30 de julho de 2021

Acordo com centrão não garante contenção de Bolsonaro, diz cientista político

Para Fernando Limongi, aliança barra impeachment, mas não leva a relação produtiva com Congresso

Ricardo Balthazar

Folha de S.Paulo

O professor Fernando Limongi, da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. - Bruno Santos - 12.mar.2019/Folhapress

A aliança com o centrão não será capaz de conter os instintos autoritários do presidente Jair Bolsonaro nem levará o governo a uma relação mais produtiva com o Legislativo, diz o cientista político Fernando Limongi, professor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

Na sua avaliação, o acordo fechado com o bloco partidário que dá as cartas no Congresso tem como único objetivo proteger o presidente contra a abertura de um processo de impeachment e garantir sua sobrevivência no cargo até as eleições do próximo ano, quando pretende concorrer à reeleição.

Homem de cabelos pretos curtos com camisa azul clara e as mãos cruzadas à frente do corpo.Homem de cabelos pretos curtos com camisa azul clara e as mãos cruzadas à frente do corpo.

Autor de estudos sobre as mudanças nas relações entre o Executivo e o Legislativo após o fim da ditadura militar (1964-1985) e a redemocratização do país, Limongi acha que essas características distinguem a união com o centrão das coalizões partidárias que apoiaram os antecessores de Bolsonaro.

Ele é cético sobre as chances de sucesso de mudanças institucionais como as que vêm sendo cogitadas pelos líderes do bloco para introduzir no Brasil um novo regime de governo, com a adoção do semipresidencialismo, e outro sistema eleitoral, com novas regras para escolha dos deputados federais.

O pesquisador, que trabalha num livro sobre a crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016, diz que o fim da instabilidade vivida pelo país desde essa época depende de reformas de longo prazo que aperfeiçoem as instituições e garantam o respeito às regras do jogo democrático.

A aliança de Bolsonaro com o centrão representa uma aceitação das regras do jogo político e dos seus limites? Não. Esse acordo não foi feito em nome de um projeto político. É uma ação totalmente defensiva, para proteger o presidente contra o risco de um processo de impeachment. É totalmente diferente do que os antecessores de Bolsonaro fizeram ao buscar maioria para governar e implementar propostas.

O que caracteriza o governo Bolsonaro é sua completa irresponsabilidade política. Ele nunca assume uma proposta ou usa seu peso político para obter alguma coisa. Quando manda um projeto para o Congresso, cruza os braços e age como se coubesse aos outros resolver o problema. Isso não leva a nada.

O que vemos agora é uma mera acomodação. Bolsonaristas de primeira hora estão sendo deslocados das posições que haviam assumido, que passam a ser ocupadas pelo centrão. Mas o centrão também não tem proposta nenhuma. Vai continuar o descalabro que temos visto, e eles farão o que quiserem.

Falta uma agenda? Bolsonaro não tem projeto que não seja destruir tudo que foi feito desde a redemocratização do país, sem dizer o que deve ser posto no lugar. É uma agenda totalmente negativa, como ficou claro durante a pandemia e em tantas outras áreas, meio ambiente, educação, proteção social, o que for.

Tivemos uma grande continuidade entre os governos do PSDB e do PT na condução de várias políticas públicas. Bolsonaro se coloca contra isso. Paulo Guedes é uma fonte inesgotável de bagunça na economia. É um governo inconsequente, sem responsabilidade com nada do que diz que quer fazer.

O centrão parece empenhado em aprovar alguma reforma tributária na Câmara. O centrão não assumiu nenhuma responsabilidade com projetos do governo, porque ninguém pediu. O centrão pode ser tudo isso que a gente conhece, mas nos governos do PT era cobrado a executar políticas específicas quando assumia um ministério como o das Cidades. No atual governo, não há nada.

A aliança é capaz de conter as inclinações autoritárias de Bolsonaro? Ele é incontrolável, mas sua irresponsabilidade é também uma forma de covardia. Fala muito, esbraveja demais, mas sempre está pronto a recuar no dia seguinte e desmentir o que falou. Não estou dizendo que ele não gostaria de dar um golpe, ou não seja antidemocrático. Ele é, mas também é covarde.

Então qual é o risco? Ele tem suporte em parte do Exército, na Polícia Federal, nas Polícias Militares, em parte da população. Muitos dos seus apoiadores têm armas, inclusive na população. Bolsonaro é um perigo. Ele age não só contra a democracia, mas contra a civilidade, nossa capacidade de viver pacificamente, com tolerância. Todo mundo sabia disso. Ou alguém achou mesmo que poderia domesticá-lo?

O centrão oferece garantia contra tentações golpistas? O centrão deveria observar a história. Bolsonaro é um traidor. No passado, fez o filho Carlos se candidatar a vereador contra a própria mãe. Abandonou todo mundo que estava com ele no começo quando precisou. Ninguém para na cozinha do Planalto. Se o centrão vai parar ou não, ainda veremos.

O engajamento político dos militares desde a ascensão de Bolsonaro é surpreendente, por razões negativas. Ele mostra que os militares não aprenderam com a experiência dos governos militares, quando se viu sua incapacidade de lidar com problemas sérios.

Havia na ditadura a ideia de que eles eram bons administradores, sabiam pôr a casa em ordem e fazer a economia crescer. Hoje, os militares no governo estão associados a um desastre, à bagunça e à incompetência.

Uma parte deles é bolsonarista mesmo e pensa como o presidente. Pelo menos a parte mais evidente para a opinião pública. Se existe outra ala mais civilizada, mais organizada, ela está perdendo a luta perante a opinião pública. E esse grupo terá trabalho depois para limpar a sujeira deixada pelos outros.

Temos um problema aí. Muitos entre eles não entendem como funciona a democracia. Precisam se reciclar, reformar os currículos da academia, entender o papel que devem desempenhar no mundo de hoje. Estão todos sofrendo as consequências do governo Bolsonaro, que destrói tudo.

Há risco de alguma ação contra o processo eleitoral? Que possa ferir o processo eleitoral, não. Mas uma contestação do resultado, como a que ocorreu nos Estados Unidos após a derrota de Donald Trump, pode ser mais séria aqui. Muitos seguidores de Bolsonaro já deram provas de que são loucos o suficiente para tanto. Não acho que tenham chance de sucesso, mas os custos que vão impor a todos nós serão muito elevados.

A adoção do semipresidencialismo, ou reformas como as cogitadas no sistema eleitoral poderiam evitar situações como essa? É hora de parar com esse hiperinstitucionalismo. Não dá para achar que as instituições são responsáveis por tudo, e que você pode resolver tudo com mudanças nas instituições. É uma forma de absolver os erros estratégicos dos atores políticos. É muito conveniente para eles jogar a culpa nas instituições.

Bolsonaro é produto de um processo de destruição da ordem democrática que vem de longe. Começou após a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, quando o PSDB foi à Justiça contestar a legitimidade do resultado das eleições.

O problema está em entender como funciona a democracia e aceitar que ela implica em derrotas, vitórias, perdas, negociações, moderação, convivência, etc. O PSDB cometeu um erro crasso ao contestar o resultado das urnas, sem exibir qualquer indício de fraude. Não à toa, Bolsonaro ameaça fazer igual.

Sempre teremos um presidente eleito. Não há como escapar. Se o país eleger um despreparado, teremos isso que está aí. Pessoas que defendem reformas pensam que vão conseguir um sistema à prova disso, em que só gente como elas seja eleita. Pode inventar o sistema que quiser. Não é assim que funciona.

Se os atores políticos cometem erros como os que cometeram, não há defesa contra isso. Após a reeleição de Dilma, setores das elites passaram a pensar que um quarto mandato do PT seria intolerável. Por quê? Aumentaram a idade para aposentadoria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, para evitar que novas vagas se abrissem e fossem preenchidas pelo PT. Qual é a lógica?

A insistência do PT em lançar [o ex-presidente] Lula como candidato em 2018, quando estava preso e impedido pelas regras eleitorais, foi um erro. O PSDB errou ao manter o apoio ao governo Michel Temer [2016-2018] mesmo após a delação do [empresário] Joesley Batista. Ficou evidente a hipocrisia do partido, e seu eleitorado migrou para Jair Bolsonaro.

​Não há falhas no sistema político que possam ser corrigidas? Sempre há como aperfeiçoar as instituições. O que estou dizendo é que não é aí que mora o problema. E há questões menos discutidas do que o sistema eleitoral e que me parecem mais graves. Um certo exagero na autonomia conferida a algumas instituições que se arvoram no papel de tutoras do sistema político, como o Supremo, o Ministério Público e até mesmo a PF.

Essas instituições têm comportamentos erráticos, porque não são monolíticas. Todas têm um cara que é para um lado, um cara que é para outro, mas todos gozam de independência e de proteção corporativa e institucional para fazer aquilo que bem entendem.

O Supremo é fonte constante de instabilidade. As idas e vindas na questão das prisões em segunda instância são inexplicáveis. No auge da Lava Jato, o tribunal fechou o olho e deixou rolar uma série de incongruências e extrapolações da lei, incluindo abusos em prisões preventivas. Eles jogam pensando no resultado, não na lei, na regra.

O STF precisa agir como uma instituição, um corpo coletivo. Menos liminares, mais decisões do plenário. Há espaço para reformas internas, incluindo uma redefinição das suas competências, que não podem ser tão abrangentes como hoje em dia. Aí o Supremo poderia começar a impor ordem nessa bagunça.

O poder que o presidente da Câmara dos Deputados tem para barrar o impeachment deveria ser revisto? Não me parece uma reforma crucial. Seria para lidar com uma situação excepcional, e a gente não quer viver num mundo em que estamos sempre correndo para corrigir o que vemos como um problema imediato. Estaríamos fazendo como o STF.

As instituições e as lideranças políticas precisam começar a pensar um pouco mais no longo prazo. Esta regra é a melhor para mim, estando eu no governo e estando eu na oposição? É a melhor regra para um membro do STF, estando em maioria ou minoria? Parece que ninguém mais faz esse tipo de raciocínio.

Alguma estabilidade só emergirá quando as pessoas pensarem no longo prazo e refletirem sobre a situação do ponto de vista do perseguido, do que pode ser objeto do poder arbitrário. O Brasil pós-redemocratização é uma história de sucesso, do ponto de vista institucional, das políticas públicas e da alternância no poder. Nosso destino não é conviver com essa desrazão completa que vemos hoje.

FERNANDO LIMONGI, 63

Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, foi professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo entre 1986 e 2018. Atualmente, dá aulas na Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. Publicou os livros "Democracy and Development" (2000), em co-autoria com Michael Alvarez, José Antonio Cheibub e Adam Przeworski, "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional" (1999) e "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008), com Argelina Figueiredo, da Universidade Estadual do Rio.

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