi define), se aproveita de um domínio sobre o poder econômico e político. De acordo com estudos recentes, “os top 10% e 1% da população adulta recebe aproximadamente 55% e 25% da renda nacional, o que põe o Líbano entre os países com os maiores níveis de desigualdade no mundo, junto a Brasil, Colômbia, Rússia, África do Sul e EUA”.
Este abismo escancarado entre os ricos e os despossuídos coloca o Líbano num ponto de inflexão.
Um movimento massivo em um ciclo amplo de protesto
Os protestos no Líbano podem ser vistos como parte de um ciclo regional e global de contenção que eclodiu nas décadas recentes contra o ataque devastador das políticas neoliberais e a degeneração da política representativa a serviço do dinheiro e do lucro. No mundo árabe, “Ash-sha’b yurid isqaṭ an-niẓam” (“o povo quer derrubar o regime”) se tornou a maior dos gritos de protesto, significando a destruição da barreira de medo e o surgimento das demandas das pessoas comuns por autodeterminação e justiça social.
Um ponto de vista global sobre esses movimentos nos revela seu descolamento de estruturas de organização tradicionais (sindicatos, partidos políticos, etc.) e a adoção de novas forma de comunicação, organização e identificação. Estes movimentos tendem a ser fragmentados e recusam a adoção de formas tradicionais de liderança, rejeitando-as como demasiadamente hierárquicas. Extraordinários em sua capacidade de mobilizar rapidamente quantidades massivas de pessoas, estes movimentos em geral experimentam desafios significativos quanto a sua habilidade de construir organizações coerentes e estratégias capazes de sustentar uma ação de longo prazo, operando mudanças substanciais.
O atual movimento no Líbano e a rejeição em larga escala à política sectária e corrupta é reminiscente das primeiras ondas de protestos anti-establishment durante os levantes árabes em 2011 (demandando “o povo quer a queda do regime sectário) e dos protestos durante a greve do lixo em 2015. No verão deste ano, o odor insuportável de lixo acumulado levou as pessoas às ruas expressando raiva e frustração com as condições socioeconômicas em declínio, contras os impasses políticos e franca corrupção. Apelidado de movimento “Você Fede”, os protestos rejeitaram a política convencional e suas formas organizacionais (partidos políticos) proclamando “tudo significa tudo” (“kelon ya’neh kelon”) – todos os políticos são corruptos. Ainda assim, as orientações estratégicas e ideológicas conflitantes dos grupos geraram tensões, com alguns esperando um foco singular sobre a crise do lixo, e outros procurando situá-la num contexto estrutural mais amplo.
No início da dissolução do movimento, diversos ativistas se voltaram ao processo eleitoral e às agendas reformistas para perseguir uma estratégia de “mudança a partir de dentro” gradual. Os dois anos seguintes testemunharam tentativas marcantes por parte de grupos independentes de abordar o sistema político a partir das eleições municipais (em maio de 2016) e das eleições parlamentares (maio de 2018). Enquanto alavancaram a esperança, captando a imaginação popular, ambas os protestos trouxeram à tona resultados confusos e decepções recorrentes.
Os protestos recentes representam um momento decisivo neste ciclo amplo de disputa tanto quanto um desenvolvimento importante dos estágios iniciais. As formas alternativas de ação coletiva vistas desde o começo da crise do lixo revelaram as deficiências de batalhas singulares e programas eleitorais limitados a programas técnicos não-confrontacionais, além da necessidade de uma visão mais ampla acerca das realidades e demandas socioeconômicas. Entretanto, há muito a se aprender sobre ação coletiva “alternativa” no Líbano a partir das experiências recentes.
Lições (e o futuro) das insurgências
As manifestações que vêm tomando as cidades e regiões do Líbano têm sido marcadas por expressões extraordinárias de exuberância, criatividade e vigor coletivo. Os manifestantes estão organizando diálogo público em praças públicas, levando seminários universitários às ruas, reivindicando marcos históricos destruídos durante a guerra civil, preparando e distribuindo comida, farreando até altas horas na madrugada ao som ao vivo de DJ’s, performando peças musicais e teatrais e praticando yoga em estradas bloqueadas.
Estes momentos de efervescência coletiva representam flashes marcantes de solidariedade, possibilidade e esperança. São momentos de ruptura, que rompem com os modos de existentes de ser e ver, desafiando noções prévias e concepções de mundo dominantes. Estes momentos expuseram a depredações da classe política degradada, corrupta e egoísta, quebrando as barreiras do medo e derrubando os edifícios já arruinados dos líderes sectários de longa data. São precisamente estes momentos que ameaçam o status quo e o sistema político estabelecido, que pretende dividir os cidadãos a partir de linhas sectárias.
Ainda que devamos reconhecer o potencial destes momentos em inspirar esperança e pavimentar o caminho para uma mudança transformadora, devemos também evitar uma celebração antecipada que nos diga pouco sobre os desafios que estes movimentos encaram, ou as dificuldades destes “novos tempos políticos”. É necessário mais do que celebrações para derrubar a ordem vigente. O movimento no Líbano, como em outros lugares, terão de construir organizações duradouras e formular estratégias comuns que podem aproveitar o poder extraordinário das ruas para realizar reformas radicais concretas.
Movimentos contemporâneos e formas de mobilização que evitam liderança e formação institucional em geral desaparecem gradualmente. Apesar da velocidade com a qual são capazes de mobilizar pessoas, a falta de organização e deliberação estruturada eventualmente os alcança. Ainda mais na tentativa de desenvolver uma organização “horizontal” e “sem liderança”, movimentos contemporâneos em geral dão vazão a “líderes informais” que não são eleitos e são menos responsáveis que suas partes tradicionais: é a chamada “tirania da ausência de estrutura”.
Outra vertente prevalecente no movimento é a “falta de demanda”: a recusa em emitir demandas específicas da classe política, e pedindo a renúncia do governo ou renúncia total de líderes políticos. Esta perspectiva argumenta que a demanda confere legitimidade a uma classe política que não deseja e não tem interesse em adiantar qualquer mudança que ameace o status quo.
Enquanto isto aponta para um desenvolvimento acentuado na retórica revolucionária do movimento, ainda é necessário pautar uma análise clara e compreensiva da crise política e econômica, bem como das medidas concretas para resolvê-la. É fútil esperar que os partidos políticos estabelecidos entreguem tais medidas. Basta olhar para a proposta de Hariri, repleta de desinformações e políticas neoliberais recicladas. Ao invés disso, o movimento deverá desenvolver novas lideranças democráticas e representativas que incentivem a participação popular e a deliberação inclusiva – capturando o poder das ruas e trazendo à tona uma agenda muito necessária e compreensiva para a mudança.
Há motivo para otimismo: as últimas semanas têm visto tentativas importantes de auto-organização, na forma de sindicatos “alternativos” e coletivos setoriais. Uma frente unificada de professores e alunos universitários (a Coalizão de Professores Universitários), reuniu milhares de professores e alunos de universidade públicas e privadas, resistindo aos chamados para voltarem às aulas, organizando ações de protesto conjuntas. Diferentes grupos profissionais, incluindo médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, cineastas, economistas e escritores também se mobilizaram coletivamente em apoio aos protestos. A emergência destas coletividades nascentes é um desenvolvimento importante à luz da história da cooptação elitista e do enfraquecimento dos trabalhadores e das organizações sindicais.
Os clamores de alguns setores por um governo liderado por especialistas – sob o argumento que a expertise técnica se sobrepõe ao reino da política – deve também ser questionada. Não se necessita de “expertise técnica” (de fato, especialistas tecnocráticos sempre estiveram presentes nos governos anteriores), mas uma agenda política abrangente que possa derrubar radicalmente o estado das coisas – uma agenda política e econômica substantiva que vá além das discussões sobre a corrupção como uma prática individual e o ataque com profundidade as desigualdades estruturais arraigada no modelo econômico neoliberal, bem como no regime político de partilha de poder sectária.
A escala e o escopo dos protestos recentes é realmente espantosa; um ponto de virada na história dos movimentos anti-establishment do Líbano. Dada a profundidade da crise política e econômica, a natureza do regime de patronato sectário e as estruturas organizacionais ainda incipientes das forças de oposição, o movimento provavelmente levará tempo para fazer sentir seu impacto. Ainda assim, uma coisa se fez aparente: o escrutínio e a incredulidade pública atual são as maiores do que nunca. As elites políticas do país terão que responder a uma cidadania que foi significativamente alterada.
Os fogos que arrasaram as florestas do país explicitaram a voracidade do sistema de acumulação e lucro do país, bem como a pura negligência das necessidades ambientais e humanas. Tão cedo as chamas foram extintas, em 17 de outubro eclodiram protestos, greves e bloqueios de estradas seguido de uma decisão do governo de cobrar impostos de todos os aplicativos online – naquilo que ficou conhecido como o “imposto WhatsApp” – e aumentar as taxas sobre combustível, cigarros e consumo.
O país vem lutando com sérios problemas socioeconômicos que culminaram em escassez de dólar, desvalorização da moeda e uma crise de pão e combustível de meses, alertando a população em geral. Apesar do retrocesso do governo sobre o plano de impostos, os protestos cresceram e se difundiram em escopo e escala. A tentativa, por parte de líderes políticos de reprimir a raiva e de conter a frustração se mostrou fútil em meio à desilusão e desgosto com a litania de promessas quebradas. Numa entrevista recente à CNN, o diretor do Banco Central libanês, Riad Salameh, admitiu que um colapso econômico é iminente.
O escopo e a difusão nacional dos protesto – se sobrepondo a divisões sectárias, regionais e de classe – não tem precedentes na história recente do Líbano. É estimado que 2 milhões de manifestantes tenham ido às ruas na maior das manifestações nacionais, no domingo, dia 20 de outubro. Manifestações eclodiram em regiões previamente consideradas fortalezas sectárias incontestes: Nabatiyeh, Tripoli, Baalbek, Saida, Sour, Halba, Aley, Jal el Dib e Zouk.
Os manifestantes foram reprimidos pela polícia e pelo exército – resultando em diversas lesões e prisões – bem como violência e ameaças de contra-manifestantes e capangas partidários, elevando a preocupação de que a situação se tornasse uma disputa sectária (os partidos políticos podem estar dispostos a pagar um preço muito grande para manterem suas posições de poder). Ainda assim, esses ataques falharam em aniquilar os protestos.
Depois de treze dias de tensões em alta, greves massivas e paralisações escolares, universitárias e bancárias, o primeiro-ministro, Saad Hariri anunciou, em 29 de outubro, que se afastaria. Entretanto, ativistas insistiram na continuação das manifestações, greves e bloqueios. Os ativistas veem a resignação do gabinete como uma vitória fragmentada face à longa luta requerida para reparar o sistema econômico e a crise política agitando o país.
Agora em sua quarta semana, os levantes se mostraram implacáveis como protestos nacionais espontâneos como centenas de milhares de pessoas, tomando as ruas e praças das maiores cidades e de diferentes regiões. No domingo, manifestantes iniciaram sua maior manifestação desde a demissão de Hariri. Num movimento histórico, estudantes escolares e universitários foram às ruas através do país nas últimas semanas desafiando os chamados de volta às aulas e expressando seu apoio às demandas do movimento por um futuro melhor.
Os manifestantes têm se distanciado das principais focos de corrupção, se manifestado numerosamente contra a invasão ilegítima de investimentos privados lucrativos em propriedades públicas (por exemplo em Ramle el Bayda e na Baía de Zaytouna). E na noite do dia 6 as mulheres marcharam no coração de Beirute numa vigília de velas, ao som de panelaços através dos bairros da cidade.
Um ponto de inflexão crítico há muito tempo em preparo
Os atuais protestos vêm se preparando há tempos. As elites políticas e os partidos políticos sectários que lideram o país desde o fim da guerra civil (1975-1990) afundaram o Líbano ainda mais na degeneração socioeconômica. Segundo o pesquisador Fawwaz Traboulsi, o período de reconstrução pós-conflito representou uma “guerra extraordinária” contra as classes trabalhadoras através da “fragmentação e faccionalização do trabalho organizado”. A classe dominante – enraizada no setor bancário e nos grandes monopólios de mercado – cooptou e enfraqueceu as organizações e os sindicatos de trabalho formal
Mudanças estruturais profundas também estão em andamento entre a classe operária. Seguindo-se à guerra, a migração de mão-de-obra especializada e profissionalmente treinada foi acoplada a um influxo de trabalhadores não qualificadas, explorados por seu trabalho barato sob o sistema de kalafa (patrocínio). Enquanto isso, problemas de pobreza e desemprego têm sido obscurecidos por metodologias problemáticas de avaliação, ou simplesmente desconsiderados pelo credo neoliberal de auto-ajuda e assistência escassa.
O resultado tem sido o seguinte: a classe alta libanesa (a “oligarquia”, como Traboulsi define), se aproveita de um domínio sobre o poder econômico e político. De acordo com estudos recentes, “os top 10% e 1% da população adulta recebe aproximadamente 55% e 25% da renda nacional, o que põe o Líbano entre os países com os maiores níveis de desigualdade no mundo, junto a Brasil, Colômbia, Rússia, África do Sul e EUA”.
Este abismo escancarado entre os ricos e os despossuídos coloca o Líbano num ponto de inflexão.
Um movimento massivo em um ciclo amplo de protesto
Os protestos no Líbano podem ser vistos como parte de um ciclo regional e global de contenção que eclodiu nas décadas recentes contra o ataque devastador das políticas neoliberais e a degeneração da política representativa a serviço do dinheiro e do lucro. No mundo árabe, “Ash-sha’b yurid isqaṭ an-niẓam” (“o povo quer derrubar o regime”) se tornou a maior dos gritos de protesto, significando a destruição da barreira de medo e o surgimento das demandas das pessoas comuns por autodeterminação e justiça social.
Um ponto de vista global sobre esses movimentos nos revela seu descolamento de estruturas de organização tradicionais (sindicatos, partidos políticos, etc.) e a adoção de novas forma de comunicação, organização e identificação. Estes movimentos tendem a ser fragmentados e recusam a adoção de formas tradicionais de liderança, rejeitando-as como demasiadamente hierárquicas. Extraordinários em sua capacidade de mobilizar rapidamente quantidades massivas de pessoas, estes movimentos em geral experimentam desafios significativos quanto a sua habilidade de construir organizações coerentes e estratégias capazes de sustentar uma ação de longo prazo, operando mudanças substanciais.
O atual movimento no Líbano e a rejeição em larga escala à política sectária e corrupta é reminiscente das primeiras ondas de protestos anti-establishment durante os levantes árabes em 2011 (demandando “o povo quer a queda do regime sectário) e dos protestos durante a greve do lixo em 2015. No verão deste ano, o odor insuportável de lixo acumulado levou as pessoas às ruas expressando raiva e frustração com as condições socioeconômicas em declínio, contras os impasses políticos e franca corrupção. Apelidado de movimento “Você Fede”, os protestos rejeitaram a política convencional e suas formas organizacionais (partidos políticos) proclamando “tudo significa tudo” (“kelon ya’neh kelon”) – todos os políticos são corruptos. Ainda assim, as orientações estratégicas e ideológicas conflitantes dos grupos geraram tensões, com alguns esperando um foco singular sobre a crise do lixo, e outros procurando situá-la num contexto estrutural mais amplo.
No início da dissolução do movimento, diversos ativistas se voltaram ao processo eleitoral e às agendas reformistas para perseguir uma estratégia de “mudança a partir de dentro” gradual. Os dois anos seguintes testemunharam tentativas marcantes por parte de grupos independentes de abordar o sistema político a partir das eleições municipais (em maio de 2016) e das eleições parlamentares (maio de 2018). Enquanto alavancaram a esperança, captando a imaginação popular, ambas os protestos trouxeram à tona resultados confusos e decepções recorrentes.
Os protestos recentes representam um momento decisivo neste ciclo amplo de disputa tanto quanto um desenvolvimento importante dos estágios iniciais. As formas alternativas de ação coletiva vistas desde o começo da crise do lixo revelaram as deficiências de batalhas singulares e programas eleitorais limitados a programas técnicos não-confrontacionais, além da necessidade de uma visão mais ampla acerca das realidades e demandas socioeconômicas. Entretanto, há muito a se aprender sobre ação coletiva “alternativa” no Líbano a partir das experiências recentes.
Lições (e o futuro) das insurgências
As manifestações que vêm tomando as cidades e regiões do Líbano têm sido marcadas por expressões extraordinárias de exuberância, criatividade e vigor coletivo. Os manifestantes estão organizando diálogo público em praças públicas, levando seminários universitários às ruas, reivindicando marcos históricos destruídos durante a guerra civil, preparando e distribuindo comida, farreando até altas horas na madrugada ao som ao vivo de DJ’s, performando peças musicais e teatrais e praticando yoga em estradas bloqueadas.
Estes momentos de efervescência coletiva representam flashes marcantes de solidariedade, possibilidade e esperança. São momentos de ruptura, que rompem com os modos de existentes de ser e ver, desafiando noções prévias e concepções de mundo dominantes. Estes momentos expuseram a depredações da classe política degradada, corrupta e egoísta, quebrando as barreiras do medo e derrubando os edifícios já arruinados dos líderes sectários de longa data. São precisamente estes momentos que ameaçam o status quo e o sistema político estabelecido, que pretende dividir os cidadãos a partir de linhas sectárias.
Ainda que devamos reconhecer o potencial destes momentos em inspirar esperança e pavimentar o caminho para uma mudança transformadora, devemos também evitar uma celebração antecipada que nos diga pouco sobre os desafios que estes movimentos encaram, ou as dificuldades destes “novos tempos políticos”. É necessário mais do que celebrações para derrubar a ordem vigente. O movimento no Líbano, como em outros lugares, terão de construir organizações duradouras e formular estratégias comuns que podem aproveitar o poder extraordinário das ruas para realizar reformas radicais concretas.
Movimentos contemporâneos e formas de mobilização que evitam liderança e formação institucional em geral desaparecem gradualmente. Apesar da velocidade com a qual são capazes de mobilizar pessoas, a falta de organização e deliberação estruturada eventualmente os alcança. Ainda mais na tentativa de desenvolver uma organização “horizontal” e “sem liderança”, movimentos contemporâneos em geral dão vazão a “líderes informais” que não são eleitos e são menos responsáveis que suas partes tradicionais: é a chamada “tirania da ausência de estrutura”.
Outra vertente prevalecente no movimento é a “falta de demanda”: a recusa em emitir demandas específicas da classe política, e pedindo a renúncia do governo ou renúncia total de líderes políticos. Esta perspectiva argumenta que a demanda confere legitimidade a uma classe política que não deseja e não tem interesse em adiantar qualquer mudança que ameace o status quo.
Enquanto isto aponta para um desenvolvimento acentuado na retórica revolucionária do movimento, ainda é necessário pautar uma análise clara e compreensiva da crise política e econômica, bem como das medidas concretas para resolvê-la. É fútil esperar que os partidos políticos estabelecidos entreguem tais medidas. Basta olhar para a proposta de Hariri, repleta de desinformações e políticas neoliberais recicladas. Ao invés disso, o movimento deverá desenvolver novas lideranças democráticas e representativas que incentivem a participação popular e a deliberação inclusiva – capturando o poder das ruas e trazendo à tona uma agenda muito necessária e compreensiva para a mudança.
Há motivo para otimismo: as últimas semanas têm visto tentativas importantes de auto-organização, na forma de sindicatos “alternativos” e coletivos setoriais. Uma frente unificada de professores e alunos universitários (a Coalizão de Professores Universitários), reuniu milhares de professores e alunos de universidade públicas e privadas, resistindo aos chamados para voltarem às aulas, organizando ações de protesto conjuntas. Diferentes grupos profissionais, incluindo médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, cineastas, economistas e escritores também se mobilizaram coletivamente em apoio aos protestos. A emergência destas coletividades nascentes é um desenvolvimento importante à luz da história da cooptação elitista e do enfraquecimento dos trabalhadores e das organizações sindicais.
Os clamores de alguns setores por um governo liderado por especialistas – sob o argumento que a expertise técnica se sobrepõe ao reino da política – deve também ser questionada. Não se necessita de “expertise técnica” (de fato, especialistas tecnocráticos sempre estiveram presentes nos governos anteriores), mas uma agenda política abrangente que possa derrubar radicalmente o estado das coisas – uma agenda política e econômica substantiva que vá além das discussões sobre a corrupção como uma prática individual e o ataque com profundidade as desigualdades estruturais arraigada no modelo econômico neoliberal, bem como no regime político de partilha de poder sectária.
A escala e o escopo dos protestos recentes é realmente espantosa; um ponto de virada na história dos movimentos anti-establishment do Líbano. Dada a profundidade da crise política e econômica, a natureza do regime de patronato sectário e as estruturas organizacionais ainda incipientes das forças de oposição, o movimento provavelmente levará tempo para fazer sentir seu impacto. Ainda assim, uma coisa se fez aparente: o escrutínio e a incredulidade pública atual são as maiores do que nunca. As elites políticas do país terão que responder a uma cidadania que foi significativamente alterada.
Sobre a autora
Mona Khneisser é doutoranda em sociologia na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign. Sua pesquisa está centrada no mundo árabe e nas áreas de estudos de movimentos sociais, sectarismo e economia política.
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