Aaron Freedman
Mas, este ano, algo se rompeu. Simone Biles, a estrela da equipe de ginástica feminina dos Estados Unidos – e a ginasta mais condecorada da história do campeonato mundial – anunciou nesta semana que irá se retirar da final da competição de ginástica em equipes e da final individual geral, o principal evento de ginástica olímpica. Em uma coletiva de imprensa, a atleta citou preocupações com a saúde mental – as quais ela temia que também a levassem a lesões físicas nas competições, pois a concentração intensa é uma obrigação:
Simone Biles nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 em 27 de julho de 2021. (Loic Venance / AFP via Getty Images) |
Tradução / Sempre acontece algo misterioso nas Olimpíadas. Não nos esportes, frequentemente obscurecidos por si só (este ano há a inclusão do basquete três contra três e o breakdance chega em 2024), mas em sua contraditória pompa.
Por um lado, as Olimpíadas são uma competição nacional feroz, na qual grandes conflitos de poder acontecem em uma versão mais branda de uma guerra (embora às vezes não menos sangrenta). Por outro lado, elas são, na tradição de seus antepassados gregos, uma celebração das proezas atléticas individuais – o poder da mente e do corpo humanos de desafiar as leis de velocidade, força e resistência. Esses dois ideais – o atletismo individual e a competição nacionalista – normalmente coexistem muito bem, com os comitês olímpicos dos países oferecendo recursos de treinamento e patrocínio aos atletas, em troca de sua participação carregando bandeiras em desfiles de orgulho nacional.
Mas, este ano, algo se rompeu. Simone Biles, a estrela da equipe de ginástica feminina dos Estados Unidos – e a ginasta mais condecorada da história do campeonato mundial – anunciou nesta semana que irá se retirar da final da competição de ginástica em equipes e da final individual geral, o principal evento de ginástica olímpica. Em uma coletiva de imprensa, a atleta citou preocupações com a saúde mental – as quais ela temia que também a levassem a lesões físicas nas competições, pois a concentração intensa é uma obrigação:
"Esses Jogos Olímpicos têm sido muito estressantes. Eu acho que, como um todo, por não ter um público, existem muitas variáveis diferentes envolvidas. Foi uma longa semana, foi um longo processo olímpico, foi um longo ano. Então é apenas um monte de variáveis diferentes, e acho que estamos estressados demais. Mas deveríamos estar aqui nos divertindo, e às vezes não é o caso."
Para agravar o estresse de uma Olimpíada em meio à COVID, nos últimos cinco anos vieram à tona revelações de abuso sexual e acobertamentos dentro da ginástica dos EUA; alguns casos ocorreram há décadas. Mais de 360 ginastas – que treinam para as Olimpíadas desde a adolescência – alegaram ter sofrido alguma forma de abuso sexual de treinadores, donos de academias e outros adultos que trabalham no esporte. Esse grupo inclui a própria Biles, que foi uma das centenas de ginastas que disseram ter sido abusadas sexualmente pelo ex-médico da equipe de ginástica dos EUA, Larry Nassar. Ele foi condenado em 2018 por abuso sexual e pornografia infantil.
Contudo, pareceria mais chocante se Biles estivesse disposta a competir, dadas essas circunstâncias dolorosas. Na verdade, muitas pessoas expressaram simpatia pela famosa ginasta, elogiando sua coragem por falar abertamente sobre questões de saúde mental que costumam ser estigmatizadas.
Mas a resposta positiva não foi universal. Comentaristas conservadores criticaram a ginasta; Charlie Kirk a chamou de “sociopata egoísta” e de uma “vergonha para o país”, e Piers Morgan escreveu que “não há nada de heroico ou corajoso em desistir porque você não está se divertindo – você decepcionou seus companheiros de equipe, seus fãs e seu país”. Mesmo alguns liberais, embora reconheçam os perigos físicos representados por uma ginasta não estar bem, definiram a atitude como uma desculpa (embora legítima) para abdicar de uma responsabilidade implícita, para os fãs e a nação, de perseverar frente à adversidade.
Contudo, pareceria mais chocante se Biles estivesse disposta a competir, dadas essas circunstâncias dolorosas. Na verdade, muitas pessoas expressaram simpatia pela famosa ginasta, elogiando sua coragem por falar abertamente sobre questões de saúde mental que costumam ser estigmatizadas.
Mas a resposta positiva não foi universal. Comentaristas conservadores criticaram a ginasta; Charlie Kirk a chamou de “sociopata egoísta” e de uma “vergonha para o país”, e Piers Morgan escreveu que “não há nada de heroico ou corajoso em desistir porque você não está se divertindo – você decepcionou seus companheiros de equipe, seus fãs e seu país”. Mesmo alguns liberais, embora reconheçam os perigos físicos representados por uma ginasta não estar bem, definiram a atitude como uma desculpa (embora legítima) para abdicar de uma responsabilidade implícita, para os fãs e a nação, de perseverar frente à adversidade.
Essa lógica não se limita apenas ao claro nacionalismo das Olimpíadas, no qual um atleta individual é inevitavelmente o representante de uma nação. Há algumas semanas, a estrela japonesa do tênis, Naomi Osaka, retirou-se do Torneio de Roland Garros após se recusar a dar uma entrevista coletiva devido a questões de saúde mental. O jornalista esportivo conservador Joe Kinsey ridicularizou a atleta por continuar fazendo aparições na mídia, incluindo uma sessão de fotos para a capa da edição de roupas de banho da Sports Illustrated, embora ela se recusasse a dar entrevistas obrigatórias após os jogos.
Implícita no ódio, ou pelo menos no ceticismo, a Osaka e Biles está a ideia de que os atletas devem a “nós” – fãs, espectadores, nação – alguma coisa. A sociedade há muito projeta nos atletas uma visão de aspiração do espírito humano, capaz de transcender as próprias leis da física e alcançar a grandeza. Como Prometeu, a tarefa deles é capturar algo do divino e deixar que nós, meros mortais, desfrutemos disso. Ao assistir a uma ginasta de classe mundial como Simone Biles somos ensinados a acreditar e inspirados a alcançar o excepcional em nossas próprias vidas.
Por mais poderosa que seja essa narrativa, ela trata os atletas como uma fusão de deuses, símbolos e soldados, em vez do que eles são: pessoas reais com necessidades humanas e falhas. Em um nível fundamental, um atleta – até mesmo uma GOAT como Simone Biles – é um trabalhador do entretenimento. Um trabalhador do entretenimento altamente talentoso e devidamente remunerado, sem dúvida; mas se algum dia o deus-atleta ficar aquém das expectativas impossíveis que lhes são lançadas, ele será tratado pouco melhor do que um garçom cuja gorjeta foi revogada por um patrono temperamental. Assim como o serviço e o entretenimento funcionam, esta relação também é fortemente racializada: não é coincidência ver a ira de alguns fãs brancos por mulheres racializadas como Biles e Osaka, ou pelos jogadores negros do time de futebol da Inglaterra, que foram atacados após a derrota no final do Euro 2020.
Talvez seja inevitável que em uma economia de serviços – na qual os relacionamentos humanos são divididos em servir e ser servido – haja um sentimento intenso e não merecido de direito sobre os atletas. Suas vidas não pertencem totalmente a eles, mas sim a uma base de fãs que exige validação para suas próprias narrativas errôneas sobre a grandeza nacional, a perseverança e o espírito humano empreendedor. Esse sentimento pode ser tão poderoso para os fãs, cujo trabalho também envolve servir uma outra pessoa mais rica: quando sente que ganhar poder em sua própria vida é algo distante, você pode depositar essa esperança – e sentimento de decepção – em outra pessoa.
Nenhuma pessoa, não importa seu talento, seu nível de disciplina física, mental e psicológica, pode carregar o peso enorme de uma sociedade inteira exigindo esperança, propósito e satisfação. Os atletas podem receber muitas recompensas financeiras pela fama, mas eles não devem sua saúde física e mental aos fãs. Embora isso possa custar seus patrocínios a longo prazo, Biles deve ser absolutamente livre para tirar um tempo, assim como qualquer trabalhador deve ter o direito de ficar em casa se recuperando enquanto estiver doente, em vez de usar sua força vital para servir outra pessoa.
Simone Biles, ao afirmar sua humanidade fundamental priorizando sua saúde acima do trabalho, é um lembrete valioso para que vejamos os atletas não como símbolos de nossas ambições coletivas, mas como pessoas reais fazendo um trabalho muito difícil. Saúde e bem-estar são necessidades humanas e nunca devem ser mantidos como reféns de um “cliente pagante” – seja um chefe, uma nação ou um fã de ginástica.
Implícita no ódio, ou pelo menos no ceticismo, a Osaka e Biles está a ideia de que os atletas devem a “nós” – fãs, espectadores, nação – alguma coisa. A sociedade há muito projeta nos atletas uma visão de aspiração do espírito humano, capaz de transcender as próprias leis da física e alcançar a grandeza. Como Prometeu, a tarefa deles é capturar algo do divino e deixar que nós, meros mortais, desfrutemos disso. Ao assistir a uma ginasta de classe mundial como Simone Biles somos ensinados a acreditar e inspirados a alcançar o excepcional em nossas próprias vidas.
Por mais poderosa que seja essa narrativa, ela trata os atletas como uma fusão de deuses, símbolos e soldados, em vez do que eles são: pessoas reais com necessidades humanas e falhas. Em um nível fundamental, um atleta – até mesmo uma GOAT como Simone Biles – é um trabalhador do entretenimento. Um trabalhador do entretenimento altamente talentoso e devidamente remunerado, sem dúvida; mas se algum dia o deus-atleta ficar aquém das expectativas impossíveis que lhes são lançadas, ele será tratado pouco melhor do que um garçom cuja gorjeta foi revogada por um patrono temperamental. Assim como o serviço e o entretenimento funcionam, esta relação também é fortemente racializada: não é coincidência ver a ira de alguns fãs brancos por mulheres racializadas como Biles e Osaka, ou pelos jogadores negros do time de futebol da Inglaterra, que foram atacados após a derrota no final do Euro 2020.
Talvez seja inevitável que em uma economia de serviços – na qual os relacionamentos humanos são divididos em servir e ser servido – haja um sentimento intenso e não merecido de direito sobre os atletas. Suas vidas não pertencem totalmente a eles, mas sim a uma base de fãs que exige validação para suas próprias narrativas errôneas sobre a grandeza nacional, a perseverança e o espírito humano empreendedor. Esse sentimento pode ser tão poderoso para os fãs, cujo trabalho também envolve servir uma outra pessoa mais rica: quando sente que ganhar poder em sua própria vida é algo distante, você pode depositar essa esperança – e sentimento de decepção – em outra pessoa.
Nenhuma pessoa, não importa seu talento, seu nível de disciplina física, mental e psicológica, pode carregar o peso enorme de uma sociedade inteira exigindo esperança, propósito e satisfação. Os atletas podem receber muitas recompensas financeiras pela fama, mas eles não devem sua saúde física e mental aos fãs. Embora isso possa custar seus patrocínios a longo prazo, Biles deve ser absolutamente livre para tirar um tempo, assim como qualquer trabalhador deve ter o direito de ficar em casa se recuperando enquanto estiver doente, em vez de usar sua força vital para servir outra pessoa.
Simone Biles, ao afirmar sua humanidade fundamental priorizando sua saúde acima do trabalho, é um lembrete valioso para que vejamos os atletas não como símbolos de nossas ambições coletivas, mas como pessoas reais fazendo um trabalho muito difícil. Saúde e bem-estar são necessidades humanas e nunca devem ser mantidos como reféns de um “cliente pagante” – seja um chefe, uma nação ou um fã de ginástica.
Sobre o autor
Aaron Freedman é um escritor localizado em Brooklyn, NY. Siga ele no Twitter em @freedaaron.
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