17 de julho de 2021

Generais arrastam Forças Armadas para a política e governam o país com "partido militar"

Se ocorrer instabilidade entre jovens oficiais, será antes pelo exemplo de comandantes que por influência de Bolsonaro

Marcelo Pimentel Jorge de Souza 
Mestre em ciências militares pela Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) e oficial da reserva do Exército 


[RESUMO] Autor argumenta que "partido militar", grupo informal e coeso, com ambições políticas, liderado por generais formados na década de 1970, governa hoje o país. Comandantes instrumentalizam e arrastam as Forças Armadas para a política pelo exemplo sobre os subordinados, e só a disciplina interna ou a imposição do poder civil poderá reestabelecer a muralha de apartidarismo e constitucionalidade que ora desmorona.

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"A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira pertencem ao povo.” Esta frase é a espinha dorsal da nota assinada pelos comandantes das Forças Armadas e pelo general ministro da Defesa em 7 de julho. Manifestavam “repúdio veemente” a um representante do povo, o senador presidente da CPI que apura eventuais responsabilidades de um governo chefiado e ocupado por militares da ativa e da reserva —todos subordinados aos signatários da nota.

Um dos focos da CPI é a gestão da crise sanitária pelo Ministério da Saúde, dirigido, durante a maior parte da pandemia, por oficiais da ativa do Exército, que tiveram suas nomeações para cargos civis idealizadas, autorizadas ou consentidas pelo comandante da respectiva Força, provavelmente avalizado pelo Alto-Comando, no primeiro semestre de 2020.

Pouco destacada no debate nacional, a nota constitui mais uma evidência de que o Brasil vive nova versão de fenômeno sócio-histórico originado no Império e que se imaginava superado pela consolidação do Estado democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988 —promulgada no mesmo ano em que o atual presidente deixava a carreira militar para começar sua trajetória política. A própria eleição do capitão-deputado para o cargo que lhe dá autoridade suprema sobre as Forças Armadas é um sintoma, não sua causa.

O fenômeno é composto de três elementos que interagem. O primeiro é a politização das Forças Armadas, processo caracterizado pelo ativismo militar de natureza política, partidária ou não, em proporção extravagante ao mero exercício de direitos políticos individuais.

O segundo, espécie de corolário do anterior, é a militarização da política e da sociedade, que vem adotando práticas, códigos e valores militares, sempre em medidas que vão além do contato funcional entre os “mundos” civil e militar.

Como dinamizador de ambos os processos, dando-lhes direção e sentido, o último elemento: a ação de um grupo informal, coeso, hierarquizado, disciplinado, com características autoritárias e pretensões de poder político —até de natureza hegemônica—, dirigido por oficiais-generais formados durante os anos 1970, o período mais duro do regime autoritário.

São exatamente os que ocuparam ou ocupam os principais cargos políticos do governo e dos quais o brasileiro conhece por nome e sobrenome, menos pelo que falam sobre defesa nacional e mais pelo papel político e até partidário que exercem.

Embora o “partido militar” (“partido fardado” ou “partido dos militares”) não se confunda com as Forças Armadas, ele as instrumentaliza como principal referência para conquistar e se manter no poder. Este é o principal objetivo prático da militância partidária.

Pedro Ladeira - 13.dez.2019/Folhapress

A presença no governo de 14 dos 17 generais que integravam o Alto-Comando do Exército em 2016 —todos formados na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) nos anos 1970— é apenas uma das inúmeras situações que demonstram esse fenômeno. Percebendo-o, será possível analisá-lo de modo que a sociedade civil, as instituições de Estado e a política se posicionem adequadamente diante de seu retorno.

Assim como um partido formal, o partido militar apresenta características que o identificam como um grupo político, ainda que não tenha registro. A informalidade e o fato de ter chegado ao poder sem ruptura política, como nas ocasiões anteriores, talvez contribuam para dificultar a sua percepção.

O partido militar não deve ser confundido com uma mera ala militar, em oposição à ala ideológica, no governo do capitão com vice general. É bem mais que isso: há dois anos e meio, o Brasil possui, de fato, um governo militar —ou um governo de generais— controlado pelo partido militar.

Ainda que assuma papel central e catalisador do fenômeno, o presidente não é a figura dirigente do partido. A direção é composta por um núcleo restrito de militares, que controla, orienta e gerencia o governo, o presidente e as narrativas sobre seus papéis políticos.

Para tanto, o grupo usa conexões com meios de comunicação tradicionais e ferramentas de redes corporativas e pessoais para conduzir a percepção que a população tem da realidade —a narrativa dominante—, cujo controle, uma vez perdido, pode dificultar a conquista e a manutenção do objetivo comum a todo partido: o poder.

Alguns integrantes desse núcleo exercem ou exerceram os cargos mais próximos ao presidente —de vice-presidente, ministros e presidentes de estatais— e são responsáveis, como uma verdadeira direção partidária, pela distribuição de poder, que se materializa na nomeação de militares para ocuparem a cabeça, o tronco, os membros, as entranhas e a alma da máquina pública.

Generais da “geração 1970” reabilitaram a imagem do capitão Bolsonaro nos quartéis. Eleito o colega, ingressaram por vontade própria, em massa, no governo mais militarizado desde a ditadura (1964-1985).

É equivocado considerar as camadas intermediárias e subalternas de militares como os principais alvos ou vítimas da ação política imprópria do presidente sobre as Forças Armadas. Também é improcedente apontar riscos dessas camadas hierárquicas, desbordando a cadeia funcional de comando, agirem em uma ruptura institucional promovida ou incentivada pelo capitão-presidente.

Generais e coronéis politizam os militares e as Forças Armadas ao mesmo tempo que militarizam a política e a sociedade. Desta vez, não há nem sequer a desculpa de que o fazem provocados pelas “vivandeiras alvoroçadas”, expressão empregada pelo marechal Castello Branco em agosto de 1964 ao referir-se aos civis que reclamavam de seu governo excessivamente militarizado.

São generais e coronéis, não capitães, que se colocaram como protagonistas políticos dentro e fora do governo. São generais, não sargentos, que protagonizam as principais crises governamentais e até mesmo atos de indisciplina. Mesmo que ocorra instabilidade entre capitães, será antes pelo exemplo da alta oficialidade que pela alegada penetração do presidente nessas camadas. Por enquanto, a juventude militar tem uma noção muito clara da disciplina e do espaço institucional que deve ocupar.

Também é falha a argumentação de que a imagem das Forças Armadas não se associa fortemente à do governo pelo fato de os militares ocupantes de cargos políticos estarem majoritariamente na reserva. Militares inativos não são como quaisquer outros profissionais aposentados, mas servidores sujeitos às normas éticas e a situações que os tornam referência para militares da ativa e da reserva.

Não se pode esquecer que brado oficial do Exército foi empregado como slogan eleitoral da chapa militar à Presidência em 2018 sem qualquer objeção do comando e que generais da reserva atuaram como verdadeiros cabos eleitorais dessa e de outras candidaturas de oficiais das Forças Armadas.

As inúmeras evidências da existência do partido militar podem ser apresentadas segundo categorias presentes nos partidos políticos formais: memória histórica e vocação institucional, base ideológica, pautas corporativas e de interesse específico, direção partidária encarregada da distribuição de poder, controle do governo, quadros partidários e formação de lideranças, base eleitoral e militante.

A politização dos militares não se confunde com a mera expressão pessoal de opiniões políticas, que sempre houve, nem com a ocupação de alguns cargos por militares na reserva em administrações governamentais, absolutamente normal se relacionada a funções afins à profissão.

O fenômeno se caracteriza pela postura da grande maioria dos integrantes das Forças Armadas diante do quadro político. Sob o exemplo de generais, militares parecem comportar-se como militantes de um verdadeiro partido político.

Além da ascensão profissional da “geração 1970” ao generalato a partir dos anos 2000 —e ao Alto-Comando a partir da década seguinte—, algumas situações podem balizar análises mais detalhadas do processo: as eleições presidenciais de 2010 e 2014; a Comissão Nacional da Verdade, pelo flagrante descontentamento de alguns comandantes; a participação das Forças Armadas na Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti; e o excessivo emprego das Forças Armadas em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), uma decorrência da experiência no Haiti que incentiva a militarização da segurança pública.

Independentemente das motivações e causas do ressurgimento do fenômeno, o protagonismo político de militares ativos e inativos é impróprio e arriscado. Divisões típicas da política podem refletir nas próprias instituições, gerando cisões que prejudicam o cumprimento de suas missões constitucionais. Não se resolvem polarizações, próprias da legítima luta política, aderindo a um polo nem agindo fora das atribuições institucionais, por melhores que sejam as intenções.

Além disso, o Estado confere arcabouço legal e institucional para o poder (político) civil —responsável pela supervisão do poder militar— encaminhar soluções às crises do país, e não há cabimento em interpretações equivocadas da Constituição que se referem ao poder moderador das Forças Armadas.

Se a sociedade identifica militares na direção política do país, é possível que uma eventual insatisfação com o governo comprometa os fundamentos de Forças Armadas de qualquer nação: a confiança e o respeito da sociedade independentemente de posições políticas, partidos, crenças religiosas, visões ideológicas ou classes sociais. Não é se declarando “pertencentes ao povo” —um equívoco teórico e um perigo institucional— que as Forças Armadas cumprem a missão que o povo lhes impôs na Constituição.

É necessário reconhecer que as Forças Armadas empreenderam um sensato afastamento da política e de governos nas últimas décadas, ocupando os espaços institucionais que dão sentido à missão. É nesses espaços que militares devem ser valorizados pela sociedade que integram e a que servem. Foram as lideranças que arrastaram as Forças Armadas da política para o quartel —pelo exemplo.

Entretanto, é inevitável constatar que algo vem mudando. Hoje, não é difícil perceber que militares voltaram a movimentar-se na direção da política e de governos, comprometendo os alicerces da muralha que deve manter as Forças Armadas de países livres e democráticos em seu espaço institucional: neutralidade política, imparcialidade ideológica, isenção funcional, apartidarismo, profissionalismo e constitucionalidade.

Da mesma forma que foram as lideranças, pelo exemplo, que conduziram as Forças Armadas a seu lugar devido nos 30 anos seguintes ao fim da ditadura, têm sido as lideranças, também pelo exemplo, que vêm arrastando milhares de militares para a política e para os governos e, com isso, transpassando essa muralha.

"A palavra convence, mas o exemplo arrasta"

Esta conhecida máxima sintetiza o fundamento pedagógico do aprendizado militar. É o exemplo que define o “ethos”, qualifica o valor moral da tropa e permite ao comandante —em todos os escalões— exercer sua liderança. O exemplo é um fator importante na produção do poder de combate, que transformará a eficiência operacional em luta e esta, na desejada vitória —não na política, na eleição ou em governos, mas em quartéis, campos de instrução e teatros de operações.

O exemplo é a ferramenta para a obra conjunta de militares e civis na reparação da muralha. Quando os generais saírem da política e de governos, o coronel, o capitão, o sargento e o soldado sairão também. Isso deve ser feito de cima para baixo na escala hierárquica e por disciplina intelectual consciente do cumprimento das normas existentes, que definem a impropriedade da vinculação das Forças Armadas com a política e dos militares com governos.

Há menos de um ano, um general da ativa, ocupante de cargo de natureza civil e política no governo, declarou que seu papel era de mera obediência pessoal ao presidente: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Não há dúvidas de que ordens devem ser cumpridas, especialmente quando se trata do militar em relação à autoridade militar, afinal, a palavra convence.

Dessa forma, seria simples que generais e coronéis inativos cumprissem a norma escrita e desvinculassem suas designações hierárquicas de suas posições políticas ou ideológicas, conforme determina o Estatuto dos Militares. Hoje, mais que o descumprimento dessa norma em redes sociais, por exemplo, chama atenção a falta de ação das autoridades encarregadas de impor a disciplina entre os militares.

É simples cumprir normas. Difícil, lamentável e preocupante é vê-las descumpridas impunemente e, pior, por quem deveria zelar pelo seu cumprimento e dar exemplo. Tudo isso sem causar nenhuma indignação cívica, ação jurídica ou política.

É saindo da política e de governos por disciplina intelectual consciente ou por imposição do poder civil que os militares e as Forças Armadas refundarão os alicerces da muralha.

Como é o voto que lastreia o poder civil nas democracias, ele deve ser, também, o principal instrumento para sustar o fenômeno dinamizado pelo partido militar. O voto fundamenta, quase sempre, o melhor caminho para resolver problemas políticos.

Nesse sentido, há três categorias de votos que podem contribuir, desde já, para resolver essa questão: o voto de parlamentares, para estabelecer limites claros na participação de militares na política; o voto de juízes, individuais ou colegiados, para fazer cumprir as normas eventualmente desrespeitadas por militares; e o voto do eleitor, para escolher projetos em que o papel dos militares é executar políticas em suas áreas de atuação —e não formular políticas de governo.

A geração de jovens oficiais mira seus chefes, interpretando suas decisões, avaliando suas posturas e seguindo o exemplo de suas condutas, muito mais poderoso que meras palavras. Do que fizerem chefes na ativa e ex-chefes na reserva agora dependerá o que o tenente de hoje fará quando for general em 2050.

Comandará uma divisão dando exemplo a seus subordinados para cumprir o dever ou chefiará o Ministério da Saúde ou a Casa Civil formulando e executando políticas excêntricas ao dever militar?

Emitirá ordens do dia sobre as batalhas vencidas ao longo da história ou sobre o golpe de 1964 e a ditadura, chamando-os de marcos da democracia, como aconteceu em 2020?

Assinará ordens de operações para o cumprimento da missão constitucional das Forças Armadas ou notas oficiais repudiando falas de deputados e senadores, como fizeram generais em setembro de 1968 e julho de 2021?

Osório, vitorioso comandante da Força Terrestre durante a Guerra da Tríplice Aliança, pode ser inspiração para atuais e futuras lideranças.

Guiando pessoalmente seus subordinados em uma operação em 1866, como exemplo que arrastou seus comandados à vitória no combate, o general fez questão de consignar essas palavras em sua ordem do dia: “É fácil a missão de comandar homens livres, bastar mostrar-lhes o caminho do dever”.
Osório demonstrou que o dever militar é simples: “A palavra convence, mas o exemplo arrasta”.

Sobre o autor

Mestre em ciências militares pela Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) e oficial da reserva do Exército

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