28 de junho de 2019

Honduras é um espelho para toda a América Latina

Honduras está sob uma década de ditadura, com seu golpe de 2009 anunciando uma maré reacionária em toda a América Latina. A solidariedade internacionalista e antiimperialista é desesperadamente necessária.

Uma entrevista com
Luis Méndez

Traduzida por
Hilary Goodfriend


O ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya fala na Universidade George Washington sobre democracia e o golpe hondurenho em 2 de setembro de 2009 em Washington, DC. (Win McNamee / Getty Images)

O dia 28 de junho representa um marco sombrio em Honduras: dez anos de ditadura, de tragédia e resistência, de protesto e repressão. O golpe de Estado de 2009 que derrubou o presidente eleito democraticamente, Manuel Zelaya, carregava ecos estranhos dos dias mais sombrios da guerra apoiada pelos EUA na América Central, e provou ser um precursor da contra-revolução de direita na região.

Nas palavras de Dana Frank, “Honduras foi o primeiro dominó que os Estados Unidos pressionaram para combater os novos governos na América Latina.” Depois que os militares derrubaram Zelaya, golpes parlamentares derrubaram governos democráticos progressistas no Paraguai e no Brasil, e embaixadores reacionários do capital, desde então, subiram ao poder em eleições por todo o continente.

Em 2018, o pesquisador salvadorenho-brasileiro Aleksander Aguilar Antunes entrevistou o ativista hondurenho Luis Méndez para o e-book Golpe electoral y crisis política en Honduras (Golpe eleitoral e crise política em Honduras) do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais - CLACSO). Em sua introdução, Aguilar Antunes escreve:

Carmen Elena Villacorta (...) definiu Honduras como o espelho da América Central. Quase dez anos depois do episódio que desencadeou o golpe, isto é, desde a derrocada e expulsão do país do presidente Manuel Zelaya, é possível pensar em Honduras como o espelho não só da América Central, mas de toda a América Latina. A reacomodação de atores políticos reacionários em diferentes contextos nacionais em todo o continente, o que na prática significou perdas amplas e perigosas em termos de políticas sociais e direitos humanos, vem ocorrendo de diferentes formas: impeachment, fraudes eleitorais e golpes de estado. 
Honduras tem sido um laboratório para essas reconfigurações, assim como diferentes lugares da América Central têm sido historicamente. Se isso é em parte culpa da direita, é também culpa da esquerda, que no poder colocou todas as suas fichas no neodesenvolvimentismo, reduzindo o horizonte da emancipação social ao progressismo. O progressismo baseia-se fundamentalmente em práticas extrativistas corporativas, estatais ou privadas que financiam políticas públicas, e o extrativismo é a morte e o deslocamento territorial. Assim, a regressão que vemos hoje dificilmente poderia ser diferente.

À medida que a esquerda latino-americana se refere às suas falhas em construir uma base sustentável para um projeto político transformador, as elites apoiadas pelos EUA começaram a libertar território para o capital às custas das populações e ecossistemas mais vulneráveis da região. Em Honduras, cuja história e paisagem já foram marcadas por plantações da United Fruit e bases militares dos EUA, este projeto assumiu uma forma particularmente brutal.

O regime pós-golpe foi pioneiro em novos modos dramáticos de extração neoliberal militarizada, desde megaprojetos e monoculturas a cidades charter. A crescente violência do crime organizado - na qual o regime está profundamente implicado - juntamente com a repressão do Estado contra dissidentes provocaram um êxodo de refugiados, que viajaram juntos em uma série de caravanas de alto perfil através do México para buscar asilo na fronteira com os EUA. Apesar de sua eleição fraudulenta em 2017, um desfile de escândalos de corrupção e incansáveis protestos populares, o presidente Juan Orlando Hernández (JOH) permanece no poder. Nas últimas semanas, as iniciativas de privatização provocaram uma onda renovada de mobilização de massa e militância nas ruas. Greves nacionais lideradas por professores e profissionais de saúde foram recebidas com violência por forças de segurança treinadas pelos EUA. Em Tegucigalpa, manifestantes incendiaram o exterior da embaixada dos EUA.

Nesse contexto, os movimentos de resistência deram origem a um novo ator político: a Plataforma por la Defensa de la Salud y la Educación (Plataforma pela Defesa da Saúde e da Educação). A Plataforma reúne trabalhadores do setor público, movimentos sociais tradicionais e novos, e a liderança e membros do partido de oposição Libre juntos em uma nova frente formidável contra o regime, pedindo o fim das reformas de privatização, bem como a renúncia de JOH. Em um recente artigo para a red-plataforma centroamericanista “O Istmo”, coordenada por Aguilar Antunes, Luis Méndez escreve que a Plataforma está “criando as condições para a construção de poder popular real a partir de baixo, capaz de dar um salto qualitativo para novos cenários de contra-poder, e possivelmente um novo episódio na disputa pelo poder no curto prazo”.

Méndez está na linha de frente do levante em Honduras. Educador e artista popular que trabalha com educação política e memória histórica, Méndez ajudou a fundar a escola política da Frente Nacional de Resistencia Popular (FNRP) (Frente Nacional de Resistência Popular - FNRP) e seus primeiros coletivos populares de resistência. Em sua conversa de 2018 com Antunes, Méndez fornece insights sobre o terreno em mutação da luta, bem como uma discussão oportuna da relação tensa entre os movimentos e os partidos políticos criados para servi-los. A entrevista também serve como um guia para a história da resistência e nos ajuda a entender a dinâmica que conduz sua configuração atual na Plataforma.

Para a esquerda dos EUA, a crise em Honduras revela a natureza inextricável da política externa e interna e a necessidade urgente de um antiimperialismo internacionalista e centrado na solidariedade. (Podemos começar exigindo que o Congresso aprove a Lei Berta Cáceres). Como esta entrevista mostra, também oferece lições importantes sobre os desafios e as possibilidades de construção de poder.

Méndez salienta que “sem internacionalismo, sem a solidariedade dos povos do mundo, Honduras não seria nada mais do que uma catástrofe”. Este aniversário sombrio é um momento tão bom quanto qualquer outro para renovar nosso compromisso.

- Hilary Goodfriend

Aleksander Aguilar Antunes

A FNRP é uma organização sócio-política de Honduras que surgiu em resposta ao golpe de 2009, quando o presidente Manuel Zelaya foi detido por militares e exilado para a Costa Rica, o que provocou um processo de organização entre os apoiadores do presidente e setores populares, sindicalistas e progressistas, que repudiaram o golpe e tomaram as ruas de Tegucigalpa para protestar. 

Desse processo de luta surgiu o Partido Libertad y Refundación (Libre) em 2012. Depois de muitas manobras, o governo golpista acabou oficializando-se no Congresso Nacional, permitindo a eleição de Porfirio Lobo (candidato da direita) e continuando com os procedimentos institucionais que culminaram com a reeleição fraudulenta de Juan Orlando Hernández (JOH). 

Com essa trajetória e nesse contexto, qual é a situação atual da FNRP, qual a sua avaliação dessa experiência? Até que ponto as atuais lutas hondurenhas estão ligadas ao que foi feito e ao que é a FNRP?

Luiz Méndez

Um ponto preliminar e importante para contextualizar a situação do FNRP parte de alguns elementos-chave: à conformação FNRP lhe antecederam a Coordinadora Nacional de Resistencia Popular e o Bloque Popular, que inicialmente reuniram amplos setores do movimento social e popular em uma etapa que vai desde a entrada do neoliberalismo na região (década dos anos noventa) e a luta popular contra os acordos de livre comércio na América Central, até a ruptura da institucionalidade com o golpe de 2009. Naquele ano se conformou a Frente Nacional contra el Golpe de Estado e, em seguida, se fundou a FNRP um acúmulo de força do poder popular que culminou na formação de um instrumento político-eleitoral definido como Partido Libertad y Refundación (Libre).

Acho que da pergunta que você me faz, surge outra talvez um pouco desconfortável, mas que é necessário responder: o FNRP realmente existe hoje? Faço esta pergunta a partir de um argumento principal que parte da etapa fundacional da FNRP, concebida como um grande corpo que conseguiu incorporar diferentes atores políticos, sociais e populares com uma posição política e ideológica fortemente anti-capitalista, anti-oligárquica, antiimperialista, anti-patriarcal e anti-racista.

Em outro sentido, uma Frente Nacional de Resistência Popular com eixos-chave para o avanço estratégico: formação política, organização e mobilização popular, com uma clara ideia de seu projeto de construção do poder popular, da refundação do Estado e um de novo pacto social que passava por uma Assembléia Nacional Constituinte original e refundacional. Desta FNRP original à FNRP de hoje, acredito que a situação tem marcado e desalojado não apenas o sentido orgânico de suas estruturas locais, nacionais e de coordenação, mas também o projeto de frente estratégica. Sob essa ideia de transformar a FNRP em um grande corpo e o Partido Livre em um braço político eleitoral, a realidade mostrou, ao longo do tempo, que "o braço político subsumiu o corpo".

Em períodos subsequentes, e após as derrotas por fraude eleitoral, as forças populares enfrentaram uma fragmentação de forças, de ideias e de líderes, bem como recuaram diante de um panorama preocupante marcado por uma falta de liderança política estratégica e incerteza em relação ao projeto de articulação do poder popular. Portanto, embora o FNRP exista como uma estrutura nominal e seja um projeto histórico e exemplar de máxima relevância após o golpe de 2009, é também um projeto transitório para outras formas de organização popular que rejeitam as formas monodirecionais e verticais de liderança que caracterizam movimentos sociais tradicionais e até novos.

Não foi surpresa que, após a fraude eleitoral de 2017, durante o período de revoltas territoriais em todo o país, a FNRP não tenha tido um papel como espaço de articulação nesse processo. Dada a ausência de uma frente de luta, surgiu uma convergência contra a continuidade do regime e a fraude eleitoral; um espaço amplo que conseguiu articular organizações e movimentos tanto no setor social popular, quanto na Aliança da Oposição.

Em etapas posteriores, e após as derrotas por fraude eleitoral, as forças populares enfrentaram um fracionamento de forças, de ideias e de referentes, e recuaram diante de um panorama sombrio de ausência de liderança política e estratégica, de incerteza sobre a projeto articulador da força popular. Portanto, posso concluir que a FNRP, embora seja verdade que exista como estrutura nominal e que constitua um projeto histórico e referencial de grande relevância após o golpe de 2009, é também um projeto transitório para outras formas de organização das forças populares que rejeitam formatos unidirecionais e verticais de condução, típicos de movimentos sociais tradicionais e até novos. Não é de estranhar que, antes da fraude eleitoral de 2017, na fase de insurreições territoriais em nível nacional, a FNRP não atuasse como espaço articulador do processo. Na ausência de uma frente de luta, houve uma convergência contra a continuidade e a fraude eleitoral; um amplo espaço que conseguiu articular organizações e movimentos do setor social popular e da Aliança de Oposição.

Os primeiros três meses de luta popular e de rua contra a fraude eleitoral de JOH no final de 2017 e início de 2018 foram bastante intensas, mas também enfrentaram uma série de repressão, violência e perseguição. Hoje, a população de Honduras tem medo de apresentar queixas porque a captura do sistema de justiça por forças poderosas alinhadas com JOH gerou um ambiente de criminalização do protesto social. Os líderes da oposição e da resistência foram acusados ​​de "terrorismo" e perseguidos em suas próprias casas. 

Nesta conjuntura política, os levantes territoriais das massas populares conscientizadas, a insurreição e a desobediência civil continuam sendo as formas mais indicadas de luta? Você acredita que a única maneira possível de sair da crise hondurenha ainda é a "rebelião popular", como indicou em seu texto "Honduras pós-eleitoral em crise; consolidação ou fim da ditadura nascente", publicado em 17 de janeiro de 2018?

A rebelião popular e as revoltas territoriais representam um caminho legítimo para os povos conterem e, no melhor dos casos, derrubarem o projeto de morte do atual regime ditatorial de Juan Orlando Hernández. Levantamentos territoriais que vão além da defesa do voto, dos processos eleitorais; revoltas territoriais que passam pela defesa da vida, dos bens comuns da natureza, do público. Nesse sentido, apoio a tese da insurreição popular como forma legítima, de fato e de direito, conforme estabelecido no artigo 3º da Constituição da República:

"Artigo 3. Ninguém deve obediência a um governo usurpador ou àqueles que assumem funções públicas ou empregos por força das armas ou usam meios ou procedimentos que violam ou ignoram o que esta Constituição e as leis estabelecem. Os atos verificados por tais autoridades são nulos. As pessoas têm o direito de apelar à insurreição em defesa da ordem constitucional."

Para a ditadura de JOH, essas formas de rebelião popular e autodeterminação dos povos representam uma ameaça ao status quo e à sua já debilitada credibilidade nacional e internacional, portanto, é mais fácil para o regime sujeitar o povo a uma ditadura estatal, de terror e morte, que abandonar seu projeto continuista.

A rebelião popular e as revoltas territoriais que temos visto depois das eleições de 2017 aconteceram de maneira organizada e desorganizada, em situações espontâneas ou condicionadas pela conjuntura. Nestes processos autoconvocados a população procura mecanismos de organização e defesa, rejeitando inclusive a liderança de dirigentes esgotados ou desacreditados, tanto de partidos políticos como de organizações do próprio movimento popular.

O atual ambiente sociopolítico em Honduras continua marcado pelo conflito e pela violência, que tem sido uma característica do país há algum tempo e se tornou a tônica cotidiana desde que as mobilizações populares foram amplificadas e intensificadas em face dos obscuros resultados das eleições presidenciais de novembro de 2017. A novidade dos processos de luta hondurenhos, no entanto, é a aparente falta de estratégia da atual oposição - liderada pelo candidato “derrotado” Salvador Nasralla, pelo presidente hondurenho deposto em 2009, Mel Zelaya, e pelo Partido Libre - para obter respostas contundentes e construtivas às suas demandas. 

Na sua opinião, essa leitura está correta? A oposição partidária não conseguiu impulsionar o poder e a disposição para as lutas de rua e os protestos populares da sociedade hondurenha?

Honduras tem uma história de golpes, enclaves e cálculos políticos. E essa colonialidade das formas de se fazer política eleitoral carrega uma impressão marcada pela história do caudilismo, que neste momento, como das outras vezes em nossa história política, faz mais mal do que bem para os processos emancipatórios.

O triunfo da greve de 1954 foi que ela foi liderada pelos trabalhadores, pelos comitês de greve, pelos comitês locais. Ao contrário do que aconteceu em 2009 e 2017, o movimento social e popular organizado e as populações desorganizadas têm estado em uma espécie de vagão de um projeto devido à disputa pelo poder. Portanto, as forças populares, com falta de autonomia e autodeterminação diante da crise e frente à disputa de poder, criam uma dependência excessiva das lideranças politicamente instáveis ​​ou excessivamente calculistas.

Nesse sentido, sim, há uma ausência de liderança estratégica, de um plano mínimo de luta que permita às forças populares avançar em seu verdadeiro projeto de poder popular.

Temos lido relatos sobre como o investimento estrangeiro em projetos extrativistas no país (represas e empresas de mineração) foi paralisado ou diminuído devido a denúncias de violações de direitos humanos e impunidade após a execução da ativista Berta Cáceres em 2016, fato que teve grande repercussão internacional. No entanto, sob sua influência e de outros líderes, os povos indígenas do país, na defesa de seus territórios contra as políticas extrativistas, foram rotulados como "oponentes do desenvolvimento". 

Esse preconceito foi estendido a outros setores de luta, coletivos e indivíduos que denunciam concessões ilegais e exigem a investigação das mortes de defensores de territórios? Qual o impacto do assassinato político de Berta Cáceres na organização das lutas sociopolíticas em Honduras?

Berta mostrou um horizonte não só para a resistência hondurenha, mas também para as resistências do mundo. Berta é todas as lutas porque aposta em todos os processos orientados para a emancipação dos povos.

Berta, o Consejo Cívico de Organizaciones Populares e Indígenas de Honduras (COPINH) e a resistência de Río Blanco contiveram e removeram o monstro da Sinohydro e da Desarrollos Energéticos S.A. de C.V. (DESA), uma empresa com capital hondurenho que, com um empréstimo de 24,4 milhões de dólares concedido pelo Banco Centro-Americano de Integração Econômica (BCIE), subcontratou a empresa chinesa Sinohydro, pertencente ao grupo Power Construction Corporation da China. Foi uma vitória do povo Lenca em defesa dos bens comuns da natureza. Berta em defesa da floresta, Berta em sua luta contra as tropas dos EUA em Honduras, Berta antipatriarchal, anti-racista, anti-imperialista, anticapitalista.

Essa é uma das dimensões de Berta, de seu legado que renasce em cada luta. Diante disso, o discurso dos negócios, dos grupos políticos e transnacionais e da mídia castrada pelo capital vai na linha de rotular aqueles que defendem os territórios como "oponentes do desenvolvimento", sob a lógica de seus próprios conceitos de "desenvolvimento", de um desenvolvimento centrado na morte, aniquilação e acumulação de capital.

Por essa razão, a empresa privada, em conluio com o Estado de Honduras, assassinou Berta. Nisso somos vigorosos ao afirmar que o assassinato de Berta foi um crime estatal.

Ela foi pioneira do projeto refundacional, iniciadora das revoltas territoriais. Depois de Río Blanco, outras revoltas foram escalonadas em vários lugares: no norte, sul, leste e oeste, e em todas as lutas o espírito de Berta, sua visão cosmogônica da vida, está presente. Berta sempre falou da força ancestral, força e legado que hoje possibilitam a construção de unidade, consensos e lutas.

O caso da Misión contra la Corrupción y la Impunidad de Honduras (MACCIH) parece emblemático no debate sobre o peso dos fatores internacionais e geopolíticos na crise hondurenha. A iniciativa, que foi inspirada na CICIG guatemalteca, foi recebida pelas forças de oposição e resistência com desconfiança, com críticas assinalavam que o seu objectivo era mitigar o descontentamento social, desmobilizar os cidadãos e ganhar tempo para se conseguir a re-eleição.

No entanto, a MACCIH desvendou alguns casos de corrupção, julgou culpados e exigiu responsabilidade civil e criminal, que se tornou uma ameaça para o JOH e seus aliados do poder legislativo e judicial (revelou que os deputados se apropriaram de fundos públicos destinados a ONGs para implementar ações com comunidades, que eram de fato falsas e não executadas; até agora pelo menos trinta ONGs e sessenta deputados estão envolvidos). 

Que análise você faz do contexto em que o país está inserido e a influência desses fatores na evolução da crise atual?

A Organização dos Estados Americanos (OEA) desempenhou, historicamente, um papel de curinga para os interesses hegemônicos do imperialismo e da direita no continente e, no caso do pós-golpe de 2009, desempenhou um papel semelhante ao do Acordo de San José, do Pacto de Guaymuras e, posteriormente, do Acordo de Cartagena.

A MACCIH surgiu como uma missão contra a corrupção e a impunidade com um papel de "acompanhamento", disse o regime, como um argumento para diminuir sua beligerância. Até agora, o roteiro do regime foi bem planejado, mesmo para o próprio Luis Almagro (atual Secretário Geral da OEA), que calculou que a missão em Honduras estava totalmente subordinada às suas decisões.

No entanto, a realidade ultrapassou qualquer cálculo político e a MACCIH, que a princípio não foi bem recebida pelo povo hondurenho, nem pelo movimento de indignação por causa da história da OEA (pela proximidade desta com grupos de uma suposta e impostada sociedade civil), essa MACCIH que não era bem quista no início, começou a dar mostras de autonomia e independência, e com as primeiras denúncias e abordagens contundentes de querer ir à raiz dos problemas, de nomear as redes de crime organizado no interior do próprio governo, a população passou a dar um voto de confiança, especialmente quando apontou para a rede de deputados como ponta de lança ou fio para alcançar a gigantesca rede de corrupção no Congresso Nacional.

Este tremor fez com que o governo, que havia solicitado a MACCIH, se tornasse detrator desta, sob o argumento de defesa da "soberania", a tal ponto que o Supremo Tribunal julgou procedente o recurso de inconstitucionalidade contra a Missão. Posteriormente, com a chegada de Luis Almagro e sua hipocrisia, alguns dos membros da equipe técnica foram marginalizados e demitidos da Missão, incluindo seu porta-voz, Juan Jiménez Mayor.

A MACCIH abalou tanto as redes de corrupção que, com a prisão da ex-primeira dama, Rosa de Lobo, e privação de seus bens (incluindo a casa que pertenceu ao ex-presidente Porfirio Lobo), e diante da denúncia da corrupção à rede de deputados, o Congresso tentou revogar a Ley de Privación de Bienes, a fim de proteger suas estruturas de corrupção. Essa ação foi vetada pelo regime mais pela pressão da comunidade internacional e dos próprios Estados Unidos do que por um interesse da ditadura.

Neste cenário de crise, a hipocrisia da comunidade internacional também desempenhou seu papel, por um lado endossando a fraude eleitoral e, por outro lado, tentando conter a corrupção, senão em geral, em grande parte da estrutura do Estado. Uma comunidade internacional que evitou ir à raiz do problema.

Na região da América Central, e em outras áreas geográficas, vimos e até participamos de alguns atos de apoio e solidariedade internacional com o povo de Honduras em resistência ao golpe de 2009 e contra a fraude eleitoral de 2017.

Isso teve algum significado ou impacto em Honduras? Qual tem sido a importância desse internacionalismo nos momentos mais fortes dos protestos de rua?

Sem o internacionalismo, sem a solidariedade dos povos do mundo, Honduras não seria nada mais do que uma catástrofe, um pandemônio político e social.

No caso da fraude eleitoral de 2017, o papel desempenhado pelos movimentos sociais, partidos políticos progressistas e meios alternativos, assim como outros atores do internacionalismo latino-americano e de outros continentes, foi extraordinário. Eles levantaram suas vozes em todo o mundo denunciando não apenas uma fraude endossada pela OEA e pela União Européia, mas também ameaças, perseguições e assassinatos contra a resistência anti-JOH e a violação permanente dos direitos humanos.

Em 2015, depois que o desvio do Sistema de Saúde se tornou público (mais de 335 milhões de dólares),surgiu um movimento de indignação de grande magnitude. Sua expressão principal foi a Marcha das Tochas, que por alguns meses - quando JOH já era presidente do país e ressoavam os gritos de "Fora JOH!" - reuniu milhares de pessoas em intensos protestos de rua para denunciar a pilhagem do Instituto Hondureño de Seguridad Social (IHSS) e, deliberadamente buscando afastar-se de partidos institucionais e tradicionais, tornou-se um símbolo de um possível "despertar" da cidadania em face das ausências e má gestão do Estado hondurenho. 

Após a "incorporação" de partidos políticos ao movimento, as tochas foram divididas em dois grupos: a Plataforma Indignada e Honduras Indignado Somos Todos. Qual é a relação dessas mobilizações com as lutas contra a fraude em 2017? Os atores políticos envolvidos na época e hoje eram e são diferentes? Qual feedback ocorreu entre aqueles momentos intensos de protesto e ação direta em um período de apenas dois anos?

O roubo ao IHSS foi um gatilho para "outro despertar" da cidadania, uma espécie de "abalo" à consciência individual e coletiva da população em defesa do público e contra a corrupção. A Marcha das Tochas significou isso, mas também representou uma ruptura na dinâmica motriz dos movimentos sociais tradicionais (movimento sindical, camponês e dos professores) e o nascimento dos novos. Poderíamos até pensar que esses processos de indignação se tornaram um aspecto muito característico dos últimos movimentos sociais, que possuíam certas forças, mas também fraquezas de natureza estratégica.

Os partidos políticos, direta ou indiretamente, estavam sempre presentes no movimento de indignação; a juventude que liderou o processo desde o início foi composta por militantes de partidos da oposição (Libre, Partido Anticorrupción (PAC), 11 Liberal, Partido Innovación y Unidad (PINU)). De alguma forma, a maior crise que esse movimento gerou foi o deslocamento dos "velhos" líderes da mesma FNRP, que não conseguiam se colocar à frente da liderança, ser a vanguarda do movimento, que trouxe uma crise devido à disputa pelo poder

Plataforma Indignada, Honduras Indignado Somos Todos e Oposición Indignada foram coletivos cujos militantes assumiram um papel importante no planejamento das convocatórias, na mobilidade da informação e no posicionamento nas redes sociais. Lamentavelmente, com a chegada do MACCIH, mais a conjuntura eleitoral, a pressão da rua foi interrompida e certos líderes desses movimentos passaram a fazer parte das listas político-eleitorais de seus partidos.

A zona norte entrou em outra dinâmica, uma de maior autonomia, com maiores níveis de organização e sustentabilidade da luta por meio das Mesas de Indignación, que hoje continuam realizando ações de mobilização popular. O movimento dos indignados levantou a bandeira com o slogan "Fora JOH!", que, mais do que um slogan, tornou-se um ponto de consenso e unidade para o avanço das forças populares.

Em relação à questão anterior e ampliando-a, uma característica das lutas hondurenhas nesse período de 2015 que chamou a atenção dos cientistas sociais foi a presença de muitos jovens, especialmente universitários - que não querem se associar a uma militância partidária específica - e o apelo à mobilização através de redes sociais e ferramentas digitais. Isso continuou a ser uma marca das lutas a partir de 2017? A juventude e a tecnologia digital consolidaram sua presença nas atuais lutas políticas hondurenhas?

Se há uma força motriz da mobilização popular nesta etapa, é apropriado mencionar e reconhecer o papel do movimento estudantil universitário, que não apenas defendeu permanentemente a autonomia universitária, mas também apoiou as lutas de outros setores em defesa do público e acompanhou organizações e movimentos populares. Em meio às contradições internas que o movimento estudantil apresentavam, os jovens demonstraram que é possível avançar organicamente sem os formatos "caudilhistas" típicos de organizações e movimentos politicamente disfuncionais, nichos de segurança e privilégios para certos líderes.

Em um país onde setores da "liderança" do movimento sindical concordaram com o regime ao ponto de fazer reconhecimentos públicos aos funcionários da ditadura, o que resta senão a indignação, o desconforto no imaginário coletivo, o desânimo diante dos líderes "traidores" do movimento?

Nesse sentido, a juventude universitária, mas também a juventude de outros movimentos e organizações sociais e políticas, denota uma profunda repulsa a essas lideranças que controlam não apenas o movimento sindical, mas outros espaços sociais e populares. Tampouco significa que o movimento estudantil não esteja exposto aos infiltrados, mas, diante do dilema da ausência de referentes, esse movimento explode com formas mais democráticas e horizontais na tomada de decisões, com a plena convicção de que é possível avançar na defesa do público sem pactos sombrios ou compromissos com o regime; em suma, a juventude representa uma face ética da luta, e isso já é um avanço.

Finalmente, o que exatamente significa a proposta de uma "Assembléia Nacional Constituinte original e refundacional"? Quem são seus promotores, como se originou e qual é o estado atual de sua discussão e viabilidade em Honduras?

Voltamos ao ponto de partida. No estágio fundamental da FNRP, houve uma divisão, de modo que duas escolas de pensamento foram criadas. Um deles, mais sistêmica, propôs caminhar para a tomada do poder sob a dinâmica de uma institucionalidade presa pelo golpe (Tribunal Supremo Electoral, Corte Suprema, Ministerio Público e todas as instituições subordinadas ao Poder Executivo), e dalí travar a batalha com um instrumento político eleitoral que surgiu precisamente da assinatura do Acordo de Cartagena.

A outra corrente, "refundacional" (cujos membros na maior parte vieram da Coordinadora Nacional de Resistencia Popular), levantou precisamente o oposto como uma solução para a crise, o colapso da institucionalidade pós-golpe de 2009: um componente originária e refoundacional, em contraposição a uma constituinte derivada que defendeu a FNRP durante processos de assembleias no ano de 2011. Este foi um ponto de inflexão, de contradição profunda que significou a ruptura do movimento refundacional com a estrutura de coordenação da FNRP.

O Espacio Refundacional propôs um processo de auto-convocação constituinte e a mobilização permanente como formas de remover a ditadura do poder, o que aconteceu então? Uma seção do movimento popular relacionada ao Bloque Popular estava alinhada com a liderança do ex-presidente Manuel Zelaya como coordenador geral da FNRP, e outro setor, cujos membros em sua maioria vinham da Coordinadora Nacional de Resistencia Popular, aderiu ao Espacio Refundacional. De algum modo, naquele tempo formaram-se duas frentes, uma mais sistêmica, que apostaria pela via eleitoral, e outra mais anti-sistêmica, que não via condições naquele momento de realizar uma batalha eleitoral sob as regras do golpe.

Berta Cáceres do COPINH, Miriam Miranda da OFRANEH, Magdalena Morales da CNTC, padre Fausto Milla do Instituto Ecuménico de Servicios a la Comunidad (INEHSCO), padre Ismael Moreno do Equipo de Reflexión, Investigación y Comunicación de la Compañía de Jesús (ERIC), Tomas Andino do Partido Socialista de los Trabajadores (PST), entre outros atores do movimento popular, foram fundamentais para promover a ideologia de um projeto refundacional marcado por lutas territoriais em defesa dos bens comuns da natureza, por processos populares auto-convocados, pela construção do poder a partir de baixo e por outras formas de pensar a política e o poder.

Para concluir, penso que a partir desse estágio pós-golpe, e apesar das contradições entre uma linha eleitoral e uma linha refundacional, o projeto político eleitoral assumiu uma identidade a meio do caminho em relação com a refundação e definiu o Partido Libre como um instrumento político eleitoral, que na minha opinião constituiu uma contribuição refundacional para a ideologia política do partido.

Naquele momento, nem a liderança, nem a militância do partido compreendiam em profundidade a categoria de "refundação", como um exercício dialético, para começar, e depois como uma prática militante; menos ainda o conceito de auto-convocação ou revoltas territoriais como fatos concretos de luta, já que eram propostas políticas construídas a partir do Espacio Refundacional, onde as chamadas "refundas" formavam sua própria estrutura orgânica e sua própria identidade, razão pela qual falavam então de uma linha "re-fundacional" e uma corrente "eleitoral" que surgiu após o golpe de 2009. Em 2018 a contradição continua.

Sobre o autor

Luis Méndez é poeta hondurenho, artista e educador popular. É fundador da escola política da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) e de seus primeiros coletivos populares de resistência.

Sobre o entrevistador

Aleksander Aguilar Antunes é linguista e jornalista salvadorenho-brasileiro. É pesquisador de pós-doutorado no programa “Pueblos in Movimiento” da Asociación Latinoamericana de Sociología (ALAS) e fundador e coordenador da plataforma centro-americanista “O Istmo”.

Sobre a tradutora

Hilary Goodfriend é aluna de doutorado em Estudos Latino-Americanos da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) na Cidade do México.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...