24 de julho de 2021

Ideias de Samuel Wainer pareciam jazidas de ouro para o jornalismo

Golpe militar de 1964 esmagou sua carreira e a Última Hora, mas jornalista se manteve brilhante até o fim da vida

José Hamilton Ribeiro


O jornalista Samuel Wainer trabalha em sua máquina de escrever. (Acervo Ana Chafir)

Para uns, um revolucionário da imprensa que, com seu jornal Última Hora, fez com que o jornalismo do Brasil nunca mais fosse o mesmo. Para outros, um Macunaíma que acionava as rotativas sem muito pudor, movido por seu temperamento audaz e ambição desmedida.

Para Samuel Wainer, dormir era perda de tempo. Dono de energia inesgotável, estava de manhã no jornal para reunião dos repórteres (cuja atividade acompanhava ao longo do dia), marcava presença na Redação à tarde e à noite para ver como tinham sido resolvidas as reportagens, conforme conta a biografia “Samuel Wainer - O Homem que Estava Lá” (Companhia das Letras), de Karla Monteiro, publicada no ano passado.

Estava de madruga na oficina para se certificar de que as rotativas giravam a toda velocidade para que o jornal pudesse estar na banca antes de o sol nascer. Depois ia tomar seu café da manhã com Kim Novak ou outra beldade nacional ou estrangeira que estivesse passando pelo Rio ou por São Paulo (ou por Recife, Porto Alegre, Curitiba etc). A todas recebia com um beijo molhado.

Samuel tinha capacidade infinita de se apaixonar. Um de seus chamegos mais duradouros foi por Danuza Leão, com quem caminhou uma jornada e com quem teve filhos.

Como muitas outras coisas boas do país, Samuel Wainer e a Última Hora foram esmagados pelo golpe militar de 1964. E também como tantos outros intelectuais do Brasil, Samuel teve de se exilar.

Com a mediocridade e o murchamento do golpe de 64, o Brasil foi aos poucos recuperando a normalidade. As pessoas tiveram de volta seu direito à liberdade constitucional e ao exercício da soberania.

Samuel então retorna de vez ao Brasil, mas sua cadeia da Última Hora, com suas várias edições regionais pelo país (SP, Rio, Recife, Belo Horizonte etc.), jamais lhe foi devolvida ou indenizada. Espoliado assim pelo governo militar, voltou à atividade que lhe restava, a de repórter.

Na verdade, mesmo no posto de dono de jornal, nunca deixou de ser um repórter instintivo e brilhante. Entre outras, realizou uma entrevista histórica com o ex-ditador Getúlio Vargas, tirando-o do ostracismo nos pampas gaúchos para ser outra vez, agora por escolha direta do povo, presidente do Brasil.

A amizade com Getúlio causou grande dor de cabeça a Samuel. Foi acusado por Carlos Lacerda, inimigo maior do então presidente, de ter a chave do cofre do Banco do Brasil para alavancar seus negócios. A vingança de Samuel foi apelidá-lo de “O Corvo”.

Lacerda jamais largou do seu pé, transformando-o, em alguns momentos, com acusações falsas ou mirabolantes, no inimigo número um do Brasil. Até mesmo a dúvida sobre onde teria nascido Samuel —se na Bessarábia (território entre Moldávia e Ucrânia) ou no bairro paulistano Bom Retiro— virou tema de uma campanha feroz e interminável.

Lacerda morreu em 1977. No dia do enterro, um jornal procurou Samuel Wainer para escrever sobre o inimigo morto. Declinou o convite, dizendo, elegantemente, que havia outros melhores que ele para essa tarefa. Não era homem de pisar em adversário caído.

Já a carga dos militares contra Samuel foi tão forte, tão encardida e soez, que ele, de um empresário bem-sucedido e respeitado, transformou-se quase num zumbi, ao repetir e reclamar por suas empresas e jornais espoliados por um governo ditatorial e inimigo da moralidade e da civilização.

Não tinha, contudo, ódio aos militares. Foram treinados para fazer o seu serviço e o fazem sem crítica e sem remorso, dizia, até que amanhã viesse uma outra ordem. Assim caminha a vida na caserna.

Eu sempre acompanhei a vida de Samuel Wainer, um ícone da imprensa, mas nunca trabalhei a seu lado. Num desvio profissional mútuo, ele já retirado, encontrei-o numa Redação pequena, de revista de mulher pelada, onde nós dois, como peixes fora d’água, procurávamos sobreviver.

Ali pude ver como Samuel Wainer era forte no jornalismo, como via, antes dos outros, o que era fútil e descartável, de mais alto e mais longe, exercendo um instinto que, por certo, vinha com ele desde os tempos do deserto.

Naquela época, contudo, o corpo não o acompanhava mais. Era difícil que levasse uma reunião de editores até o fim. Falava, em tom vibrante e crescente, até se dobrar, com a mão no peito e o horror na face, diante da repetição de uma tosse que parecia prestes a lhe tirar do peito os pulmões cheios de sangue e de raiva.

Ele se levantava, caminhava um pouco, ia até a janela —como se fosse lançar dali sua crise respiratória sobre os ruídos da avenida Paulista, e depois vinha, limpando o nariz, com a cabeça cheia de ideias e os olhos acesos como nunca, a criar novas aberturas para a pauta dos assuntos que ali estávamos organizando.

A cada ideia que ele tinha, parecia a nós que era o fio de uma jazida de onde podíamos puxar ouro para o jornalismo.

Enfim, Samuel não era do menos, nem do mais ou menos. Era do tudo, do máximo, do impossível, do além do limite. O que fosse fácil, pequeno, medíocre não era com ele, o endereço estava errado.

Todavia sempre se voltava contra ele, em toneladas, a carga pesada da mediocridade militar carregando o ódio e o preconceito contra o judeu, o imigrante, o repórter investigativo, o intelectual inconformado e atrevido que ele era.

Samuel Wainer dizia que o preconceito contra ele advinha de ativismo de direita, militar ou não, mas que isso não tinha importância, continuaria sua vida olhando para a modernidade, o futuro e seguindo os instintos libertários do povo brasileiro. Até morrer —mas tem gente que acredita que ele vai ressuscitar.

Sobre o autor

Jornalista, é autor dos livros “O Gosto da Guerra”, sobre sua experiência no Vietnã, “Pantanal, Amor Baguá”, sobre o Pantanal, e “Música Caipira - as 270 Maiores Modas”

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