23 de julho de 2021

Julius Deutsch, um antifascista que organizou trabalhadores no campo esportivo

O socialista austríaco Julius Deutsch foi uma figura-chave nos clubes esportivos dos trabalhadores da Viena Vermelha. Fundador da militância trabalhista de Schutzbund, Deutsch e seus camaradas usaram o orgulho de classe construído no campo esportivo para se mobilizar contra a ascensão do fascismo.

Uma entrevista com
Gabriel Kuhn

Jacobin

Uma faixa diz "Esporte une o proletariado do mundo inteiro!" na marcha de abertura da Olimpíada dos Trabalhadores de 1931 em Viena. Os jogos tiveram mais espectadores até mesmo do que os Jogos Olímpicos de Verão de 1932 em Los Angeles. (Wikimedia Commons)

Tradução / Hoje em dia, o controle empresarial sobre os esportes é galopante – e está estendendo seu controle sobre o espaço público em geral. Os recentes Jogos Olímpicos e Copas do Mundo fizeram os países anfitriões suspenderem os direitos democráticos garantidos constitucionalmente a fim de suprimir as críticas a esses mega-eventos e às marcas que os usam como plataforma de propaganda. Confrontado com à crítica a publicidade agressiva de marcas como a Coca Cola nos campeonatos como a Eurocopa 2020, o gerente da Inglaterra, Gareth Southgate, insistiu que essas empresas são cruciais para investir em instalações esportivas populares.

Mas os esportes não precisam ser assim. No período entre as guerras, um movimento vibrante dos trabalhadores conectou os esportes à auto-organização da classe trabalhadora e uma forte rejeição aos promotores corporativos e clubes profissionais. Na década de 1920, as organizações ligadas ao Socialist Workers’ Sport International (SASI) contavam com mais de um milhão de membros, enquanto o Red Sport International (RSI), do centro soviético, tinha cerca de dois milhões. As Olimpíadas dos Trabalhadores do SASI foram um ponto alto desse movimento: os jogos de 1931 em Viena tiveram mais espectadores e participantes do que os Jogos Olímpicos de Verão de 1932 em Los Angeles.

Na Áustria, o movimento esportivo dos trabalhadores estava intimamente ligado à defesa dos trabalhadores contra a crescente ameaça fascista. Uma de suas figuras mais importantes foi Julius Deutsch, que também fundou a militância antifascista em Schutzbund e se tornou um conselheiro militar na Guerra Civil Espanhola. Uma introdução valiosa ao trabalho de sua vida aparece em Antifascism, Sports, Sobiety: Forging a Militant Working-Class Culture, uma seleção de seus escritos publicados pela PM Press. Gabriel Kuhn, que traduziu e editou o volume, falou com David Broder, da Jacobin, sobre a vida cultural do socialismo entre as guerras, os esportes dos trabalhadores e o antifascismo de Deutsch.

David Broder

Em sua introdução, você diz que os socialistas da Viena Vermelha não se organizaram apenas nos locais de trabalho ou buscaram esclarecer as massas, mas também construir uma ampla cultura de classe. Além da oferta real de instalações de lazer, as ideias de Deutsch sobre os esportes dos trabalhadores muitas vezes se concentravam no treinamento de uma base militante com uma certa disciplina e “ética”. Que experiências moldaram seu pensamento? Isso foi uma reorientação de uma cultura pré-existente de esportes dos trabalhadores?

Gabriel Kuhn

Eu diria que os aspectos culturais do movimento operário do início do século XX são sua característica mais marcante. Eles desafiam qualquer sugestão de que a política da classe trabalhadora deva se concentrar apenas ao local de trabalho e à organização sindical. Esses aspectos são, é claro, muito importantes, mas as ambições do movimento da classe trabalhadora na época eram muito mais amplas. O objetivo era nada menos do que uma nova sociedade, na qual valores “proletários” como comunidade, solidariedade e ajuda mútua substituiriam os valores “burgueses” como individualismo, competição e obtenção de lucro.

Viena Vermelha” representou uma transformação social fundamental durante a governança da cidade pelos chamados austromarxistas, que estavam organizados no Partido Operário Social-Democrata Austríaco (SDAP). O SDAP foi o partido mais radical dos social-democratas da Europa na época, tentando criar um caminho entre o reformismo e o bolchevismo. Havia clubes de esportes de trabalhadores, grupos de teatro de trabalhadores, círculos de estudo de trabalhadores, tudo isso.

Uma base militante era necessária para defender essas ambições. A Áustria estava politicamente muito polarizada. A velha aristocracia, a nova burguesia, a Igreja Católica, os camponeses que perceberam o movimento da classe trabalhadora como uma ameaça (especialmente no que diz respeito à propriedade da terra) e um movimento fascista emergente influenciado pelos camisas negras de Benito Mussolini – havia muitos inimigos. Eventualmente, uma coalizão deles acabou com a Viena Vermelha em 1934.

A Viena Vermelha significou uma reorientação do movimento esportivo dos trabalhadores? Certamente fortaleceu os laços entre o esporte dos trabalhadores e a militância da classe trabalhadora. O “Wehrsport” (literalmente, “esportes de defesa”, embora ser traduzido como “esportes paramilitares”), com foco em corrida cross-country, tiro esportivo e artes marciais, não teria sido tão central em outras circunstâncias. Mas as origens dos esportes organizados em geral estão intimamente ligadas à disciplina dos internatos e às Forças Armadas. Isso também se refletiu nos esportes dos trabalhadores.

David Broder

Hoje, muitos socialistas criticariam os efeitos do patrocínio empresarial, órgãos governamentais irresponsáveis e a megalomania dos Estados na formação de grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Mas Deutsch também criticava o espetáculo dos esportes profissionais como tal. Você poderia explicar o que foi isso?

Gabriel Kuhn

Para Deutsch, esportes eram experiências comuns que combinavam saúde, recreação e construção de autoconfiança. Qualquer coisa comercial era considerada resultado da influência e corrupção burguesas.

É muito fascinante ler a crítica de Deutsch a eventos como a “Luta de Contagem Longa” de 1927 em Chicago, onde Gene Tunney e Jack Dempsey lutaram pelo título mundial de boxe peso-pesado. Em alguns parágrafos, Deutsch lista quase tudo que ainda reconhecemos como aspectos negativos dos grandes eventos esportivos: o sensacionalismo, as “máquinas de propaganda”, o dinheiro envolvido, o foco nos recordes. Isso vai mostrar o quão relevante essa crítica ainda é, e também o quão longe a comercialização do esporte chega.

A crítica de Deutsch certamente contém um elemento do “ópio para as massas” que ainda é bastante comum entre a esquerda. A diferença é que Deutsch não vê isso como um problema do esporte como tal, mas de exploração capitalista. Em vez de condenar os esportes, ele buscava formas alternativas de praticá-los e organizá-los.

David Broder

Nas primeiras décadas do século XX, houve um movimento internacional de trabalhadores que organizou suas próprias Olimpíadas internacionais. Por que isso foi criado – e conseguiu ser genuinamente de massa? Qual análogos internacionais havia no caso austríaco?

Gabriel Kuhn

Deutsch entendeu o apelo do esporte para a classe trabalhadora muito cedo. Segundo a lenda, ele entrou no escritório de Victor Adler, o fundador da SDAP, com a tenra idade de 14 anos, exigindo a formação de um time de futebol no clube dos trabalhadores que frequentava. Deutsch explicou que o treinamento físico era tão importante para a classe trabalhadora quanto a busca pela educação. Adler ficou impressionado e colocou o jovem Deutsch sob sua tutela. Cerca de 20 anos depois, Deutsch se tornaria presidente da Liga dos Trabalhadores Austríacos para o Esporte e Cultura Corporal (ASKÖ) e do Socialist Workers’ Sport International (SASI). Deutsch estava convencido de que o movimento esportivo dos trabalhadores era essencial para fortalecer a classe trabalhadora e construir a consciência de classe.

O movimento esportivo dos trabalhadores certamente teve seguidores em massa. Em seu auge, o SASI organizou mais de 1 milhão de atletas trabalhadores por meio de suas afiliadas nacionais. Quase 80 mil participaram das Olimpíadas dos Trabalhadores de 1931 em Viena. Havia também cerca de 2 milhões organizados no Red Sport International (RSI), a contraparte comunista do SASI. A maioria dos membros do RSI veio da União Soviética.

A Áustria era um centro do movimento esportivo dos trabalhadores, mas o movimento também era forte em outros países. A Alemanha tinha uma liga nacional de futebol dos trabalhadores que rivalizava com a liga profissional. A única vantagem dos clubes profissionais era o dinheiro: eles recrutavam os melhores jogadores das equipes da classe trabalhadora, oferecendo-lhes salários e um alívio do trabalho na fábrica. Os jogadores que aceitavam essas ofertas eram frequentemente vistos como “traidores” por seus pares da classe trabalhadora. Era um clima altamente politizado.

David Broder

Você cita um artigo de Ralf Hoffrogge sobre a relação entre a social-democracia alemã e o álcool, que observa como, apesar do Partido Social Democrata (SPD) daquele país combater o alcoolismo, durante as leis anti-socialistas do final do século XIX ele também ficou enraizado nos bares e tabernas. Foi este o caso também na Áustria? E que tipo de reação o apelo à sobriedade teve entre os membros do partido, ou sua base social mais ampla?

Gabriel Kuhn

Na literatura do movimento da classe trabalhadora austríaca da década de 1920, você lê muito sobre como os trabalhadores têm que ser retirados das “pousadas e tavernas”. Então, sim, reunir ali certamente era uma grande parte da cultura da classe trabalhadora. Os austromarxistas queriam que os trabalhadores se reunissem, mas em um ambiente mais saudável.

Acredito que a diferença entre a Alemanha e a Áustria tinha a ver com os respectivos líderes da classe trabalhadora. Na Áustria, aconteceu que a maioria deles tinha uma visão particularmente negativa do álcool. Victor Adler escrevevu um livro inteiro repleto de discursos e artigos abordando o impacto negativo da bebida na classe. Julius Deutsch cresceu como filho do dono de uma taverna no interior da Áustria e foi fortemente afetado pelos efeitos do consumo de álcool na população rural pobre. A Liga de Temperança dos Trabalhadores foi uma organização importante durante a era austromarxista.

Quão grande foi seu impacto na base? Certamente teve algum efeito, não apenas em atletas trabalhadores que frequentemente propagandeavam sobriedade, mas o efeito não deve ser superestimado. Não houve um movimento de massa de trabalhadores sóbrios que se comparasse ao movimento esportivo dos trabalhadores. Os sociais-democratas alemães teriam argumentado que sua abordagem mais moderada (em suma, cerveja é bom, mas nada de bebidas destiladas) era mais realista. Na União Soviética, os bolcheviques logo abandonaram suas campanhas anti-álcool também. O consumo de álcool é uma questão complexa e abordagens puramente morais e motivacionais não levam você necessariamente muito longe.

David Broder

Os artigos de Deutsch nesta coleção muitas vezes transmitem a ideia de que o movimento dos trabalhadores precisava combater o militarismo enquanto também se treinava em uma disciplina de estilo militar. Você pode nos contar um pouco sobre seu papel na organização da Schutzbund e a importância dessa preparação na defesa do movimento? Até que ponto isso foi inspirado – e em rivalidade com – a ascensão do fascismo europeu?

Gabriel Kuhn

Certamente houve algumas contradições. Ideologicamente, a noção de autodefesa do proletariado desempenhou um papel importante. O militarismo era ruim, mas era uma realidade e você tinha que responder a ele com os meios adequados. Deutsch falou de “disciplina voluntária” em oposição a “disciplina coercitiva”.

O Schutzbund foi fundado como uma rede de militância de trabalhadores para autodefesa em 1923. Deutsch, que tinha experiência militar da Primeira Guerra Mundial, tornou-se seu presidente. Essencialmente, foi uma resposta à ameaça representada pela aliança burguesa-fascista emergente, que tinha suas próprias milícias e fortes laços com os militares.

Julius Deutsch foi o fundador do antifascista Schutzbund, mas forçado ao exílio após a ascensão austrofascista em 1934. (Wikimedia Commons)

Deutsch foi criticado por outros membros do SDAP por dar ao Schutzbund um caráter militar tradicional demais. A crítica baseou-se menos em fundamentos ideológicos do que táticos. Argumentou-se que mais independência das unidades seria mais eficaz em uma situação de combate. A derrota dos Schutzbund na Guerra Civil Austríaca de 1934, que levou os austrofascistas ao poder, parece confirmar essas opiniões. Mas provavelmente nunca haverá um veredicto final sobre o que exatamente aconteceu durante aqueles dias fatídicos e como o resultado poderia ter sido evitado.

David Broder

Essas ideias de esportes para trabalhadores parecem não ter revivido nos anos do pós-guerra. Você poderia nos contar um pouco sobre a vida de Deutsch após a ascensão fascista e até onde ele avançou as ideias semelhantes na social-democracia pós-1945?

Gabriel Kuhn

Julius Deutsch foi forçado ao exílio após a ascensão austrofascista em 1934. Ele esteve envolvido em organizações socialistas em vários países e serviu como conselheiro militar das forças republicanas durante a Guerra Civil Espanhola. Enquanto os nazistas governaram a Áustria, de 1938 a 1945, ele não podia colocar os pés no país, tanto por ser socialista quanto por ser judeu também.

Ele foi uma das primeiras pessoas a retornar à Áustria após a guerra. Enquanto muitos hesitavam, parecia a escolha óbvia para ele. No entanto, o partido social-democrata mudou de nome e queria cortar todos os laços com a era austromarxista. Deutsch foi marginalizado, o que lhe causou muita dor até sua morte em 1968.

A ASKÖ, a federação desportiva dos trabalhadores, seguiu o exemplo do partido. Foi revivido, mas as ambições sociais se esvaíram. Não havia mais protestos contra o esporte burguês ou conversas sobre um futuro socialista. Os clubes esportivos dos trabalhadores ainda atendiam a um determinado grupo demográfico, mas atenuaram o legado político e ideológico quase completamente.

As instituições do movimento desportivo dos trabalhadores existem até hoje – até o SASI tem uma organização sucessora. Mas, em vez de organizar alternativas às Olimpíadas oficiais, agora faz parte do Comitê Olímpico Internacional – uma reviravolta de 180 graus.

Tudo isso reflete o quão profundas foram as mudanças sociais após a Segunda Guerra Mundial e prova o impacto desastroso do fascismo e da guerra no movimento da classe trabalhadora.

David Broder

Fiquei interessado em seus comentários sobre o limite moral e a seriedade militante dos textos de Deutsch, e como é muito simples dizer que isso é apenas uma questão da época em que ele estava escrevendo. O que suscita a questão: mesmo que não imitemos as mesmas formas, como o treino de ginástica coletiva, o que seria um equivalente moderno, em termos de usar o esporte e o para construir uma cultura de classe distinta?

Gabriel Kuhn

Tudo tem que ser entendido no contexto de seu tempo, mas a era austromarxista implicava questões de caráter muito geral. Moralidade e disciplina são noções das quais você não pode escapar durante as intensas tensões sociais com a necessidade de autodefesa e possíveis confrontos com as forças reacionárias.

É uma questão desconfortável de abordar, principalmente quando as formas libertárias de socialismo ganharam muita força desde o fim do chamado socialismo realmente existente. Eu mesmo fui politizado naquele ambiente e não vejo o desenvolvimento apenas como negativo. Mas temos que reconhecer que há limites para uma política baseada no desejo individual, na espontaneidade e na unificação mágica de diversas lutas. Moralidade e disciplina podem ter uma má reputação em círculos radicais, mas não acho que nos ajudará se nos esquivarmos de todas as questões relacionadas. É uma discussão que precisamos ter.

Os esportes estarão presentes nele, mas não sei se a disciplina é o aspecto mais importante dos esportes dos trabalhadores para a construção de uma cultura de classe distinta. A moralidade pode ser. Estou muito impressionado com a forma como os atletas trabalhadores eram íntegros durante o auge do movimento esportivo dos trabalhadores. Correndo o risco de ser acusado de voluntarismo, acho que percorreríamos um longo caminho se um pouco disso pudesse ser revivido.

Sobre o entrevistado

Gabriel Kuhn é um escritor, tradutor e organizador sindical austríaco que vive na Suécia. Seu último livro é Libertando Sápmi: Resistência Indígena no Extremo Norte da Europa. Ele bloga em lefttwothree.org.

Sobre o entrevistador

David Broder is Jacobin’s Europe editor and a historian of French and Italian communism.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...