23 de novembro de 2018

O socialismo é pelo humanismo real

O objetivo do socialismo é tão simples quanto belo: a libertação de todas as pessoas da dominação, substituindo os sonhos atrofiados e a alienação pelo florescimento humano e pela criatividade ilimitada.

Adam J Sacks


"A Vendedora de Flores (Menina com Lírios)" por Diego Rivera

Tradução / Marx tinha um olhar aguçado para enxergar o coração, num mundo sem coração. Desde muito cedo ele se preocupava com as maneiras como o capitalismo submerge os “problemas humanos” na luta pela sobrevivência material. Ele ansiava pelo dia em que esses problemas ficariam mais claramente em foco, quando o véu opressivo do capitalismo tivesse sido levantado e uma “sociedade humana” finalmente passasse a existir.

Numa época em que os socialistas estão novamente sendo chamados a explicar sua política, é importante lembrar que o socialismo sempre foi e continua sendo um movimento humanista que busca libertar as pessoas da dominação e da exploração – promovendo o florescimento individual, a criatividade e até mesmo o crescimento espiritual, no lugar de sonhos atrofiados e alienação.

Os socialistas há muito tempo têm mantido esses objetivos. Quando o socialismo surgiu como um movimento de massas no final do século XIX, não era incomum ouvi-lo sendo proclamado como o maior avanço do humanitarismo desde o Novo Testamento. O socialismo, seus adeptos pensavam, poderia proporcionar a renovação da consciência necessária para salvar a sociedade.

No início do século XX, o socialista alemão Leo Kestenberg adotou o lema “educação para a humanidade”, numa Europa que enfrentava o dilúvio do fascismo. Ele esperava que a luta pelo socialismo pudesse servir de ponte para um novo humanismo radical, uma sociedade que recompensasse a bondade em vez da exploração. Karl Kautsky, chamado de “Papa do Marxismo”, invocava a noção de uma “consciência socialista”, como um meio de “salvar a nação” (ele tinha em mente os EUA).

Várias décadas depois, no seu primeiro discurso para o Parlamento chileno como presidente, Salvador Allende, num tom arrebatador semelhante ao de Kautsky, descreveu o socialismo como uma “missão” que poderia infundir significado no país:

“Como as pessoas em geral – e os jovens em particular – podem desenvolver um senso de missão que inspire neles uma nova alegria de viver e que dê dignidade à sua existência? Não há outra maneira senão nos dedicarmos à realização de grandes tarefas impessoais, como a tarefa de alcançar um novo estágio na condição humana, até agora degradada por sua divisão entre privilegiados e despossuídos... Aqui e agora, no Chile e na América Latina, temos a possibilidade e o dever de liberar energias criativas, particularmente as energias da juventude, em missões que nos inspirem mais do que qualquer outra no passado.”

Aí está o coração da filosofia marxiana: o elã do sujeito humano, o esforço inspirado rumo ao crescimento.

Rosa Luxemburgo, a grande socialista polaco-alemã, personificando esse impulso na sua própria maneira de viver, escreveu a um camarada:

“Ser um ser humano significa atirar alegremente toda a sua vida ‘nas escalas gigantescas do destino’, se for necessário, e ao mesmo tempo regozijar-se com o brilho de cada dia e com a beleza de cada nuvem... o mundo é tão bonito, com todos os seus horrores, e seria ainda mais lindo se nele não houvesse fracos ou covardes”.

A militante estadunidense pelos direitos civis e socialista Ella Baker também enfatizava o humanismo em sua prática diária. Para ela, o propósito de se construir uma organização era despertar o espírito humano e empoderar as pessoas para mudar o mundo. “Dê a luz”, dizia Baker, e “as pessoas encontrarão o caminho”. Tratar as pessoas como brinquedos, mesmo que à serviço de uma meta libertadora, seria um anátema para o espírito do socialismo.

É muito comum que os críticos confundam o lado ético e humanista do socialismo com uma variante do socialismo “utópico” ao qual Marx se opunha. Marx contrastava seus escritos com pensadores como Charles Fourier e Robert Owen, cujas imaginações os levavam até o reino do hiper-idealismo, quando não a vôos de fantasia que beiravam magia. Marx identificava seu próprio trabalho como “científico” – mas essa palavra não capta exatamente o significado da palavra original em alemão, “wissenschaft“. Esse último termo implica a busca humana holística pelo conhecimento, tanto nas ciências naturais quanto nas ciências humanas – diferente das conotações que reduzem o caráter científico e a importância destas últimas (em inglês, por exemplo, o termo para “ciências” simplesmente não engloba as ciências humanas, tratadas como “humanidades”). A crítica de Marx às condições de vida de seu tempo estava repleta de um compromisso com a realização da dignidade humana – ele deplorava as mercadorias “sem alma” do capitalismo e suas implicações para o eu humano.

Talvez o maior teórico do socialismo como uma espécie de meta-moralidade humanista pós-secular tenha sido Jean Jaurès, mais conhecido por seu livro de 1911, “Uma História Socialista da Revolução Francesa”. Jaurès pesquisou os discursos dominantes na França da virada do século e os achou terrivelmente imbecilizantes: o nacionalismo era uma estratégia reacionária deliberada para impedir pensamentos de uma esfera superior; a religião oficial era uma força nociva cuja tão louvada caridade simplesmente encobria uma nova forma de opressão; e os espiritualismos da moda da época – como a Teosofia, que atraía as pessoas das religiões organizadas para novos cultos pós-seculares – não passavam de misticismos diletantes, amortecendo a coragem das pessoas para enfrentar as lutas da vida real. Apenas o socialismo, Jaurès defendia, seria capaz de emancipar a consciência do homem e restaurar um senso de infinitas possibilidades humanas.

Algumas décadas depois, uma das vozes mais fortes por um marxismo da consciência foi Isaac Deutscher, mais conhecido por suas biografias definitivas de Stalin e Trotsky. Um judeu galego que optou pelo Partido Comunista Polonês ao invés do Bund (a popular União Judaica Trabalhista da Lituânia, Polônia e Rússia), Deutscher estava numa posição única para observar tanto os desencantos do poder socialista de Estado no Oriente quanto o pessimismo da Nova Esquerda no Ocidente. Ele retornaria muitas vezes àquela condição humana fundamental no coração do marxismo. Deutscher observava que essa subjetividade humana, que já existe dentro de cada um de nós como um potencial, é distorcida, esmagada e aniquilada pelo capitalismo. Ele literalmente reduz a nossa individualidade, o que é prejudicial para o nosso bem-estar social tanto quanto para o nossa capacidade de sustento econômico. A promessa do socialismo, para Deutscher, estava na expansão e reintegração da nossa personalidade – na redescoberta de partes de nós mesmos que haviam sido perdidas.

Após o colapso da União Soviética, uma voz crítica pela esperança humanista socialista foi a física cubana Celia Hart. Filha da geração fundadora da revolução, Hart morreu tragicamente jovem em um acidente de carro – mas não sem antes revigorar o que ela chamava de a “bela batalha”. Uma crítica interna do socialismo de Estado cubano, ela defendia o papel dos partidos políticos na “melhoria da humanidade” e adotou como slogan uma citação do poeta cubano José Martí: “pátria é humanidade”. Ela invocava um retorno às origens do socialismo e defendia uma espécie de ecumenismo marxista – “precisamos de todos aqueles que disseram uma verdade à humanidade.” Em 2006, pouco antes de sua morte, os escritos de Hart foram reunidos em um volume em inglês intitulado, apropriadamente, “Nunca é Tarde Demais para Amar ou Se Rebelar”.

Nestas figuras e tradições, podemos ver um socialismo que tem procurado combater não só a escassez de bens materiais, mas a escassez de valores imateriais e humanistas, como o respeito, a estima e a auto-realização. As questões da moral, da psique e da alma nunca foram relegadas às margens, porque cada uma delas é parte integrante do livre crescimento e florescimento do sujeito humano.

Se afirmar “espiritual, mas não religioso” é um clichê dos nossos dias; nessa tradição, poderíamos trocar isso pelo lema “socialista, mas não religioso” – e sustentar uma aspiração diferente: não o fim da história humana, mas sim seu verdadeiro começo.

Sobre o autor

Adam J Sacks é MA e PhD em História pela Brown University e MS em educação pela City College da City University of New York.

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