13 de fevereiro de 2023

Uma entrevista perdida com Clarice Lispector

A mais longa e abrangente entrevista concedida pela grande autora brasileira, aqui traduzida e publicada pela primeira vez.

Benjamin Moser


Ilustração por Cecilia Carlstedt

Em 2006, recebi um e-mail de um velho amigo, professor de São Paulo, que me dizia que um homem "extremamente neurótico (posso dizer 'psicótico')" estava tentando entrar em contato comigo. Se nos falássemos, meu amigo me alertou, não deveria mencionar o livro em que estava trabalhando, publicado três anos depois como "Por que este mundo: uma biografia de Clarice Lispector". "Ele quer saber o que você está planejando fazer com o tema Clarice, já que ele acha que é o dono", disse meu amigo. "Ele tem ciúmes doentios de qualquer um que faça algo com a pessoa."

Nos anos desde sua morte em 1977, Clarice Lispector tornou-se mais do que uma grande escritora, com o grupo de leitores e estudiosos que os grandes escritores atraem. No Brasil, ela é uma igreja. Ela tem acólitos, aparece em sessões espíritas e até ocasionalmente reencarna: eu sei disso porque suas reencarnações às vezes me procuram no Instagram. E ela gerou mais do que sua parcela de obsessivos de jardim: eu sei disso porque eu também sou um.

Embora eu tivesse atravessado a rua para evitar a maioria das pessoas que foram apresentadas da maneira como meu amigo apresentou esse homem “extremamente neurótico”, a história me deixou curioso. O nome do homem era Júlio Lerner, e ele ocupou um lugar intrigante na história de Lispector, bem conhecido de quem estudou sua obra. Lerner produziu o que até recentemente se acreditava ser sua única entrevista para a televisão, de 22 minutos, em 1977. “Estou falando do meu túmulo”, diz ela nessa conversa; depois, ela pediu a Lerner para não transmiti-lo até sua morte. Seu desejo foi respeitado. Ela morreu alguns meses depois.

Clarice – tamanha é sua fama no Brasil que, como presidentes e craques do futebol, sempre é chamada por um só nome – fala de si e de sua escrita. No entanto, o que ela diz causa menos impressão do que sua aparência, como ela soa. Sente-se que ela está no fim: que ela está, de fato, falando de seu túmulo. Vê-la nesse estado é como assistir a uma catedral em chamas ou a um grande navio sendo destruído.

Ouvi dizer que Lerner, anos mais tarde, ficou obcecado com seu breve vislumbre de Clarice. “Nem Kafka, nem Dostoiévski, nem Fernando Pessoa” seriam entrevistados em filme, escreveu ele. Ele teve a chance de filmar uma entrevista com a maior das escritores brasileiras – e sentiu que falhou. Ao longo dos anos, quase como para compensá-la, ele anunciou uma série de projetos, poucos dos quais se concretizaram. Ele queria escrever um livro sobre a entrevista; ele queria fazer um filme sobre isso; pelas duas da madrugada, ele ligava para o filho de Lispector, Paulo Gurgel Valente, às duas da manhã, querendo conversar sobre o assunto.

Eu disse ao meu amigo para dar a Lerner meu endereço de e-mail.

A mensagem que recebi foi estranha. Começou com a mesma pergunta com a qual havia iniciado a entrevista, sobre a origem do nome Lispector, que ele insistia que “certamente não era judeu”. (É judeu.) “Quase por acaso”, continuou, conheceu em Barcelona um jovem casal “que carregava com muito orgulho este sobrenome”, e deles soube que a família, “para fugir da intolerância, abandonou Bilbau , onde viveram, escalaram os Pirinéus e foram para a França, como autênticos judeus errantes, perambulando pela Europa durante cinco anos até finalmente se estabelecerem no leste do lugar que hoje é a Ucrânia”. Ele me fez jurar silêncio, porque estava prestes a publicar esta fantástica descoberta.

Nunca mais ouvi falar dele. Morreu um ano depois, aos sessenta e sete anos.

Dado seu comportamento comigo e com os outros, suspeito que Lerner não estava bem há muito tempo. Mas ele não foi a única pessoa sobre quem a entrevista teve um impacto profundo. Mais do que qualquer outro documento jornalístico, moldou nossa percepção da Esfinge brasileira: suas falas délficas; seu olhar penetrante; sua voz gutural, com seu rouco “R” francês. Sua irmã Tânia Lispector Kaufmann me disse que não gostou, pois mostrava Clarice cansada e no fim da vida. Ela me assegurou que sua irmã era bem diferente - um pouco mais normal, acho que ela quis dizer - quando descansada e saudável.

E, de fato, como ela soa diferente em outra entrevista, de apenas alguns meses antes. Em 20 de outubro de 1976, foi convidada ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro para uma conversa com os escritores Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna, casados, e o diretor do museu, João Salgueiro. Provavelmente porque Clarice era pessoalmente próxima de Colasanti e Sant'Anna, ela soa muito mais relaxada, muito mais à vontade do que quando fala com Lerner; a entrevista parece uma conversa entre amigos. É a entrevista mais longa e abrangente que Clarice já deu e oferece uma ideia mais completa de sua voz do que a entrevista muito mais curta de Lerner poderia. Muitas vezes, desde que a ouvi, me perguntei como Clarice Lispector seria diferente se essa fosse a conversa que moldasse sua imagem.

Foi gravada, mas, infelizmente, não foi filmada. O som já foi restaurado, e a gravação está sendo disponibilizada pela primeira vez, e traduzida para o inglês. O áudio está abaixo, junto com minha tradução da transcrição, que foi editada para maior clareza e tamanho.

Affonso Romano de Sant'Anna: Clarice, vamos começar com alguns dados biográficos?

Clarice Lispector: Eu nasci na Ucrânia, mas já em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que nem aparece no mapa, chamada Tchetchelnik, para eu nascer, e vieram para o Brasil, onde cheguei com dois meses de idade. De modo que me chamar de estrangeira é bobagem. Eu sou mais brasileira do que russa, obviamente.

Affonso Romano de Sant'Anna: As pessoas te chamam de estrangeira por causa do sotaque?

Clarice Lispector: Por causa do “erre”. Pensam que é sotaque, mas não é. É língua presa. Poderiam ter cortado, mas é muito difícil, pois é um lugar sempre úmido, então dificilmente cicatrizaria. Agora deixa ficar.

João Salgueiro: Você tem irmãos, Clarice?

Clarice Lispector: Duas irmãs: Elisa Lispector e Tânia Kaufman. Bem, aqui no Brasil fomos para o Recife... Olha, eu não sabia que era pobre, você sabe?

Marina Colasanti: Você nunca disse isso inclusive. Eu nunca li isso dito por você.

Clarice Lispector: Eu era muito pobre. Filha de imigrantes.

Affonso Romano de Sant'Anna: O que seus pais faziam na Ucrânia?

Clarice Lispector: O meu pai trabalhava na lavoura e, quando chegou ao Rio, ele foi trabalhar com representação de firmas.

Affonso Romano de Sant'Anna: Mas havia alguma formação artístico-literária na família que tivesse te levado à literatura?

Clarice Lispector: Não. Agora, no dia do casamento do meu filho, Paulo Gurgel Valente, uma meio tia minha, que estava no casamento, chegou junto a mim e me deu a melhor coisa do mundo. Ela disse: "Você sabe que sua mãe escrevia? Ela escrevia diários".

Affonso Romano de Sant'Anna: Você tem notícia de que alguém tenha guardado esses diários?

Clarice Lispector: Não, nada. Minha mãe era paralítica e eu morria de sentimento de culpa, porque pensava que tinha provocado isso quando nasci. Mas disseram que ela já era paralítica antes... Nós éramos bastante pobres. Eu perguntei um dia desses à Elisa, que é a mais velha, se nós passamos fome e ela disse que quase. Havia em Recife, numa praça, um homem que vendia uma laranjada na qual a laranja tinha passado longe. Isso e um pedaço de pão era o nosso almoço.

Marina Colasanti: Você não tinha lembrança disso, Clarice?

Clarice Lispector: Olha, eu não tinha consciência. Eu era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim... Eu era tão viva!

Affonso Romano de Sant'Anna: O lançamento do seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1944, causou um certo impacto na crítica brasileira.

Clarice Lispector: Virgem Maria, e se causou. Minha irmã Tânia juntou as críticas, um livro grosso desse tamanho. Eu já estava fora, estava casada...

Affonso Romano de Sant'Anna: Você já estava fora do país?

Clarice Lispector: Não, estava em Belém, no Pará. Publiquei e dez dias depois estava em Belém, quer dizer, sem contato com escritores, e boba com as críticas. Inclusive uma de Sérgio Milliet, que foi o que mudou a opinião do Álvaro Lins. Eu tinha perguntado a ele se valia a pena publicar. Ele então respondeu: “Telefone daqui a uma semana”. Aí eu telefonei e ele disse: “Olha, eu não entendi seu livro, não. Mas fala com Otto Maria Carpeaux, é capaz dele entender”. Eu não falei com ninguém e publiquei assim mesmo. O livro havia sido rejeitado pela José Olympio, e essa edição foi um arranjo com A Noite. Eu não pagava nada, mas também não ganhava: se houvesse lucro era deles.

Marina Colasanti: Você partiu para esse livro com uma estrutura de romance já visualizada ou trabalhou primeiro formando pedaços que montou num romance?

Clarice Lispector: Olha... Alguém me dá um cigarro?... Obrigada. Eu tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecidos escritores, não tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade, me ocorriam idéias e eu dizia: “Tá bem, amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber ainda que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. E assim, enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel em branco. E a idéia? Não tinha mais. Então, eu resolvi tomar nota de tudo o que me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso, que então eu conheci, que eu estava com um montão de notas assim, separadas, para um romance. Ele disse: “Depois faz sentido, uma está ligada a outra”. Aí eu fiz. Estas folhas “soltas” deram Perto do Coração Selvagem.

Affonso Romano de Sant'Anna: O que a crítica sempre exaltou no seu trabalho é que você surgiu com um estilo pronto: não era um estilo em progresso. Em Perto do Coração Selvagem você já era Clarice Lispector e era ainda uma menininha de dezessete, dezoito anos.

Clarice Lispector: Engraçado que eu não tenha tido influências. Já estava guardado dentro de mim. Eu já tinha escrito contos antes disso.

Affonso Romano de Sant'Anna: Há uma influência que parece que você mesma reconheceu uma vez, se não de influência direta, pelo menos de leitura constante sua, que era O Lobo da Estepe, do Herman Hesse.

Clarice Lispector: Isso eu li aos treze anos. Fiquei feito doida, me deu uma febre danada, e eu comecei a escrever. Escrevi um conto que não acabava mais e que eu não sabia como fazer muito bem, então rasguei e joguei fora.

Marina Colasanti: Você rasga muita coisa?

Clarice Lispector: Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha empregada, por exemplo, tem ordem de deixar qualquer pedacinho de papel com alguma coisa escrita lá como está.

Marina Colasanti: E o que faz com que você escreva livros infantis esporadicamente?

Clarice Lispector: Bom, primeiro, meu filho Paulo, em Washington...

João Salgueiro: Quantos filhos você tem?

Clarice Lispector: Dois. Um está morando com o pai e o outro está casado, mora aqui no Rio, Pedro e Paulo Gurgel Valente. Quando eu estava escrevendo A Maça no Escuro, em Washington, meu filho Paulo me pediu, em inglês, — eu falava em português com ele, mas ele falava comigo em inglês — que escrevesse uma história para ele, e eu respondi: “Depois”. Mas ele disse: “Não, agora”. Então tirei o papel da máquina e escrevi O Mistério do Coelho Pensante, que é uma história real, uma coisa que ele conhecia. Aí ficou lá. Eu escrevi em inglês para que a empregada pudesse ler para ele, que nessa época não era alfabetizado ainda... Eu já perguntei a um médico se é normal ter tantas idéias ao mesmo tempo e ele me disse que todo mundo tem, por isso é que eu me perco. Eu não sei mais o que estava falando... Ah! Aí a história ficou lá. Passado um tempo, um escritor paulista, eu nem sei o nome mais, que organizava livros infantis, me perguntou se eu tinha algum. Eu disse que não. De repente me lembrei que tinha a história do coelho e que era só traduzir para o português, o que eu mesma fiz.

João Salgueiro: Clarice, vamos fazer uma cronologia da sua obra: seu primeiro livro foi Perto do Coração Selvagem, em 1944; a seguir veio O Lustre, que já estava até escrito, mas só foi publicado em 1946; depois A Cidade Sitiada, em 1949.

Clarice Lispector: A Cidade Sitiada foi, inclusive, um dos meus livros mais difíceis de escrever porque exigiu uma exegese que eu não sou capaz de fazer. É um livro denso, fechado. Eu estava perseguindo uma coisa e não tinha quem dissesse o que era. San Thiago Dantas abriu o livro, leu e pensou: “Coitada da Clarice, caiu muito”. Dois meses depois, ele me contou que, ao ir dormir, quis ler alguma coisa e o pegou. Então ele me disse: “É o seu melhor livro”.

Affonso Romano de Sant'Anna: Qual foi a motivação que te levou a escrever esse livro.

Clarice Lispector: É a formação de uma cidade, a formação de um ser humano dentro de uma cidade. Um subúrbio crescendo, um subúrbio com cavalos, tudo tão vital... Construíram uma ponte, construíram tudo e de modo que já não era subúrbio. Então o personagem dá o fora.

Affonso Romano de Sant'Anna: Como foi o processo de criação desse livro? Você partiu de uma idéia determinada ou foi juntando textos também?

Clarice Lispector: Foi tudo meio cegamente... Eu elaboro muito insconscientemente. Ás vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa cadeira e fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase...

Marina Colasanti: Inclusive você tem um tempo físico de aquecimento, não é? Uma vez você me disse que acorda muito cedo de manhã, praticamente de madrugada, e não vai logo escrever. Fica andando pela casa, tomando café.

Clarice Lispector: É isso sim. Fico olhando, bobando...

Marina Colasanti: Fazendo um cooper literário interior... (risos)

Clarice Lispector: Depois de A Cidade Sitiada veio A Maçã no Escuro, que foi escrito... Foi engraçado, porque eu escrevi por duas vezes dois livros ao mesmo tempo. Laços de Família e A Maçã no Escuro foram escritos ao mesmo tempo. Eu ia para um conto, escrevia e voltava para A Maçã no Escuro. Mais tarde, isso aconteceu de novo com um livro que não é grande coisa: Onde Estivestes de Noite? e não me lembro qual outro, que eu escrevi também ao mesmo tempo.

Affonso Romano de Sant'Anna: Foi A Via Crucis do Corpo?

Clarice Lispector: Não foi, não.

Affonso Romano de Sant'Anna: A Maçã no Escuro sempre me impressionou muito. Aliás, dos seus livros foi o que mais me impressionou. Lembro que em 1960 ou 61, em torno disso, você foi a Belo Horizonte para uma tarde de autógrafos. Eu tinha publicado um livro de ensaios, ainda como estudante de letras, e tinha um ensaio sobre ele. E lá eu, jovialmente, insistia com você sobre as raízes do livro. Porque eu achava o livro tão bem estruturado no sentido de...

Clarice Lispector: Foi o único livro bem estruturado que eu escrevi, eu acho. Se bem que não: Água Viva segue o mesmo curso.

Affonso Romano de Sant'Anna: Exato. Era como se você tivesse estudado, até profundamente, uma série de assuntos sobre linguagem, uma série de informações contextuais que são importantes. Eu lembro de que você tinha me dito que não, que tinha escrito tudo num certo jato bastante individual de produção.

Clarice Lispector: É. Eu não estou muito a par das escolas e tudo, não.

Affonso Romano de Sant'Anna: Entre Ermelinda e Vitória, dentro de A Maçã no Escuro, qual é mais Clarice?

Clarice Lispector: Talvez Ermelinda, porque ela era frágil e medrosa. Vitória era uma mulher que eu não sou... Eu sou o Martim.

Affonso Romano de Sant'Anna: Exatamente. Teu livro na verdade é uma grande parábola. É uma parábola do indivíduo em busca da consciência, em busca de sua linguagem.

Clarice Lispector: Se fazendo. Tanto que a primeira parte se chama "Como nasce o mundo". A segunda é "O nascimento do herói", porque já era homem e queria ser herói. E a terceira é "A maçã no escuro".

Affonso Romano de Sant'Anna: Ainda dentro deste livro, você faz leituras
ou teve influência de existencialistas?

Clarice Lispector: Não. Nenhuma. Minha náusea inclusive é diferente da náusea de Sartre. Minha náusea é sentida mesmo, porque quando eu era pequena não suportava leite, e quase vomitava quando tinha que beber. Pingavam limão na minha boca. Quer dizer, eu sei o que é a náusea no corpo todo, na alma toda. Não é sartriana.

Affonso Romano de Sant'Anna: Não quer dizer que você não tenha lido Sartre.

Clarice Lispector: Eu só li Sartre, só ouvi falar de Sartre na época de O lustre, em Belém do Pará.

Affonso Romano de Sant'Anna: O Sartre já era popular em Belém do Pará? Eu digo isso porque o Benedito Nunes é de lá.

Clarice Lispector: Eu tive um professor de literatura que buscava os livros da Europa e não do Rio. Era o Francisco Paulo Mendes, do mesmo grupo do Benedito Nunes.

Marina Colasanti: Eu acho que é muito recorrente nos contatos de Clarice com o pessoal de literatura esse desencontro, porque os estudiosos de literatura têm dificuldade em admitir que o teu trabalho é de dentro para fora e não de fora para dentro. Teu trabalho realmente, como você mesma diz, se dita, se faz. E isto para os exegetas literários é uma coisa muito complicada porque eles procuram os caminhos “fora” que te levariam às coisas.

Clarice Lispector: É, eu sei disso.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você tem se descortinado muito ultimamente?

Clarice Lispector: Como em A maçã no escuro? De vez em quando acontece.

Affonso Romano de Sant'Anna: Essa é uma das frases típicas do livro,
não é?

Clarice Lispector: É, sim.

Affonso Romano de Sant'Anna: Aquele diálogo final entre o pai e o filho, entre Deus e o filho, entre o homem e a consciência; aquele diálogo é totalmente surpreendente dentro do livro porque é uma parte irônica e de repente...

Clarice Lispector: Foi a parte mais... Eu senti tanto, porque com aquela ironia, o pai destruía tudo.

Affonso Romano de Sant'Anna: “Como vai a vida sexual, meu filho?”

Clarice Lispector: Como era a outra frase? Não me lembro.

Affonso Romano de Sant'Anna: “Você sabe, condenado a sentir esperança.”

Clarice Lispector: "Você tem esperança?" "Tenho." Não me lembro.

Affonso Romano de Sant'Anna: "Eu te ordeno. Ordeno que sofras a esperança."

Clarice Lispector: "Vai e sofre a esperança."

Affonso Romano de Sant'Anna: “Sabe que a vida é um combate que os fracos abate.”

Clarice Lispector: E começa a degringolar.

Affonso Romano de Sant'Anna: Então você tem na cabeça bastante dos teus textos escritos, apesar de você ter dito uma vez que nunca releu um texto teu.

Clarice Lispector: Eu ainda me lembro, mas eu nunca reli. Eu não releio. Eu enjoo. Quando é publicado já é como um livro morto, não quero mais saber dele. E quando leio, eu estranho, acho ruim, por isso não leio. Também não leio as traduções que fazem dos meus livros para não me irritar.

Marina Colasanti: Elas são ruins, em geral?

Clarice Lispector: Eu nem quero saber. Mas sei que não sou eu mesma escrevendo.

Marina Colasanti: Você tem muitas traduções?

Clarice Lispector: A Gallimard publicou A maçã no escuro. Vai publicar agora A paixão segundo G.H. Um agente literário me procurou dizendo que uma editora nova na França, em Paris, queria publicar Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Ficou em suspenso um pouco porque eu tenho um outro agente literário. Pela primeira vez na vida. Carmen Balcels me procurou e perguntou se eu queria. Eu disse: “Quero.” E ela me falou: “Você é muito explorada. Você é muito explorada no Brasil mesmo.” Então eu aceitei.

Affonso Romano de Sant'Anna: E ela já conseguiu vender algum título seu?

Clarice Lispector: Ah, não sei. Hoje eu vou ter um encontro com um auxiliar dela. Na Alemanha e nos Estados Unidos publicaram Laços de família e A maçã no escuro. Na Checoslováquia também traduziram o livro. Lá eu era Lispectorovna. Esse eu olhei com prazer, porque não podia entender. (risos) Também tem o de Caracas que publicou A paixão segundo G.H. e A legião estrangeira. Tenho também na Argentina um bocado de livros traduzidos.

Affonso Romano de Sant'Anna: Nós vimos em Buenos Aires uma edição espanhola, creio que A maçã no escuro, não?

Clarice Lispector:Publicaram quase todos os meus livros. Quando cheguei lá fiquei boba. Eu estive lá esse ano.

Affonso Romano de Sant'Anna: E esse pessoal paga a você?

Clarice Lispector: Não, nada. Às vezes pergunto, mas é tão inútil, porque eles não pagam mesmo. É outro país, é outra coisa, se aqui me pagam mal! Quanto mais quando é em outro país. A Argentina publicou muita coisa minha, eu fiquei boba quando cheguei lá, não sabia que eles me conheciam. Fizeram um coquetel, trinta jornalistas, eu falei pela rádio, tudo meio teleguiada, porque era tudo tão estranho, tão inesperado, que eu ia agindo assim sem saber. Nem notei que estava falando para rádio... Sei lá... Uma mulher lá me beijou a mão.

Marina Colasanti: Aqui no Brasil, os teus livros estão com várias editoras no momento...

Clarice Lispector:O que, talvez, seja um erro.

Marina Colasanti: E por que estão tão espalhados os teus livros?

Clarice Lispector: Sei lá. Água viva foi o Álvaro Pacheco quem publicou porque ninguém tinha coragem de publicar e o Álvaro quis, ele é arrojado, então publicou. Tinha livros pela Editora do Autor, que depois se tornou a Sabiá. Eu continuei na Sabiá e ela foi comprada pela José Olympio, que acabou ficando com a maior parte dos títulos.

Marina Colasanti: Mas agora você tem livros também pela Ática...

Clarice Lispector: Vou ter, vou ter. E pela Rocco também, e pela Paz e Terra...

Affonso Romano de Sant'Anna: Que é A maçã no escuro, não é? É uma edição cheia de defeitos, você já viu?

Clarice Lispector:Eu nem posso olhar. Eu abri, assim, e vi que, entre uma linha e outra tinha o nome do linotipista e a numeração da data em que ele escreveu. Eu reclamei e me disseram: “Ah, todo livro sai com erro.”

Affonso Romano de Sant'Anna: Mas isso é um absurdo porque, alguns dos meus alunos, quando eu estava estudando esse livro, pensaram que aqueles nomes, aqueles números na margem do livro tinham alguma coisa a ver com o enredo e tinham sido escritos pela autora.

João Salgueiro: Clarice, você publicou um livro de contos em 1952, não é?

Clarice Lispector: Pelo Ministério da Educação, um livrinho fininho. Depois eu incluí esses contos em Laços de família, porque esse outro livro praticamente não teve divulgação.

João Salgueiro: Depois vem um livro em 1964, A paixão segundo G.H.

Clarice Lispector:Mas foi escrito em 1963. É curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental, como de família, tudo complicado, e escrevi A paixão..., que não tem nada a ver com isso, não reflete!

Affonso Romano de Sant'Anna: Você acha que não?

Clarice Lispector:Acho, em absoluto. Porque eu não escrevo como catarse, para desabafar. Eu nunca desabafei num livro. Para isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si.

Affonso Romano de Sant'Anna: Deixa eu criar um problema para você. Você sabe que a crítica literária hoje tem a seguinte teoria: o texto é exatamente igual ao sonho, tem um conteúdo manifesto e um conteúdo latente.

Clarice Lispector: Concordo.

Affonso Romano de Sant'Anna: Então, você não acha que seria possível que no inconsciente do texto se localize isto tudo? Quer dizer, há uma certa faixa no texto que, como no sonho, foge ao controle do sonhador...

Clarice Lispector: É, fugiu ao controle quando eu, por exemplo, percebi que a mulher G.H. ia ter que comer o interior da barata. Eu estremeci de susto.

Affonso Romano de Sant'Anna: Por que G.H.?

Clarice Lispector: Porque era ela falando sobre ela mesma, quer dizer, não se chamava a si mesma, mas tem um pedaço em que ela consegue um nome, pois na valise, na mala, havia as iniciais G.H. Então ficou “segundo G.H.”.

Marina Colasanti: Tem um conto seu que me intriga muito e que, de uma certa maneira, me parece muito sozinho dentro da tua obra. É o conto da rapariga portuguesa.

Clarice Lispector: Ih! Com esse eu me diverti à beça. (risos)

Marina Colasanti: Eu também, mas é estranho porque é a única vez na tua obra que o personagem e o narrador falam numa linguagem tão elaborada, numa linguagem portuguesa...

Clarice Lispector: Não sei de onde eu peguei isso, como é que eu sabia que “peúgas” é meia de homem.

Marina Colasanti: Eu ia perguntar se você já morou em Portugal.

Clarice Lispector: Não. Eu já fiquei em Portugal doze dias, mas não dava. Sei lá de onde eu peguei o jeito... Fui recolhendo aqui e ali, da babá ou do botequim... E me diverti enormemente... Eu estou com vergonha de dizer, mas estou com sede. Tem Coca-Cola?... (risos)

João Salgueiro: Em 1969, você publicou um livro chamado Umaaprendizagem ou O livro dos prazeres. Você não gostaria de falar um pouco do livro?

Clarice Lispector: Bom, é um livro... É uma história de amor, e duas pessoas já me disseram que aprenderam a amar com esse livro... Pois é.

João Salgueiro: É um livro do qual você gosta muito?

Clarice Lispector:Não.

João Salgueiro: Então você prefere algum outro. Laços de família, por exemplo.

Clarice Lispector: De Laços de família eu estou meio enjoada, já está na sétima edição... Eu me lembro muito do prazer que eu senti ao escrever A maçã no escuro. Todas as manhãs eu datilografava, chegava a 500 páginas. Eu copiei onze vezes para saber o que é que estava querendo dizer, porque eu quero dizer uma coisa e não sei ainda bem ao certo. Copiando eu vou me entendendo e vou...

Affonso Romano de Sant'Anna: Quer dizer que o seu processo de produção, em síntese, é bastante complexo. Ao mesmo tempo que joga com o elemento meio irracional, trabalha também na composição e montagem do texto e depois vai refazendo esse texto integral diversas vezes.

Clarice Lispector: Não. Quando eu parto de uma ideia que me guia, eu não reescrevo, o que não quer dizer que não mexa muito nas palavras... Obrigada... Esse é o século da Coca-Cola!

Affonso Romano de Sant'Anna: Você sabe que vários escritores consultados preferiam a Pepsi?... (risos)

Clarice Lispector: Quando eu morrer, que eu não sei quando é...

Affonso Romano de Sant'Anna: Nem pretende, não é?

Clarice Lispector: Não, não pretendo.

Marina Colasanti: Agora com a Academia aberta às mulheres, você corre o risco de não morrer.

Clarice Lispector: Não, eu não quero nada com a Academia mas... O que é que eu estava falando mesmo?

Affonso Romano de Sant'Anna: Quando você morrer...

Clarice Lispector:Será que terá Coca-Cola e Pepsi ainda? Daqui a não sei quanto tempo? Hoje eu estou fazendo uma exceção, tomando Coca-Cola, porque eu estou fazendo regime para emagrecer e não posso tomar refrigerante. Mas eu acho tão difícil o que eu estou fazendo que eu estou me dando um prêmio. (risos)

Marina Colasanti: Mas não está doendo muito não, tá? Este depoimento?

Clarice Lispector: Não, está tão normal. Está fluindo com tanta... eu não estou assustada, não estou nada.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você sabia que a Clarice é uma tremenda bruxa? (risos)

Clarice Lispector: Ah, isso foi um crítico, não me lembro de que país latino-americano, que disse que eu usava as palavras não como escritora, mas como bruxa. Daí talvez o convite para participar do Congresso de Bruxaria da Colômbia. Me convidaram e eu fui.

Marina Colasanti: A única bruxa brasileira. (risos)

Affonso Romano de Sant'Anna: Mas conte sobre as suas relações com a bruxaria, Clarice. Se você tivesse que introduzir o leitor nestes mistérios, quais seriam os dados?

Clarice Lispector:Não tem, não tem!

João Salgueiro: A ideia de bruxaria nasceu do crítico, e você não a desenvolveu?

Clarice Lispector:Nada, nada. Foi inconsequente, inclusive estranhei o clima em Bogotá, na Colômbia. Tinha dores de cabeça, e, um dia, me tranquei no quarto, fiquei sozinha. Não atendia telefone, só chamava para comida e bebida. Estava achando tudo muito enjoado. Eu enjoo muito facilmente das coisas.

Affonso Romano de Sant'Anna: Como é que foi a sua apresentação lá?

Clarice Lispector: Disseram que queriam um texto meu. Eu não sabia fazer um texto sobre bruxaria porque não sou bruxa, não é? Então, traduzi para o inglês O ovo e a galinha. Aí eu pedi a um fulano de tal, que eu não me lembro o nome, para ler. Ele tinha a tradução espanhola. A maior parte das pessoas não sabe o que foi lido, não entendeu nada. Agora, um americano ficou tão alucinado que me pediu uma cópia daquele conto...

João Salgueiro: Há algum autor que tenha te influenciado mais?

Clarice Lispector:: Olha, que eu saiba, não.

João Salgueiro: Você nunca sentiu um impacto violento com um livro?

Clarice Lispector:Um pouco, às vezes. Senti com Crime e castigo, de Dostoievski, que me fez ter uma febre real, O lobo da estepe também me virou toda... Meu primeiro emprego, quando eu tinha treze ou catorze anos, ainda estava no ginásio, mas era professora particular de português e matemática... A propósito, por que eu estou falando nisso?...

João Salgueiro: Influência literária. Qual era o autor que mais te influenciou?

Clarice Lispector: Ah, bom! Então, com o primeiro dinheiro que eu ganhei, meu primeiro mesmo, entrei, muito altiva, numa livraria para comprar um livro. Aí mexi em todos e nenhum me dizia nada. De repente eu disse: “Ei, isso aí sou eu.” Eu não sabia que Katherine Mansfield era famosa, descobri sozinha. Era o livro Felicidade.

Affonso Romano de Sant'Anna: E Virginia Woolf, com quem o próprio Álvaro Lins tentou, parece, comparar você.

Clarice Lispector: Não, não tinha lido, e dela só li Orlando.

João Salgueiro: E Franz Kafka?

Clarice Lispector: Kafka eu fui ler muito mais tarde, quando já tinha publicado muitos dos meus livros. Eu sinto uma aproximação muito boa, mas eu já tinha escrito muitos livros antes de ler suas obras...

Affonso Romano de Sant'Anna: O professor de matemática é uma recorrência nos seus contos. Eu queria continuar aquela conversa do professor de matemática que certa vez tinha te falado a respeito de um livro.

Clarice Lispector: Não, de um conto: O crime do professor de matemática. Mas a matemática me fascinava, me lembro que eu era ainda muito menina quando botei anúncio no jornal como explicadora. Aí, uma senhora me telefonou, disse que tinha dois filhos, me deu o endereço e eu fui lá. Ela olhou para mim e disse: “Ah, meu bem, não serve, você é muito criança.” E eu disse: “Olha, vamos fazer o seguinte, se seus filhos não melhorarem de nota, então a senhora não me paga nada.” Ela achou curiosa a coisa e me pegou. E eles melhoraram sensivelmente.

Affonso Romano de Sant'Anna: Então, caberia aquela pergunta sobre matemática: dois e dois são quatro ou cinco?

Clarice Lispector: Para os psicóticos dois e dois são cinco, para os neuróticos dois e dois são quatro, but I can’t stand it, eu não aguento! (risos)

João Salgueiro: Você chegou a conhecer o pintor Giorgio de Chirico?

Clarice Lispector: Sim, conheci. Eu estava em Roma e um amigo meu disse que o De Chirico na certa gostaria de me pintar. Aí, perguntou e ele disse que só me vendo. Aí me viu e disse: “Eu vou pintar o seu retrato.” Em três sessões ele fez e disse assim: “Eu poderia continuar pintando interminavelmente esse retrato, mas tenho medo de estragar tudo.”

João Salgueiro: Onde se encontra esse retrato hoje?

Clarice Lispector: Está lá em casa.

Marina Colasanti: Ela tem uma boa coleção de retratos. Vários artistas pintaram Clarice.

Clarice Lispector: O negócio é o seguinte: é que eu, ao que parece, tenho o rosto um pouco exótico. E isso atrai muito os pintores.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você é meio asiática...

CLARICE LISPECTOR: Aliás, quando eu estava em Washington, num coquetel, um homem ficou me olhando, me olhando, chegou perto de mim e perguntou: “Você é russa?” “Eu nasci na Rússia, mas não sou russa não, por quê?” “Porque você tem o tipo fino dos russos.” Eu perguntei quem ele era e ele disse não sei o quê Tolstói; era parente do Tolstói.

Marina Colasanti: Clarice, como é que você consegue conciliar a sua personalidade tímida e a carreira diplomática, que você era obrigada a acompanhar?

Clarice Lispector: Eu detestava, mas eu cumpria com minhas obrigações para auxiliar meu ex-marido. Eu dava jantares, fazia todas as coisas que se deve fazer, mas com um enjoo...

Marina Colasanti: E você escrevia paralelamente? Porque a vida diplomática ocupa muito.

Clarice Lispector: Escrevia! Escrevia, atendia o telefone, no meio das crianças gritando, o cachorro saindo e entrando... A maçã no escuro foi isso...

Marina Colasanti: A presença dos seus filhos é muito constante em contos, anotações, trechos... Você viveu sempre muito ligada com eles, não?

Clarice Lispector: Sim, eu sou ligadíssima neles.

Marina Colasanti: E como eles vivem o fato de você ser escritora? Eles são seus leitores?

Clarice Lispector: Não sei, nunca perguntei, mas o Paulo, um dia desses falou de um conto meu, aí eu fiquei sabendo que ele leu. Porque o que eu era, e sou, principalmente, é mãe deles, e não escritora. E deve ser chato à beça ter mãe escritora.

Marina Colasanti: Mãe sempre é chata, Clarice, não há possibilidade da gente não ser...

Clarice Lispector: É, mãe é chato...

Marina Colasanti: Mas dos contos infantis, pelo menos os que você fez para eles, você sabe que eles eram seus leitores.

Clarice Lispector: Eu sei que eram. E gostavam, porque eu não minto para criança...

Marina Colasanti: "O pensamento da Laura Galinha", você já não fez para eles.

Clarice Lispector: Não. Eu fiz porque galinha sempre me impressionou muito. Quando eu era pequena, eu olhava muito para uma galinha, por muito tempo, e sabia imitar o bicar do milho, imitar quando ela estava com doença e isso sempre me impressionou tremendamente. Aliás, eu sou muito ligada a bicho, tremendamente. A vida de uma galinha é oca... uma galinha é oca!

Affonso Romano de Sant'Ann: Uma mulher também!

Clarice Lispector: Claro, é também!...

Marina Colasanti: Mas é um oco produtor, um oco que gera. Ela tem os dois lados, o de dentro e o de fora, talvez o de dentro ainda mais forte que o de fora. Os homens não, são só o de fora e monobloco...

João Salgueiro: Quer dizer então, Clarice, que a vida diplomática não te ajudou, nem te perturbou.

Clarice Lispector: Não interferiu, porque eu escrevia em casa, a qualquer hora...

João Salgueiro: Era bom viajar?

Clarice Lispector: Olha, eu morria de saudades do Brasil. Eu estive fora do Brasil quase 16 anos. Quando não aguentava a saudade vinha ao Brasil. Quando eu estava lá, todo mundo me dizia: “Por que não manda os livros para uma editora no estrangeiro, para traduzir.” Eu dizia: “Agora não é tempo de traduzir, é tempo de trabalhar.” Não me interessa e nunca pedi a ninguém para me publicar fora do Brasil.

Marina Colasanti: Falando em traduzir, essa é uma outra dessas tuas atividades paralelas. Você traduz, até muito.

Clarice Lispector: Eu descobri um modo de não me cacetear... É o seguinte: jamais leio o livro antes de traduzir. É frase por frase, porque você é levada pela curiosidade para saber o que vem depois, e o tempo passa. Enquanto que, se você já leu, sabe tudo, é um dever. Me dá um medo quando vejo assim, trezentas páginas na minha frente...

Marina Colasanti: Eu começo sempre pelo segundo capítulo, porque eu sempre acho que se eu começar pelo primeiro, que é onde o leitor vai entrar, eu ainda não tenho a linguagem do autor na mão, então eu começo o segundo e quando eu acabo eu faço o primeiro.

Clarice Lispector: Ah! É ótimo! Eu vou adotar isso.

Marina Colasanti: É ótimo. O primeiro acaba mais bem-feito.

Affonso Romano de Sant'Anna: Porque o primeiro capítulo geralmente se escreve no fim, não é?

Clarice Lispector: Apesar do aparente absurdo do que você disse, é verdade.

Marina Colasanti: Você escreve o primeiro no fim?

Clarice Lispector: Concomitantemente. Eu nunca sei de antemão o que eu vou escrever. Têm escritores que só se põem a escrever quando têm o livro na cabeça. Eu não. Vou me seguindo e não sei no que vai dar. Depois vou descobrindo o que eu queria.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você tinha falado no início que está escrevendo um livro agora cuja personagem é uma nordestina que come sanduíche.

Clarice Lispector: Não, que só come cachorro-quente, café e refrigerante e ganha menos que um salário mínimo.

João Salgueiro: Esse é o seu último livro?

Clarice Lispector: É o que eu estou fazendo agora.

Affonso Romano de Sant'Anna: Quais foram suas últimas leituras? O que você leu recentemente, que tenha te impressionado mais. Mesmo de crítica literária, que eu sei que você lê para descansar...

Clarice Lispector: É, eu gosto muito de ler ensaio... Mas devo confessar que há muito tempo que eu não leio.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você acha que ler muito atrapalha o processo de criação?

Clarice Lispector: Eu não diria que atrapalha, mas quando estou trabalhando eu não leio nada.

Affonso Romano de Sant'Anna: E quando você lê, mais poesia ou prosa?

Clarice Lispector: Os dois, os dois. Sua poesia é muito boa, eu leio. E a Marina escreveu um livro muito bom, muito original, sem copiar de ninguém, sem modismos, inovações... Eu leio muito pouco. É um crime, mas é verdade.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você já teve alguma tentativa explícita de escrever poesia? Porque o seu texto, a rigor, é em prosa mas Água viva é um texto poético...

Clarice Lispector: Todo mundo parece que começa com poesia, não é? Eu andei escrevendo umas folhas, mas jogava fora, porque não prestavam. (risos)

Marina Colasanti: Uma vez você estava conversando com a gente e disse que quando lê uma crítica de um livro seu, você passa três dias sem escrever, sem fazer nada, completamente nauseada.

Clarice Lispector: Não é nauseada não. Eu fico quando eu estou trabalhando. Quando eu não estou trabalhando, eu leio a crítica, muito bem e tudo. Quando eu estou trabalhando, uma crítica sobre mim interfere na minha vida íntima, então eu paro de escrever para esquecer a crítica. Inclusive as elogiosas, pois eu cultivo muito a humildade. De modo que, às vezes, me sentia quase agredida com os elogios.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você é convidada sistematicamente para fazer conferências, palestras... Você gosta?

Clarice Lispector: Não gosto, mas pagam cachê e a viagem. Eu gosto muito de viajar. Aí eu faço, e depois há os debates...

João Salgueiro: Você faz isso em caráter profissional?

Clarice Lispector: É, eu não gosto muito. E por falar em profissional, eu não sou escritora profissional, porque eu só escrevo quando eu quero.

Marina Colasanti: Você disse isso ao receber o prêmio em Brasília.

Clarice Lispector: Eu disse, é?

Affonso Romano de Sant'Anna: Um prêmio pelo conjunto da obra, não foi? E por falar em prêmios...

Clarice Lispector: Ah, já ganhei vários. Perto do coração selvagem, ganhou o Prêmio Graça Aranha, se eu não me engano.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você sempre se deu bem com os prêmios ou já se irritou, se envolveu em polêmicas, desgastes?

Clarice Lispector: Não, não ligava a mínima, nada, nada.

João Salgueiro: Os prêmios não te afetam em nada? Vaidade... Satisfação?

Clarice Lispector: Não, não sei explicar, mas prêmio é fora da literatura – aliás, literatura é uma palavra detestável –, é fora do ato de escrever. Você recebe como recebe o abraço de um amigo, com determinado prazer. Mas, depende da...

Affonso Romano de Sant'Anna: É uma coisa circunstancial?

Clarice Lispector: É. Ganhei o Golfinho de Ouro, ganhei...

João Salgueiro: E o Golfinho só é dado a gente de muito gabarito!

Clarice Lispector: Ganhei um Calunga, no Paraná. Você sabe o que é um calunga? No Nordeste, calunga é aquela figura de menino caricata, por causa do livro infantil. Ganhei um, de uma senhora – não sei por que ela se mete tanto com escritores – Carmen Dolores não sei do quê.

Affonso Romano de Sant'Anna: Esse é o Prêmio Carmen Dolores Barbosa, em São Paulo.

Clarice Lispector: É, aí eu fui lá e recebi o prêmio, exatamente das mãos do Jânio Quadros. Depois de um discurso dele enorme, recebi um envelope e dentro vinte cruzeiros. Valia um pouco mais que agora, mas eram vinte cruzeiros. Eu fiquei boba, era tão pouco!

Affonso Romano de Sant'Anna: E as teses que são feitas sobre você em universidades, você recebe visitas, pessoas do estrangeiro?

Clarice Lispector: Vem, vem sim. Há pouco tempo um jornalista uruguaio veio me entrevistar. Aliás, foi muito franco. Ele olhou os meus retratos e disse assim: “Você era linda!... Você ainda é bonita, mas não tanto.” E eu observei: “Mas o tempo passa, não é?” Ele, então, me falou: “No começo você não é muito simpática, fica muito fechada e desconfiada; só depois é que você se torna simpática.” Mas uma coisa, pelo menos ele me disse: “Que pena a sua mão queimada, porque você tem mãos tão bonitas!”... Eu sou procurada sim, recebo muita gente. Eu tenho muita antologia, até no Canadá. Sempre me escrevem pedindo autorização, mas sem falar nunca em pagamento.

Affonso Romano de Sant'Anna: Mas agora com uma agente literária você pode cobrar tudo isso.

Clarice Lispector: É bem capaz de dar um jeito.

Marina Colasanti: Você teve um período que estava vendendo uns quadros seus, porque estava precisando de dinheiro.

Clarice Lispector: É, pois é...

Affonso Romano de Sant'Anna: A Marina sempre diz que, num país mais organizado, mais desenvolvido, uma escritora como você teria, por causa do que escreve, em decorrência, um nível de vida bastante tranquilo. Acho que a posição de Clarice reflete muito o problema do escritor brasileiro.

Clarice Lispector: Um livro que faça sucesso de crítica nos Estados Unidos enriquece o escritor! Um livro!

Marina Colasanti: Todos os seus fizeram sucesso e você continua fazendo conferências e traduções... Você faz traduções à tarde, não é Clarice? Porque de manhã você escreve para você.

Clarice Lispector: Olha, eu faço tradução a qualquer hora. Sou muito desorganizada. Eu traduzo do inglês e do francês. Mas trabalho depressa, intuitivamente. Às vezes consulto um dicionário, às vezes não, e, dependendo do caso, várias vezes.

João Salgueiro: Você aprendeu francês e inglês durante a carreira diplomática?

Clarice Lispector: Sabe como é que eu aprendi francês? Lendo francês. Eu não disse que era uma tímida arrojada? Peguei um livro de francês e me pus a ler pelo sentido, pela semelhança da língua latina, eu ia pegando, pegando, até que aprendi. A conversação... bem, eu estive três anos na Suíça e a minha empregada falava francês comigo. O inglês também foi assim, eu nunca fiz curso.

Affonso Romano de Sant'Ann: Vocês nunca falaram russo em casa?

Clarice Lispector: Não que eu tenha ouvido, porque meu pai logo começou a falar português.

Marina Colasanti: Ainda ligado ao russo: você, em criança, conheceu, através de contos de fada e coisas semelhantes, o folclore russo, porque é muito rico...

Clarice Lispector: É, eu sei que deve ser, mas eu nunca li.

Marina Colasanti: Nem te contavam histórias?

Clarice Lispector: Não, não me contavam. Minha mãe era doente e davam todas as atenções para ela. Eu vinha atrás da empregada pedindo: “Conta uma história, conta...” “Já contei!” “Repete, repete.”

Marina Colasanti: Você esteve em Recife agora. Quando você vai ao Recife se sente em casa ou sua terra é o Rio de Janeiro?

Clarice Lispector: Agora, minha terra é o Leme, onde moro desde 1959. Mudei de casa, mas no próprio Leme.

Affonso Romano de Sant'Anna: Os bairros cariocas que você cita no Laços de família, foi por causa de uma peregrinação que você tenha feito, ou cita foneticamente?

Clarice Lispector: Não, eu não fui, não. É porque eu sei como deve ser.

Affonso Romano de Sant'Anna: Nem o Jardim Botânico é uma curtição especial?

Clarice LispectorR: O Jardim Botânico, sim.

Marina Colasanti: Porque tem aquele conto, não é? E tem o do Zoológico também. De Zoológico você entende.

Clarice Lispector: Um rapaz que também escreve me disse uma vez: “Você tem um conto em A via crucis do corpo que se passa na Praça Mauá, em um inferninho, um lugar onde se bebe, se dança, com prostitutas e tudo... Você esteve em um bar da Praça Mauá?” Eu disse que não. “E como é então que eu, que já estive, não sei escrever a respeito e você sabe?” (risos) ... A gente vai pegando uma palavra aqui, uma palavra lá, o resto a gente calcula...

João Salgueiro: Você como pessoa, no contexto do mundo atual, se sente integrada na sociedade ou se sente solitária?

Clarice Lispector: Olha, eu tenho amigos, amizades, mas escrever é um ato solitário. Fora do ato de escrever eu me dou com as pessoas.

João Salgueiro: Quer dizer que não sente solidão?

Clarice Lispector: Às vezes, às vezes, e até muito profunda... O Alceu Amoroso Lima escreveu uma coisa que foi muito repetida, que eu estava numa trágica solidão nas letras brasileiras.

Affonso Romano de Sant'Anna: Não sei se é indiscrição minha, mas você podia contar a história dos pombos? A história, em si, daria um conto.

Clarice Lispector: Daria, mas um conto fantástico, que não seria tomado como realidade. Mas foi... Foi o seguinte: no dia primeiro de janeiro de 1964, uma amiga minha entrou em sua casa para buscar qualquer coisa e eu me sentei na escadaria para esperá-la. De repente, me deu um tal desespero com aquele sol e a água vazia, primeiro dia do ano, que eu disse: “Ai, meu Deus do céu, me dá pelo menos um símbolo da paz.” Quando abri os olhos tinha um pombo junto a mim. Aí eu fui ao cinema. As lojas estavam fechadas, mas junto ao cinema Paissandu, numa vitrine, havia um prato com quatro pombos que eu, no dia seguinte, fui e comprei. Está meio abandonado agora... Mas o terceiro fato foi o mais dramático: eu estava indo à cidade num dia de calor, tomei um táxi e estava tão cansada, de óculos escuros, que debrucei a cabeça em cima do encosto do assento frontal. De repente, senti uma coisa entre o olho e os óculos e fui ver o que era. Era uma pena de pombo... Depois, fui fazer uma visita de camaradagem a um amigo meu que era médico e contei a história. E então perguntei: “Como é que você explica isso?” Ele apenas disse: “O que é bom não precisa de explicação...” e perguntou: “Você quer uma pena de pombo?” Assustada, eu disse: “Você tem?” Então ele pegou uma e me deu... Em outra oportunidade quando eu fui ao médico, tomei um táxi que, no percurso, deu uma freada brusca. Eu perguntei ao chofer: “O que foi?” E ele disse: “Graças a Deus, eu acabo de evitar de matar uma pomba.” Uma história incrível.

Marina Colasanti: Há um tempo atrás você estava atravessando um período de crise de escritura. Quer dizer, você não queria escrever. Você tinha acabado o livro anterior a esta novela que está escrevendo agora. Inclusive você dizia que a tua libertação seria poder não escrever.

Clarice Lispector: É claro!... Escrever é um fardo!

João Salgueiro: Clarice, esta pergunta é de uma jornalista: “Você é uma intuitiva. Então como encara o sobrenatural em sua vida?”

Clarice Lispector: Olha, o natural é sobrenatural também. Não pense que está longe, não. O natural já é um mistério...

João Salgueiro: É interessante esta identificação do natural com o sobrenatural. Dá motivo a discussões interessantes.

Clarice Lispector: É, eu acho. Um dia destes eu estava numa fazenda e o fazendeiro que falava sobre os seus próprios problemas disse: “Porque é claro que o bezerro reconhece a mãe. Ela só dá leite para o seu bezerro.” E eu então disse: “Não é claro, não. Isso não é natural, não.” Mas ele espantou-se: “Como não é natural?” “É um fato formidável! Você já pensou no que uma vaca pensa?” Aí o homem se estatelou todo, coitado. Mudou de assunto na hora... Mas que elas reconhecem, reconhecem. Antes de se retirar o leite de uma vaca, amarra-se o bichinho ao lado da mãe e, depois, começa-se a tirar o leite. A vaca pensa que ainda está dando leite ao filho, e deixa. Agora, quando chamam para o leite e soltam os bezerrinhos, cada um vai para sua mãe e nunca, nunca erram. Quando o bezerro nasce morto, pegam a pele dele e botam em cima de um outro qualquer para a mãe pensar que ainda está dando leite para ele... Como você vê, com vaca e com galinha eu me dou muito bem!

Marina Colasanti: E também com camelos, búfalos...

Clarice Lispector: Com cavalos...

João Salgueiro: Talvez isso seja uma identificação com as forças da natureza.

Clarice Lispector: Acho que é sim. É algo muito profundo...

Affonso Romano de Sant'Anna: A crítica já falou do sentido ôntico dos animais de Clarice.

Clarice Lispector: O que é ôntico mesmo?

Affonso Romano de Sant'Anna: É o ser que se encontra dentro dos animais.

Clarice Lispector: Que se encontra, se encontra!

Marina Colasanti: Você disse que é um animal. Você é algum animal determinado.

Clarice Lispector: Não, não me sinto não. Os outros é que me achavam com ar de tigre, de pantera. Outros me achavam parecida com uma garça, por causa das pernas compridas... Quando eu era pequena, eu tinha gato que não acabava mais...

Marina Colasanti: As pessoas devem achar que você é meio felina por causa dos olhos, mas não é não. É porque você tem um comportamento interno e uma observação constante que é dos felinos.

Clarice Lispector: É, eu concordo. Com aquilo que eu conheço de gatos, eu concordo.

Affonso Romano de Sant'Anna: Você se encolhe e dá pulos também, não é?

Marina Colasanti: Você não pode falar nada, Affonso, porque é cavalo... E eu sou raposa. (risos)

Clarice Lispector: E ele, o que é?

Affonso Romano de Sant'Anna: Ele é um salgueiro, esplêndido na planície!... (risos)

Clarice Lispector: É, uma frondosa árvore. Com muitos frutos...

João Salgueiro: Que ótimo! Partindo da Clarice é uma coisa formidável!...

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