J.S. Chen e Sherry Yuen-Yung Chan
Jacobin
Tradução / Menos de cinco anos após a “Revolução dos Guarda-chuvas”, Hong Kong está de volta às manchetes internacionais. No dia 9 de junho, mais de um milhão de manifestantes vestidos de branco foram às ruas para se opor a um projeto de lei que autorizaria extradições à China. No domingo seguinte, estima-se que dois milhões de pessoas — quase 30% da população — foi às ruas novamente, dessa vez vestidos de preto.
A Chefe do Executivo de Hong Kong e apoiadora de Pequim, Carrie Lam, afirma que a medida de extradição seria necessária para fazer justiça no caso do homem de Hong Kong procurado pelo assassinato de sua namorada em Taiwan. Porém, o projeto tem despertado uma oposição imensa, com críticos insistindo que o Partido Comunista da China (PCC) o usaria para extraditar ativistas ou jornalistas dissidentes para a China continental. Em outras palavras, decorreria a abertura das comportas entre o sistema legal da China continental e de Hong Kong, possibilitando o sequestro de cidadãos de Hong Kong, com apoio do PCC.
A polícia respondeu aos protestos com força. Quando os manifestantes desencadearam um protesto sentado no dia 12 de junho, a data original para a segunda votação do PL, a polícia usou balas de borracha, cacetetes, spray de pimenta e gás lacrimogêneo para dispersá-los. Filmagens de manifestantes atingidos na cabeça por balas de borracha e jornalistas agredidos pela polícia vazaram para a internet. Para justificar a repressão, o governo de Hong Kong afirmou que as vítimas formavam um motim ilegal.
Ainda assim, apesar da brutalidade, os manifestantes permaneceram nas ruas, bloqueando o edifício do governo forçando Lam a ceder e suspender temporariamente o projeto de lei.
Depois disso, os manifestantes passaram a exigir que o governo de Hong Kong retrate sua caracterização dos protestos como motins e investigue o uso de força excessiva pela polícia.
Todo mundo sabe que há muito em jogo: um portal apelidou o movimento de “a última batalha de Hong Kong.”
A história da mobilização de massa em Hong Kong
A população de Hong Kong nem sempre foi conhecida pela mobilização em massa. Por muita de sua história moderna, a ex-colônia britânica foi vista como politicamente apática e um ambiente “estritamente de negócios” – um refúgio para a economia de livre-mercado e uma cidadania desmobilizada.
Na década de 1980, dois eventos marcantes mudaram isso. O primeiro ocorreu em 1984, quando a Declaração Conjunta Sino-Britânica selou o destino da colônia de retornar ao domínio chinês. O segundo veio em 1989, quando o PCC massacrou estudantes e trabalhadores na Praça da Paz Celestial.
A política de “um país, dois sistemas” tinha sido introduzida no início dos anos 80, dando ao povo de Hong Kong um alto grau de autonomia em relação a Pequim. Parte do objetivo era garantir a proteção de suas liberdades civis. No entanto, após o massacre de 1989, a população de HK deixou de confiar na promessa de Deng Xiaoping de que teriam mais “cinquenta anos do antigo modo de vida.”
Certamente, Pequim começou a aumentar seu controle sobre Hong Kong depois da transferência administrativa, e a população começou a se mobilizar.
Em 2003, o governo pró-Pequim de Hong Kong tentou decretar o “Artigo 23”, um PL infame que proibia “traição, secessão, sedição, [e] subversão” contra o governo chinês. Meio milhão de pessoas protestaram e suas reivindicações foram atendidas. O projeto de lei foi retirado, e o líder do executivo, Tung Chee-Hua, se demitiu. Foi a primeira vez que o povo de Hong Kong sentiu o gosto de seu poder coletivo.
A manifestação também marcou o fim da lua de mel de Hong Kong com Pequim. Depois disso, os ataques à autonomia de Hong Kong se tornaram mais frequentes e intensos.
Em 2012, o governo introduziu um projeto de lei que inseriria “educação moral e nacional” no cerne curricular das escolas primárias e secundárias. Estudantes criticaram o material como rigidamente pró-Pequim, e uma coalizão estudantil, a “Escolarismo” iniciou ondas de protestos sentados, manifestações e campanhas de boicote.
Em 2014, a Revolução dos Guarda-chuvas explodiu em seguida a uma proposta que permitiria ao PCC pré-selecionar candidatos para o principal posto em Hong Kong — um ataque direto à sua autonomia e à sua democracia, já bastante limitada. Pessoas se espalharam pelas ruas e ocuparam estradas próximas à sede do governo e ao distrito comercial central. Os manifestantes permaneceram por setenta e nove dias, exigindo sufrágio universal em eleições para a chefia do Executivo. Dessa vez tiveram menos sucesso — Pequim se recusou a permitir que Hong Kong se tornasse uma democracia liberal plena. O chefe do Executivo permanece uma posição inelegível, e somente parte da legislatura responde à vontade dos eleitores.
As manifestações recentes são um reflexo do desejo da população de Hong Kong de manter os direitos democráticos que ainda possui. Porém, ao contrário de movimentos anteriores, os protestos contra a lei de extradição se destaca pela sua relativa espontaneidade e falta de liderança. Embora a veterana coalizão dissidente Frente Civil pelos Direitos Humanos tenha convocado manifestações em domingos, muitos dos protestos sentados e ocupações mais militantes foram organizados por trabalhadores e estudantes de pouca ou nenhuma experiência de organização política. De fato, mesmo a recente ocupação da delegacia de polícia foi convocada por internautas sem nenhuma afiliação política clara.
É exatamente esse clima de relativa liberdade política que o PL de extradição ameaça. Sob a proteção de seu atual sistema legal, os estudantes podem criticar um currículo hiper-nacionalista, os jornalistas podem proferir visões dissidentes e os ativistas podem se organizar sem medo de “abdução”. O PL de extradição mudaria tudo isso – se aprovado, já não seria seguro para a população de Hong Kong ir às ruas e expressar seu descontentamento.
A relação de Hong Kong com a China
Para se compreender o atual movimento anti-extradição, é importante dissecar a relação de Hong Kong com a China — algo muito mais complexo do que “liberdade versus autoritarismo.”
Hong Kong, ao contrário da maioria das ex-colônias do Ocidente, se saiu muito bem depois do período de domínio colonial – mas a transição foi planejada para que o resultado fosse esse.
Nas duas décadas que antecederam à entrega em 1997, o governo de Hong Kong sob domínio britânico instituiu uma série de reformas, do sistema de saúde à habitação, que melhoraram a vida do povo. Foi implementada uma legislação trabalhista para criar estabilidade para os trabalhadores; a produção recebeu incentivos para impulsionar a cadeia de valor; o inglês passou a ser ensinado nas escolas para dar à futura força de trabalho acesso ao mundo ocidental. O objetivo era melhorar drasticamente a qualidade de vida da população e ampliar a distância econômica do território em relação ao resto da China para dificultar o governo para o PCC.
O resultado foi a alienação econômica e cultural em relação à China. Em 1997, Hong Kong se destacava do resto do país como uma cidade internacional e uma potência financeira, representando o capitalismo ocidental contra o pano de fundo da China Comunista.
Dada essa História, é fácil enxergar os protestos anti-extradição como uma luta entre uma Hong Kong capitalista, ocidentalizada e uma China socialista, acometida pela pobreza e tentando se libertar de grilhões imperiais.
No entanto, desde a política de portas abertas de Deng no início dos anos 90, a China se transformou de um país em desenvolvimento para uma superpotência global.
Apesar de se intitular comunista, o PCC aplica o que seria descrito mais precisamente como “capitalismo com características chinesas” — um tipo de capitalismo de Estado onde o poder político é convertido em ganhos capitalistas. E como qualquer Estado capitalista, o PCC faz o que for preciso para manter o status quo. Com Xi Jinping no poder, o Estado chinês tem aumentado seu controle tanto sobre a China continental quanto Hong Kong.
Na corrida pelo domínio econômico global, Xi tem impulsionado o projeto multi-bilionário de infraestrutura conhecido como Iniciativa do Cinturão e Rota — plantando as sementes para o controle econômico de toda a África e América do Sul e sinalizando o desejo da China de disputar diretamente com os EUA. Contudo, apesar das ambições imperiais do PCC, eles vestem suas ações com a linguagem do anti-imperialismo. Apoiadores elogiam o país como um contrapeso ao império estadunidense. Da mesma forma, para enfraquecer as manifestações anti-extradição, o PCC tem se retratado como vítimas do imperialismo ocidental, sugerindo que os protestos de Hong Kong são fruto do trabalho de governos ocidentais.
Entretanto, não devemos cair em uma preguiçosa (e perniciosa) postura anti-chinesa. Se o PL de extradição for aprovado, os nacionalistas ocidentais se sentirão incentivados a aplicar mais pressão sobre a China. Os EUA já ameaçaram cancelar o status especial de comércio econômico de Hong Kong, que hoje lhe dá acesso preferencial aos mercados estadunidenses. Isso provocaria Pequim e prejudicaria os residentes de Hong Kong no processo.
Em meio à guerra econômica em andamento e à caracterização da china como bode expiatório pelos problemas da ordem econômica global, os manifestantes devem rejeitar não só o autoritarismo chinês e sua vazia narrativa anti-imperial, como também as agressões nacionalistas ocidentais.
A política do movimento
Não é por acaso que a expansão de Pequim em Hong Kong tem tomado a forma de uma invasão econômica.
Ano passado, o governo pró-Pequim em Hong Kong levou em frente a “Visão de Lantau do Amanhã,” um projeto de infraestrutura em larga escala e imobiliário e que está deve custar $63.8 bilhões (cerca de metade das reservas finais de HK). O governo afirma que o plano vai resolver a crise de habitação da cidade, mas o dinheiro provavelmente será canalizado diretamente para as empresas de construção chinesas que devem desenvolver o projeto.
A Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, uma campanha econômica organizada por Pequim, é outro exemplo disso. O governo construiu uma mega-ponte que conecta Hong Kong à China continental e a Macau, ao custo de $20 bilhões de dólares. Para executar o projeto, o governo de Hong Kong foi forçado a cavar fundo em suas reservas financeiras para tornar a cidade um veículo ainda mais atraente para o dinheiro chinês.
Esses projetos beneficiam o capital chinês à custa do povo de Hong Kong — drenando dezenas de bilhões de dólares que poderiam ser gastos em iniciativas que de fato tornassem a cidade mais habitável para a população.
Geralmente, o governo autoritário da China está alinhado com os interesses da elite financeira de Hong Kong. No entanto, o PL de extradição expôs uma fissura surpreendente. Quando ela foi proposta em fevereiro deste ano, muitos membros das elites expressaram séria preocupação – mas sua oposição vem de um desejo de proteger sua própria riqueza — como deixado claro por sua apressada transferência de posses para outros países. Joseph Lau, um bilionário local, chegou ao ponto de pedir uma revisão judicial para desafiar o PL em março.
A rara oposição dos ultra-ricos de Hong Kong ao PL apoiado por Pequim pode sugerir que o movimento anti-extradição seja pró-capital por natureza — uma guerra por procuração entre a elite financeira de Hong Kong e o capital chinês —, mas esse não é o caso. No máximo, essas elites empresariais estão se surfando no suor e labuta dos manifestantes, compostos por estudantes, trabalhadores e cidadãos(as) comuns de Hong Kong.
Ainda assim, a visão política do movimento anti-extradição não é em hipótese alguma homogênea. Os dois protestos de domingo que quebraram recordes de comparecimento foram dominados por liberais. Os socialistas também ocuparam as ruas, embora em menor número. Muitos e muitos outros também compareceram, representando uma ampla extensão do espectro político. Porém, os mais notórios — e maiores em tamanho do que a esquerda em Hong Kong — têm sido os localistas de direita, conhecidos por menosprezarem a população da China continental e apoiarem políticas intolerantes em Hong Kong (exclusão de serviços públicos, leis de linguagem xenofóbica, etc.). O objetivo primário dos localistas é assegurar a independência de Hong Kong ou devolvê-la ao domínio britânico.
Os socialistas em Hong Kong se opõem às políticas xenofóbicas dos localistas. Em vez de virar as costas para os chineses, os socialistas exercem um papel ativo no apoio ao movimento trabalhista na China continental.
Devido ao controle estreito que o PCC exerce sobre o resto da China, membros de organizações chinesas dependem da esquerda de Hong Kong para reforçar seu movimento trabalhista. A autonomia e a proximidade do território com a China continental a tornam um espaço vital para conectar a força de trabalho censurada e hiper-oprimida na China ao resto da classe trabalhadora regional e global. Se o PL de extradição for aprovado, essa ligação crucial seria rompida. O esforço para construir uma classe trabalhadora progressista e transnacional seria severamente enfraquecido.
Embora os socialistas não tendo sido a maioria durante as manifestações deste mês, eles têm desempenhado um papel crucial em dar forma ao movimento e oferecer uma alternativa à narrativa hegemônica. Ao contrário dos liberais, os grupos socialistas têm apoiado táticas mais militantes, incluindo protestos sentados, bloqueios de estradas e a ocupação do gabinete central do governo.
Os grupos socialistas também têm construído alianças com os trabalhadores durante o movimento. Nos dias 12 e 17 de junho, eles apoiaram trabalhadores que urgiam os seus sindicatos pela organização de uma greve geral — a primeira vez que a ideia de uma greve generalizada por toda a cidade entrou nas discussões populares em Hong Kong.
As manifestações anti-extradição têm ressoado com muita gente em Hong Kong. Embora os manifestantes ainda estejam nas ruas, o projeto de lei foi suspendido temporariamente, e muitos cidadãos sentiram que sua voz foi ouvida. No entanto, conforme a China segue avançando sobre as liberdades civis e a autonomia legal do território, os grupos socialistas em Hong Kong precisam assumir a liderança no contra-ataque — e na construção de um movimento anticapitalista, anti-xenofobia que possa enfrentar não apenas o governo autoritário chinês, mas também as elites empresariais de Hong Kong.
Sobre os autores
J.S. Chen é membro da Coalizão de Trabalhadores de Tecnologia no Nordeste dos EUA.
Sherry Yuen-Yung Chan é uma escritora de Hong Kong e doutoranda em Sociologia na Universidade de Wisconsin-Madison.
Manifestantes protestam do lado de fora da sede da polícia de Hong Kong em 21 de junho de 2019 em Hong Kong, China. (Anthony Kwan / Getty Images) |
Tradução / Menos de cinco anos após a “Revolução dos Guarda-chuvas”, Hong Kong está de volta às manchetes internacionais. No dia 9 de junho, mais de um milhão de manifestantes vestidos de branco foram às ruas para se opor a um projeto de lei que autorizaria extradições à China. No domingo seguinte, estima-se que dois milhões de pessoas — quase 30% da população — foi às ruas novamente, dessa vez vestidos de preto.
A Chefe do Executivo de Hong Kong e apoiadora de Pequim, Carrie Lam, afirma que a medida de extradição seria necessária para fazer justiça no caso do homem de Hong Kong procurado pelo assassinato de sua namorada em Taiwan. Porém, o projeto tem despertado uma oposição imensa, com críticos insistindo que o Partido Comunista da China (PCC) o usaria para extraditar ativistas ou jornalistas dissidentes para a China continental. Em outras palavras, decorreria a abertura das comportas entre o sistema legal da China continental e de Hong Kong, possibilitando o sequestro de cidadãos de Hong Kong, com apoio do PCC.
A polícia respondeu aos protestos com força. Quando os manifestantes desencadearam um protesto sentado no dia 12 de junho, a data original para a segunda votação do PL, a polícia usou balas de borracha, cacetetes, spray de pimenta e gás lacrimogêneo para dispersá-los. Filmagens de manifestantes atingidos na cabeça por balas de borracha e jornalistas agredidos pela polícia vazaram para a internet. Para justificar a repressão, o governo de Hong Kong afirmou que as vítimas formavam um motim ilegal.
Ainda assim, apesar da brutalidade, os manifestantes permaneceram nas ruas, bloqueando o edifício do governo forçando Lam a ceder e suspender temporariamente o projeto de lei.
Depois disso, os manifestantes passaram a exigir que o governo de Hong Kong retrate sua caracterização dos protestos como motins e investigue o uso de força excessiva pela polícia.
Todo mundo sabe que há muito em jogo: um portal apelidou o movimento de “a última batalha de Hong Kong.”
A história da mobilização de massa em Hong Kong
A população de Hong Kong nem sempre foi conhecida pela mobilização em massa. Por muita de sua história moderna, a ex-colônia britânica foi vista como politicamente apática e um ambiente “estritamente de negócios” – um refúgio para a economia de livre-mercado e uma cidadania desmobilizada.
Na década de 1980, dois eventos marcantes mudaram isso. O primeiro ocorreu em 1984, quando a Declaração Conjunta Sino-Britânica selou o destino da colônia de retornar ao domínio chinês. O segundo veio em 1989, quando o PCC massacrou estudantes e trabalhadores na Praça da Paz Celestial.
A política de “um país, dois sistemas” tinha sido introduzida no início dos anos 80, dando ao povo de Hong Kong um alto grau de autonomia em relação a Pequim. Parte do objetivo era garantir a proteção de suas liberdades civis. No entanto, após o massacre de 1989, a população de HK deixou de confiar na promessa de Deng Xiaoping de que teriam mais “cinquenta anos do antigo modo de vida.”
Certamente, Pequim começou a aumentar seu controle sobre Hong Kong depois da transferência administrativa, e a população começou a se mobilizar.
Em 2003, o governo pró-Pequim de Hong Kong tentou decretar o “Artigo 23”, um PL infame que proibia “traição, secessão, sedição, [e] subversão” contra o governo chinês. Meio milhão de pessoas protestaram e suas reivindicações foram atendidas. O projeto de lei foi retirado, e o líder do executivo, Tung Chee-Hua, se demitiu. Foi a primeira vez que o povo de Hong Kong sentiu o gosto de seu poder coletivo.
A manifestação também marcou o fim da lua de mel de Hong Kong com Pequim. Depois disso, os ataques à autonomia de Hong Kong se tornaram mais frequentes e intensos.
Em 2012, o governo introduziu um projeto de lei que inseriria “educação moral e nacional” no cerne curricular das escolas primárias e secundárias. Estudantes criticaram o material como rigidamente pró-Pequim, e uma coalizão estudantil, a “Escolarismo” iniciou ondas de protestos sentados, manifestações e campanhas de boicote.
Em 2014, a Revolução dos Guarda-chuvas explodiu em seguida a uma proposta que permitiria ao PCC pré-selecionar candidatos para o principal posto em Hong Kong — um ataque direto à sua autonomia e à sua democracia, já bastante limitada. Pessoas se espalharam pelas ruas e ocuparam estradas próximas à sede do governo e ao distrito comercial central. Os manifestantes permaneceram por setenta e nove dias, exigindo sufrágio universal em eleições para a chefia do Executivo. Dessa vez tiveram menos sucesso — Pequim se recusou a permitir que Hong Kong se tornasse uma democracia liberal plena. O chefe do Executivo permanece uma posição inelegível, e somente parte da legislatura responde à vontade dos eleitores.
As manifestações recentes são um reflexo do desejo da população de Hong Kong de manter os direitos democráticos que ainda possui. Porém, ao contrário de movimentos anteriores, os protestos contra a lei de extradição se destaca pela sua relativa espontaneidade e falta de liderança. Embora a veterana coalizão dissidente Frente Civil pelos Direitos Humanos tenha convocado manifestações em domingos, muitos dos protestos sentados e ocupações mais militantes foram organizados por trabalhadores e estudantes de pouca ou nenhuma experiência de organização política. De fato, mesmo a recente ocupação da delegacia de polícia foi convocada por internautas sem nenhuma afiliação política clara.
É exatamente esse clima de relativa liberdade política que o PL de extradição ameaça. Sob a proteção de seu atual sistema legal, os estudantes podem criticar um currículo hiper-nacionalista, os jornalistas podem proferir visões dissidentes e os ativistas podem se organizar sem medo de “abdução”. O PL de extradição mudaria tudo isso – se aprovado, já não seria seguro para a população de Hong Kong ir às ruas e expressar seu descontentamento.
A relação de Hong Kong com a China
Para se compreender o atual movimento anti-extradição, é importante dissecar a relação de Hong Kong com a China — algo muito mais complexo do que “liberdade versus autoritarismo.”
Hong Kong, ao contrário da maioria das ex-colônias do Ocidente, se saiu muito bem depois do período de domínio colonial – mas a transição foi planejada para que o resultado fosse esse.
Nas duas décadas que antecederam à entrega em 1997, o governo de Hong Kong sob domínio britânico instituiu uma série de reformas, do sistema de saúde à habitação, que melhoraram a vida do povo. Foi implementada uma legislação trabalhista para criar estabilidade para os trabalhadores; a produção recebeu incentivos para impulsionar a cadeia de valor; o inglês passou a ser ensinado nas escolas para dar à futura força de trabalho acesso ao mundo ocidental. O objetivo era melhorar drasticamente a qualidade de vida da população e ampliar a distância econômica do território em relação ao resto da China para dificultar o governo para o PCC.
O resultado foi a alienação econômica e cultural em relação à China. Em 1997, Hong Kong se destacava do resto do país como uma cidade internacional e uma potência financeira, representando o capitalismo ocidental contra o pano de fundo da China Comunista.
Dada essa História, é fácil enxergar os protestos anti-extradição como uma luta entre uma Hong Kong capitalista, ocidentalizada e uma China socialista, acometida pela pobreza e tentando se libertar de grilhões imperiais.
No entanto, desde a política de portas abertas de Deng no início dos anos 90, a China se transformou de um país em desenvolvimento para uma superpotência global.
Apesar de se intitular comunista, o PCC aplica o que seria descrito mais precisamente como “capitalismo com características chinesas” — um tipo de capitalismo de Estado onde o poder político é convertido em ganhos capitalistas. E como qualquer Estado capitalista, o PCC faz o que for preciso para manter o status quo. Com Xi Jinping no poder, o Estado chinês tem aumentado seu controle tanto sobre a China continental quanto Hong Kong.
Na corrida pelo domínio econômico global, Xi tem impulsionado o projeto multi-bilionário de infraestrutura conhecido como Iniciativa do Cinturão e Rota — plantando as sementes para o controle econômico de toda a África e América do Sul e sinalizando o desejo da China de disputar diretamente com os EUA. Contudo, apesar das ambições imperiais do PCC, eles vestem suas ações com a linguagem do anti-imperialismo. Apoiadores elogiam o país como um contrapeso ao império estadunidense. Da mesma forma, para enfraquecer as manifestações anti-extradição, o PCC tem se retratado como vítimas do imperialismo ocidental, sugerindo que os protestos de Hong Kong são fruto do trabalho de governos ocidentais.
Entretanto, não devemos cair em uma preguiçosa (e perniciosa) postura anti-chinesa. Se o PL de extradição for aprovado, os nacionalistas ocidentais se sentirão incentivados a aplicar mais pressão sobre a China. Os EUA já ameaçaram cancelar o status especial de comércio econômico de Hong Kong, que hoje lhe dá acesso preferencial aos mercados estadunidenses. Isso provocaria Pequim e prejudicaria os residentes de Hong Kong no processo.
Em meio à guerra econômica em andamento e à caracterização da china como bode expiatório pelos problemas da ordem econômica global, os manifestantes devem rejeitar não só o autoritarismo chinês e sua vazia narrativa anti-imperial, como também as agressões nacionalistas ocidentais.
A política do movimento
Não é por acaso que a expansão de Pequim em Hong Kong tem tomado a forma de uma invasão econômica.
Ano passado, o governo pró-Pequim em Hong Kong levou em frente a “Visão de Lantau do Amanhã,” um projeto de infraestrutura em larga escala e imobiliário e que está deve custar $63.8 bilhões (cerca de metade das reservas finais de HK). O governo afirma que o plano vai resolver a crise de habitação da cidade, mas o dinheiro provavelmente será canalizado diretamente para as empresas de construção chinesas que devem desenvolver o projeto.
A Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, uma campanha econômica organizada por Pequim, é outro exemplo disso. O governo construiu uma mega-ponte que conecta Hong Kong à China continental e a Macau, ao custo de $20 bilhões de dólares. Para executar o projeto, o governo de Hong Kong foi forçado a cavar fundo em suas reservas financeiras para tornar a cidade um veículo ainda mais atraente para o dinheiro chinês.
Esses projetos beneficiam o capital chinês à custa do povo de Hong Kong — drenando dezenas de bilhões de dólares que poderiam ser gastos em iniciativas que de fato tornassem a cidade mais habitável para a população.
Geralmente, o governo autoritário da China está alinhado com os interesses da elite financeira de Hong Kong. No entanto, o PL de extradição expôs uma fissura surpreendente. Quando ela foi proposta em fevereiro deste ano, muitos membros das elites expressaram séria preocupação – mas sua oposição vem de um desejo de proteger sua própria riqueza — como deixado claro por sua apressada transferência de posses para outros países. Joseph Lau, um bilionário local, chegou ao ponto de pedir uma revisão judicial para desafiar o PL em março.
A rara oposição dos ultra-ricos de Hong Kong ao PL apoiado por Pequim pode sugerir que o movimento anti-extradição seja pró-capital por natureza — uma guerra por procuração entre a elite financeira de Hong Kong e o capital chinês —, mas esse não é o caso. No máximo, essas elites empresariais estão se surfando no suor e labuta dos manifestantes, compostos por estudantes, trabalhadores e cidadãos(as) comuns de Hong Kong.
Ainda assim, a visão política do movimento anti-extradição não é em hipótese alguma homogênea. Os dois protestos de domingo que quebraram recordes de comparecimento foram dominados por liberais. Os socialistas também ocuparam as ruas, embora em menor número. Muitos e muitos outros também compareceram, representando uma ampla extensão do espectro político. Porém, os mais notórios — e maiores em tamanho do que a esquerda em Hong Kong — têm sido os localistas de direita, conhecidos por menosprezarem a população da China continental e apoiarem políticas intolerantes em Hong Kong (exclusão de serviços públicos, leis de linguagem xenofóbica, etc.). O objetivo primário dos localistas é assegurar a independência de Hong Kong ou devolvê-la ao domínio britânico.
Os socialistas em Hong Kong se opõem às políticas xenofóbicas dos localistas. Em vez de virar as costas para os chineses, os socialistas exercem um papel ativo no apoio ao movimento trabalhista na China continental.
Devido ao controle estreito que o PCC exerce sobre o resto da China, membros de organizações chinesas dependem da esquerda de Hong Kong para reforçar seu movimento trabalhista. A autonomia e a proximidade do território com a China continental a tornam um espaço vital para conectar a força de trabalho censurada e hiper-oprimida na China ao resto da classe trabalhadora regional e global. Se o PL de extradição for aprovado, essa ligação crucial seria rompida. O esforço para construir uma classe trabalhadora progressista e transnacional seria severamente enfraquecido.
Embora os socialistas não tendo sido a maioria durante as manifestações deste mês, eles têm desempenhado um papel crucial em dar forma ao movimento e oferecer uma alternativa à narrativa hegemônica. Ao contrário dos liberais, os grupos socialistas têm apoiado táticas mais militantes, incluindo protestos sentados, bloqueios de estradas e a ocupação do gabinete central do governo.
Os grupos socialistas também têm construído alianças com os trabalhadores durante o movimento. Nos dias 12 e 17 de junho, eles apoiaram trabalhadores que urgiam os seus sindicatos pela organização de uma greve geral — a primeira vez que a ideia de uma greve generalizada por toda a cidade entrou nas discussões populares em Hong Kong.
As manifestações anti-extradição têm ressoado com muita gente em Hong Kong. Embora os manifestantes ainda estejam nas ruas, o projeto de lei foi suspendido temporariamente, e muitos cidadãos sentiram que sua voz foi ouvida. No entanto, conforme a China segue avançando sobre as liberdades civis e a autonomia legal do território, os grupos socialistas em Hong Kong precisam assumir a liderança no contra-ataque — e na construção de um movimento anticapitalista, anti-xenofobia que possa enfrentar não apenas o governo autoritário chinês, mas também as elites empresariais de Hong Kong.
Sobre os autores
J.S. Chen é membro da Coalizão de Trabalhadores de Tecnologia no Nordeste dos EUA.
Sherry Yuen-Yung Chan é uma escritora de Hong Kong e doutoranda em Sociologia na Universidade de Wisconsin-Madison.
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