20 de fevereiro de 2023

BNDES não atua por preferência ideológica ao financiar obras no exterior

Tema desperta debates calorosos que muitas vezes refletem desconhecimento em torno da atuação do banco

Bárbara Carvalho Neves
Doutoranda em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas

Karen dos Santos Honório
Professora do curso de relações internacionais e integração na Universidade Federal da Integração Latino-Americana

Folha de S.Paulo

O artigo a seguir é uma réplica à análise "Financiamentos externos do BNDES pouco serviram à integração regional", de autoria de Diogo Schelp, publicado na Folha no último dia 16 de fevereiro.

Recentemente, o Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ganhou destaque na cobertura da mídia devido às declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na posse de Aloizio Mercadante, sobre a retomada do órgão no financiamento de obras de infraestrutura no exterior. O tema desperta debates calorosos e opiniões que muitas vezes refletem desconhecimento da complexidade que envolve a atuação do banco, gerando análises tendenciosas que podem levar desinformação ao grande público.

Em primeiro lugar, é preciso localizar politicamente o debate. A atuação do BNDES como instrumento da política externa brasileira reflete a visão dos governos sobre o desenvolvimento nacional e a estratégia internacional do país, que pode apontar para uma maior autonomia e protagonismo do Brasil na política internacional ou a um papel de subordinação econômica e política no cenário internacional.

Fachada do prédio do BNDES, no centro do Rio - Fábio Teixeira - 16.jan.19/Folhapress

A depender das visões, o banco se torna fundamental ou dispensável. A América Latina, e a América do Sul em especial, é um espaço prioritário da projeção econômica e política do Brasil. Uma política externa que ignore o condicionante regional como central autoinflige ao país irrelevância internacional e, na prática, reduz possibilidades de desenvolvimento e crescimento econômico.

Em segundo lugar, cabe destacar a importância da infraestrutura na geopolítica contemporânea. China e EUA lançaram na última década projetos globais que têm a infraestrutura como eixo principal: a Iniciativa Cinturão e Rota e o América Cresce. Com a retirada do Brasil como financiador de infraestrutura na região a partir de 2016, a China, atuando por meio do EximBank (o BNDES chinês), é hoje um dos maiores financiadores de infraestrutura na região. Os impactos geopolíticos desse processo são determinantes para a capacidade dos países latino-americanos na definição de seus modelos de desenvolvimento.

Em terceiro lugar, o BNDES não faz empréstimos diretos aos governos dos países latino-americanos. Ao final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), como apoio à estratégia de expansão da presença do país na América do Sul, foram realizadas modificações no estatuto do BNDES para que ele pudesse atuar como um mecanismo de financiamento na região. Ou seja, o BNDES financia serviços de empresas brasileiras no exterior, e maior pragmatismo do que esse na orientação do capitalismo brasileiro não há. Caracterizado por muitos estudiosos como "artéria aorta" do desenvolvimento brasileiro, o BNDES pode refletir, se bem regido e orientado, na modernização e modificação da estrutura produtiva nacional.

Ademais, ainda que o BNDES tenha financiado a construção de infraestrutura em outros países, o contrato era feito com empreiteiras nacionais, injetando dinheiro público na economia do país. E, ainda que tais obras não tenham contribuído de forma explícita para maior integração regional, impactaram positivamente a construção de infraestruturas demandadas por países vizinhos, contribuindo para a diminuição de assimetrias não só entre os países sul-americanos, mas dentro dos territórios nacionais.

Em 2004, com a criação da linha de crédito para a América do Sul, o BNDES se alinhou à grande estratégia da política externa do período e foi projetado como mecanismo financiador da inserção internacional do país. O mercado regional foi essencial para a retomada do crescimento econômico, porque os parceiros sul-americanos são os principais mercados de exportação de produtos brasileiros de valor agregado.

Por mais que o tema seja visto de maneira tendenciosa nos debates atuais, em especial devido aos esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro desvelados pela Operação Lava Jato, é importante entender, seja por meio da discussão pública do tema ou de estudos especializados como os de Honório e Neves (2020), o papel das obras, do financiamento nacional e a importância política por detrás delas.

Superar os erros e os limites do passado diz respeito a cobrar que o banco inclua como critério de liberação e apoio de suas linhas de crédito projetos de infraestrutura que envolvam planos de gestão dos impactos ambientais, sociais e econômicos em todas as etapas. Tal gestão deve envolver canais de transparência e participação e incluir os grupos afetados pelos projetos, especialmente em territórios indígenas ou quilombolas —populações já vulneráveis no contexto latino-americano.

O Brasil tem a chance de contribuir por meio do BNDES na construção de uma governança do financiamento regional ambiental e socialmente responsável para a infraestrutura na América Latina, e isso significa repensar nossos modelos de desenvolvimento e as escolhas de infraestrutura que os sustentam —historicamente extrativistas, violadores de direitos humanos essenciais e altamente vulneráveis ao mercado internacional. É sobre o conteúdo programático das obras que o banco financiará e qual horizonte ele tomará na nova política externa brasileira que deveríamos estar nos debruçando, em vez de seguirmos na tarefa sisifiana de explicar o óbvio: o BNDES não atua por preferência ideológica.

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