22 de fevereiro de 2023

A volta de Lula

Uma análise das forças de classe alinhadas em cada lado da divisão eleitoral do Brasil em 2022 por um dos principais teóricos sociais do país. Com Lula de volta ao Palácio do Planalto - e trazendo algumas surpresas -, André Singer delineia o hipertransformismo operando nas cúpulas do poder do estado e registra as conotações mais sombrias do motim-pastiche de 8 de janeiro em Brasília.

André Singer


NLR 139 • Jan/Feb 2023

Em célebre prefácio ao clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido lembrava aos leitores, em 1967, que o livro terminava com uma nota de dúvida quanto às “condições para a vida democrática no Brasil”. Buarque reconhecia que nas cidades as velhas aristocracias estavam sendo substituídas por quadros vindos de baixo, temperados pelas dificuldades do trabalho e capazes de estabelecer uma ordem política igualitária. Ao mesmo tempo, notou a persistência de formas personalistas e oligárquicas mais antigas. Qual desses impulsos prevaleceria permaneceu incerto.[1] As eleições brasileiras de outubro de 2022 foram uma atualização dramática dessa questão. O maior país da América Latina - cerca de 215 milhões de habitantes, uma economia classificada em décimo terceiro lugar no mundo - comemorou o bicentenário de sua independência com um novo sopro de vida para formas violentas de sociabilidade. Em sentido contrário, uma espécie de concertación, ou coalizão democrática - embora bem menos formalizada que suas contrapartes no Chile - levou o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência pela terceira vez, por 51 a 49 por cento dos votos válidos no segundo turno em 30 de outubro de 2022, com uma participação de 79%. Um suspiro de alívio com uma batida de samba pode ser ouvido em todo o mundo.

No entanto, quase metade do eleitorado - liderado por militares e ricos empresários dos setores agroindustrial, de serviços e construção, seguido por uma classe média enfurecida e trabalhadores de baixa renda influenciados pela teologia da prosperidade - optou pela política autocrática de Jair Messias Bolsonaro, que obteve 58.206.354 votos contra 60.345.999 de Lula. O ex-pára-quedista de 67 anos tornou-se o primeiro presidente em exercício a não ser reeleito desde 1988. No entanto, o rolo compressor militar-religioso-agronegócio conseguiu devolver o maior bloco do Congresso, colocando a direita em uma posição forte para obstruir qualquer tentativa de mudança estrutural. Apoiadores de Bolsonaro venceram as eleições para governador em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, os três estados mais ricos do país.

Após a vitória, Lula fez um discurso minucioso no qual prometeu que "as rodas da nossa economia voltarão a girar, com geração de empregos, aumento de salários e renegociação de dívidas para as famílias que vêm perdendo poder aquisitivo". Apoiadores descontentes de Bolsonaro, no entanto, bloquearam rodovias e acamparam do lado de fora dos quartéis para protestar contra o resultado, enquanto o presidente derrotado fugiu para a Flórida. O companheiro de chapa da vice-presidência de Bolsonaro foi o general reformado Walter Braga Netto; no entanto, os militares pareceram aceitar o resultado da eleição. Em entrevista ao O Globo, outro general, Hamilton Mourão, que foi vice-presidente de Bolsonaro de 2019 a 2022 e recém-eleito senador pelo Rio Grande do Sul, virou a página sobre o assunto.[2]

A política do que em outro lugar chamei de "autocracia inclinada para o fascismo" chegou a um passo de inaugurar uma nova meia-noite na América lusófona.[3] Esta contribuição, escrita no momento em que esses eventos se desenrolavam, tenta dar algum sentido à massa emaranhada de interesses, ideias e táticas. Indo e voltando nos dados, a primeira seção analisa o papel central dos pobres na coalizão democrática; a segunda esboça a configuração do bloco bolsonarista; a terceira e última secção volta à aliança vencedora, olhando para os imperativos de classe que a dominam e tentando antecipar os desafios que irá enfrentar. Avaliações rápidas de eventos que ainda estão em andamento podem, é claro, se mostrar parciais ou exageradas; o que se segue é uma tentativa de auxiliar o processo de pensar por meio de contradições cuja resolução final ainda está muito distante.

1. A centralidade da fome

Duas alianças rivais se uniram para travar a batalha de outubro. Segundo as pesquisas de opinião, os pobres já haviam se decidido em abril de 2021, quando Lula, com sua condenação pela "Lava Jato" anulada pelo STF, prometeu que se ganhasse haveria "cerveja no copo e carne na mesa". [4] Em um país que é o maior produtor mundial de proteína animal, o consumo interno de carne vermelha caiu para o nível mais baixo desde 1996. Uma pesquisa de opinião atrás da outra mostrava cerca de 50% dos entrevistados confirmando a intenção de colocar Lula de volta no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente brasileiro. Com uma vantagem substancial nas pesquisas, Lula foi construindo uma coalizão ad hoc que se tornou cada vez mais ampla ao longo do tempo. Apoiou um combativo candidato de esquerda, ainda que patrocinado pelo morno Partido Socialista Brasileiro (PSB), ao governo do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, ele apoiou um peso-pesado de centro-direita, um populista ligado ao clube de futebol local dominante, para o governo de Minas Gerais. Tendo escolhido Geraldo Alckmin como seu companheiro de chapa no final de 2021 - ex-governador de São Paulo, atual militante do PSB e pilar de longa data do centrista Partido Social Democrata do Brasil (PSDB) - Lula teceu em torno de si uma vasta colcha de retalhos de grupos de todos os tipos.

No entanto, a camada da classe dominante que atua como o sistema nervoso central da burguesia brasileira - e cujos interesses (bancários, manufatureiros, indústria pesada, cultura) estão mais diretamente relacionados ao núcleo do capitalismo global, especialmente por meio da intermediação financeira[5] - relutou até o fim em se juntar ao grupo de apoiadores de Lula. Houve algumas exceções, como Gustavo Ioschpe, descendente de uma fabricante de componentes automotivos, que já dizia em julho que votaria em Lula. Mas o grosso organizado dessa fração de classe permaneceu indiferente, apesar dos melhores esforços de Alckmin. Eles pressionaram Lula por concessões explícitas, detalhadas e concretas em sua política econômica - que não aconteceram. Esta pode ser a razão final pela qual a disputa foi para o segundo turno. Lula obteve 48,43 por cento dos votos em 2 de outubro, ficando apenas a uma fração dos 50 por cento necessários para vencer no primeiro turno; outros 1,6 por cento teriam garantido uma vitória imediata para a chapa Lula-Alckmin.

No segundo turno, quando a pressão chegou - e por razões que têm a ver com a política, não com a economia - os banqueiros viram-se momentaneamente alinhados com os sindicalistas e os movimentos dos trabalhadores sem-terra e sem-teto; os setores mais avançados da indústria uniram-se brevemente a mulheres, negros, indígenas e lgbtqia+; os conglomerados de mídia se uniram, por um instante, aos universitários. A unidade dessa concertación durou o tempo de um cubo de gelo (como na canção de Joaquín Sabina): o tempo suficiente para expulsar Bolsonaro e salvaguardar as instituições da democracia representativa - as bases sobre as quais a burguesia moderna estava disposta, por mais pouco intuitiva que fosse, para apertar o botão 13, número do candidato de Lula, na cabine de votação no dia 30 de outubro.[6] O período de lua-de-mel, se houve, não durou mais do que dez dias, findos os quais os sócios retomaram a disputa pública pelos rumos da economia, conforme discutido a seguir.

Compreender esse aspecto singular do concertacionismo no Brasil nos ajuda a desvendar os ritmos descontínuos e surpreendentes da sinfonia que estamos tentando compreender. Com os eleitores pobres se decidindo no início da campanha, enquanto os mais ricos só o fizeram no último momento, Lula passou todo esse tempo semieleito, mas na verdade não eleito, até que os setores mais avançados do grande capital atentou para as preocupações com a própria democracia representativa. Ao contrário do arco de Lula, o bloco de Bolsonaro subiu lenta e consistentemente, pois sabia desde o início que estratégia usar. De 22% em dezembro de 2021, Bolsonaro subiu ponto a ponto para 45% em outubro de 2022.[7] Apoiado por um Brasil paralelo, operando nas redes sociais, o presidente silenciosamente reorganizou uma importante seção do apoio eleitoral que acumulou em 2018. O que ele não conseguiu recuperar foi justamente o setor que se juntou a Lula na hora final, fazendo pender a balança a seu favor.

Essa história não linear culminou em um confronto entre duas coalizões de cima para baixo, comparável à ocorrida nos Estados Unidos em 2020, com os setores governantes e intermediários da sociedade se dividindo em dois campos.[8] Os pobres que, ao contrário dos Estados Unidos, representam quase a metade do eleitorado brasileiro (Tabela 1), inclinaram-se majoritariamente para um lado, enquanto as camadas de renda mais baixa e mais ricas inclinaram-se para o outro lado (Tabela 2). Às vésperas do segundo turno, Lula tinha 21% de vantagem sobre Bolsonaro entre os eleitores cuja renda familiar mensal era inferior a dois salários mínimos, sendo esta a menor das quatro faixas utilizadas para estratificar os entrevistados nas pesquisas.[9]



A empresa de pesquisas Datafolha classificou quase dois terços dos eleitores pobres como “vulneráveis”, ou seja, com renda baixa e instável.[10] Isso provavelmente significava que os subproletários do Brasil - trabalhadores agrícolas sazonais, vendedores ambulantes, guardas de segurança informais, funcionários informais de pequenos fabricantes, trabalhadores domésticos indocumentados e assim por diante - que se encontram "privados dos pré-requisitos mínimos para participar de luta de classes", já que não podem se sindicalizar ou entrar em greve.[11] O lulismo havia surgido como fenômeno político com o realinhamento eleitoral de 2006, que viu os pobres e os idosos saírem aos milhões para o ex-metalúrgico.[12] Em 2022, afirmou sua vertente subproletária, vencendo sobretudo entre as mulheres e os nordestinos. Lula venceu em 97 por cento das mil cidades mais pobres do Brasil, das quais 80 por cento estão no Nordeste. Desta vez, venceu também na cidade de São Paulo, possivelmente com a ajuda do terço restante dos eleitores pobres, designados pelo Datafolha como "resilientes", denotando uma renda baixa, mas estável, ligada ao setor formal do mercado de trabalho.

Para entender por que os pobres decidiram votar em Lula tão cedo, precisamos dar alguns passos para trás. Em geral, os brasileiros de renda mais baixa desaprovaram consistentemente o governo Bolsonaro. Mas com a criação do Programa de Auxílio Emergencial (AE) - levado ao Congresso por iniciativa do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula em abril de 2020, em resposta à pandemia -, a popularidade do presidente, surpreendentemente, começou a subir. A população creditou a Bolsonaro a ampla escala do programa, que teve cerca de 67 milhões de beneficiários, bem como seus generosos pagamentos: cerca de R$ 600 por mês (US$ 115), três vezes mais do que o programa Bolsa Família criado por Lula em 2004.[13] Como resultado, a renda dos 10% mais pobres dos brasileiros aumentou 15% acima da inflação. Em regiões onde o custo de vida era baixo, os benefícios do ae podiam chegar até a compra de um barraco.[14] Mais de 7 milhões de pessoas saíram da pobreza e, de acordo com o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu para 1,95%, a menor de todos os tempos.

Enquanto Bolsonaro perdeu algum apoio da classe média durante a pandemia ao atacar o distanciamento social, se opor às máscaras, defender a cloroquina, fazer piadas sobre a taxa de mortalidade e questionar as vacinas, ele conquistou apoio entre os estratos mais pobres. Se tivesse optado por manter a luta contra a pobreza, poderia ter ameaçado o realinhamento eleitoral de 2006 representado pelo lulismo, que combinava reforma gradual com conservadorismo institucional. Mas isso não aconteceria. No início de 2021, com uma média de mil pessoas morrendo por dia, o ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, cortou os pagamentos mensais de R$ 600 para R$ 170 a R$ 370, ou US$ 30 a US$ 70, além de restringir a elegibilidade. Para os excluídos, isso significava um desastre. Em março de 2021, a taxa de desemprego entre os pobres subiu para 36%; no final daquele ano, a renda dos 5% mais pobres mal chegava à metade do que havia sido em 2020. Com o aumento das taxas de contágio, Bolsonaro virou as costas para os mais necessitados, que não perdoariam sua recusa em ajudá-los.

Naturalmente, com a aproximação das eleições de 2022, a questão social voltou ao topo da agenda do presidente. O apoio a Bolsonaro entre os mais pobres – aqueles cuja renda familiar mensal era igual a um salário mínimo – havia caído para 14% em dezembro de 2021, segundo pesquisa do Ipec, após atingir 35% em setembro de 2020. Com o número de famintos subindo para 33 milhões em 15 de abril de 2022,[15] o presidente finalmente decidiu abrir a torneira, injetando cerca de 200 bilhões de reais na economia. Claro, isso foi feito com os dois olhos fixos nas próximas eleições. Levaria várias páginas para enumerar todas as medidas implementadas com o objetivo de atrair eleitores de baixa renda; algumas instâncias terão que ser suficientes. Em janeiro de 2022, o governo Bolsonaro lançou o programa Auxílio Brasil (AB), que desembolsou R$ 400 mensais, o dobro do Bolsa Família, que substituiu, e atendeu cerca de 21 milhões de famílias, ante 14,5 milhões que recebiam o Bolsa Família. Em agosto de 2022, o nível de pagamentos do AB voltou a subir, atingindo agora a cifra mágica de 600 reais vigente durante a pandemia. Ao mesmo tempo, o benefício do combustível foi dobrado para R$ 112 por mês, para ajudar as famílias pobres que voltaram a cozinhar com lenha. Como eram pagos em parcelas bimestrais, os beneficiários da previdência recebiam mais de 800 reais (US$ 150) em setembro. No início de outubro, mais meio milhão de famílias foram habilitadas e o governo anunciou um programa de alívio da dívida, permitindo que os beneficiários do AB contratassem empréstimos adicionais e tivessem o valor descontado do pagamento mensal do benefício, liberando outros 1,8 bilhão de reais (US$ 340 milhões) para 700.000 pessoas. Finalmente, o pára-quedista que se tornou Robin Hood prometeu um pagamento adicional de décimo terceiro mês para as mulheres alistadas no programa do AB.

Esses benefícios permitiram a Bolsonaro ganhar alguns pontos em municípios com alto índice de dependência do AB, melhorando seu desempenho no norte de Minas Gerais, no sertão nordestino, no estado do Pará e nas cidades menores da periferia oeste da região central. O AB o ajudou a diminuir a diferença para Lula de 5 pontos no primeiro turno para 2 pontos no segundo. Ainda assim, apenas 34% dos que receberam esses pagamentos, ou que coabitaram com alguém que os recebeu, declararam a intenção de votar em Bolsonaro, com 61% apoiando Lula. Para fins comparativos: em 2006, a intenção de voto em Lula saltou de 39 para 62 por cento quando o entrevistado recebia um programa de assistência federal.[16] Por que a diferença?

O cientista político Felipe Nunes sugeriu que as medidas de Bolsonaro foram percebidas pelos eleitores como de caráter abertamente eleitoral; havia ceticismo se os 600 reais continuariam.[17] Também é possível que os pagamentos do AB estivessem sendo usados para pagar as dívidas das famílias - 79% dos beneficiários estavam endividados em setembro de 2022 - com a inflação de dois dígitos corroendo o que restava. A revelação de que o Ministério da Economia estava estudando formas de desindexar o salário mínimo e os benefícios sociais da taxa de inflação pode ter sido a gota d'água.

No entanto, o bolsonarismo não se valeu apenas da cenoura das concessões; também trouxe à tona a intimidação política generalizada, a agressão física e a coerção econômica por parte dos patrões, que proliferaram à medida que as datas das eleições se aproximavam. Ilza Ramos Rodrigues, uma diarista de meia-idade em Itapeva, no estado de São Paulo, disse a um repórter que a doação de bens básicos que ela costumava receber de um empresário pró-Bolsonaro havia sido suspensa devido às suas simpatias pró-Lula, e ela frequentemente se deparava com "um armário vazio". Ela, no entanto, manteve-se firme em seu voto. Lula "sempre esteve do nosso lado" e "com os pobres", disse ela à Folha de S. Paulo em meados de setembro. Essas camadas passaram a chamar Lula, de 77 anos, de "painho", à moda baiana. Assim como Getúlio Vargas, conhecido como o pai dos pobres quando foi reeleito em 1950 aos 68 anos, o painho reuniu uma concertación mista; mas acima de tudo, ele deve seu retorno ao cargo aos mais vulneráveis.

2. O bloco de Bolsonaro

Apesar do crescimento do lulismo entre os eleitores de menor renda, Bolsonaro tinha uma vantagem de 9% entre aqueles com renda familiar de 2 a 5 salários mínimos, que constituem cerca de 40% do eleitorado (Tabelas 1 e 2, acima). Foi essa camada, que inclui a maioria dos trabalhadores "formais", que tornou a extrema direita competitiva em 2022. A pergunta chave é: por quê? Primeiro, Bolsonaro conseguiu criar uma espécie de fator de bem-estar por meio de uma infinidade de medidas fiscais que afetam diretamente esse estrato - reduções no imposto sobre combustível, vale-combustível para taxistas e caminhoneiros, pagamento acelerado de bônus de fim de ano para aposentados, liberalização dos fundos nacionais de seguros para permitir o pagamento de hipotecas. O PIB do Brasil cresceu 2,5% no primeiro trimestre de 2022 e o valor do real subiu 1,3% no terceiro trimestre. O desemprego caiu de 11 para 8,7% entre o final de 2021 e setembro de 2022, quando 53% dos brasileiros achavam que a situação econômica provavelmente melhoraria nos próximos meses, a perspectiva mais otimista desde o início do mandato de Bolsonaro.

Essas medidas ajudaram a reativar as tendências de direita de longa data de alguns setores da sociedade brasileira; mas outros fatores materiais e ideológicos foram quase certamente cruciais para permitir que Bolsonaro quase igualasse seu apoio em 2018 entre os eleitores na faixa de 2 a 5 vezes o salário mínimo.[18] No contexto brasileiro, muitos desses trabalhadores podem ser considerados de classe média baixa. Eles parecem ter sido atraídos por uma nova conjunção entre formas de produção e visões de mundo correspondentes. O superciclo das commodities, em recuperação no início de 2021 e ainda forte no período que antecedeu as eleições, ofereceu novas oportunidades para isso. A demanda externa por matérias-primas e a desvalorização do real impulsionaram uma expansão da produção agrícola de 24% em 2020, apesar da pandemia. A agricultura como um todo contribuiu com 27% do PIB, enquanto o outrora pesado setor industrial foi reduzido para 11%. A produção agrícola aumentou mais 8% em 2021; A produção de grãos do Brasil no ano seguinte foi a maior de todos os tempos. "Praticamente todo o suco de laranja consumido no mundo vem das plantações do estado de São Paulo", noticiou o Financial Times em julho de 2021; de acordo com o chefe da Embrapa, instituto de pesquisa agrícola do governo, em alguns lugares a "agricultura tropical sustentável" permitiu colher três safras por ano.[19]

Uma nova "confederação"

Como apontou o economista Bráulio Borges, o coração do bolsonarismo mapeia de perto essas vastas plantações, cujos lucros aumentaram em termos reais em 30% sob Bolsonaro.[20] Trata-se de um imenso enclave ao estilo texano, que vai do norte do Rio Grande do Sul até Santa Catarina - onde manifestantes pró-Bolsonaro foram filmados fazendo saudações nazistas após o resultado da eleição - e o Centro, até as fronteiras do Nordeste (ver mapa). Essas regiões desfrutam de empregos, dólares e cidades habitáveis, onde se pode desfrutar da música sertaneja, do tiro recreativo e do fervor da direita. Isso ajuda a explicar por que a fração agrária da classe dominante, por mais “moderna” que seja, divergiu do tronco principal para propor um programa que o economista José Luis Oreiro chamou de fazendão, ou “plantacionismo”.[21] Como se poderia imaginar, isso significa mais armas, menos impostos sobre o agronegócio e um retrocesso sustentado nos direitos dos trabalhadores, na proteção do meio ambiente e na demarcação dos territórios indígenas.


O que está em jogo aqui é um novo alinhamento político que poderíamos chamar de Confederação bolsonarista. A alusão à Guerra Civil americana deve ser tomada cum grano salis: não há sistema escravista no Brasil do século 21, nem ameaça iminente de guerra civil pela secessão. Mas o termo fala da consolidação de uma coalizão de base territorial, econômica e social, cuja indignação se materializa numa espécie de sentimento político-ideológico secessionista: não queremos fazer parte do Brasil lulista, com sua típica base social (pobre, negra) e territorial (nordestina). Esse modelo confederado-exportador, legitimando a xenofobia antinordestina e um certo grau de separatismo, conseguiu atrair alguns setores da classe trabalhadora. Viu-se no bolsonarismo, cujo lema poderia ser: a sociedade não deve ser integrada, apenas hierarquizada.

Enquanto Bolsonaro relaxava os controles sobre a destruição da floresta amazônica - sob seu governo, o desmatamento aumentou 60% - e permitia a invasão de reservas tribais, madeireiros e mineradores no Norte, muitos deles operando ilegalmente, deu apoio entusiástico aos Confederados. A extrema direita triunfou nos 265 municípios dos nove estados amazônicos. No município de Novo Progresso, Estado do Pará, onde em 2019 proprietários de terras promoveram uma iniciativa do "Dia do Fogo’ de incêndio coordenado que ganhou as manchetes mundiais, Bolsonaro podia contar com 80% dos votos. No segundo turno obteve maioria nos estados do Acre, Rondônia e Roraima, empatando praticamente em toda a região norte.

Nas grandes cidades, a Confederação contava com o apoio dos chefes da construção civil e do setor de serviços, simbolizados por Luciano Hang, chefe de uma rede de lojas de departamentos. Chefes novos-ricos de escolas de idiomas, restaurantes, concessionárias de automóveis, academias, lojas de esportes e construtoras estavam ativamente engajados com o modelo de agronegócio exportador, ao qual podiam aderir como partes subsidiárias. Atrás deles veio uma seção vocal dos 20 milhões de pequenos empresários do Brasil, alguns dos quais contariam como membros da classe média baixa. No total, 77% desses "empresários" planejavam votar em Bolsonaro no turno final. Uma delas, Thaís do Carmo, de 31 anos, natural de Betim, Minas Gerais, explicou ao Le Monde que, “como empresária”, naturalmente “detesta a esquerda”.[22]

Em agosto de 2022, Hang, o chefe da loja de departamentos, que geralmente aparece com a cabeça raspada e terno verde-limão, combinado com uma gravata amarela berrante, respondeu à "carta aberta" de líderes empresariais em apoio à democracia (discutida abaixo), ao dizer que "milhões de empresários" assinariam "o manifesto contrário".[23] Ele pode muito bem estar certo. O único município do estado de Pernambuco a dar a Bolsonaro mais votos do que Lula foi Santa Cruz do Capibaribe, um pólo de confecção de roupas com muitos pequenos negócios, onde a renda familiar média era de 2,5 a 4 salários mínimos. Segundo o antropólogo Maurício de Almeida Prado, o discurso do pequeno estado teve muitos adeptos entre esses "lutadores". O cientista político Antonio Lavareda argumentou que esse setor fazia um nexo de causalidade entre "a corrupção acentuada pelo caso Lava Jato e o empobrecimento da sociedade".[24]

O partido militar

Profissionais da "bala e da Bíblia" tiveram papel significativo na bricolagem bolsonarista. Generais e empresários religiosos trouxeram uma dimensão constitucional e moral à plataforma econômica da Confederação, contribuindo para sua proeminência na mídia. Conectando a visão de mundo do interior aos problemas da vida na cidade, eles clamavam por menos liberalismo na política, menos estado na economia, mais família - em resposta à precariedade atomizante do capitalismo tardio - e, para enfrentar o agudo desafio da segurança, mais repressão.

A questão da segurança pública tem enorme relevância em um país onde ocorreram mais de 200.000 homicídios entre 2008 e 2011, quase o triplo do número (76.000) mortos durante os primeiros três anos da ocupação americana do Iraque. Com mais de 700.000 pessoas presas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, depois dos Estados Unidos e da Rússia; suas celas superlotadas foram descritas como “masmorras medievais” por um dos ministros de Dilma Rousseff. Grande número está empregado na indústria de segurança: 380.000 no exército, marinha e aeronáutica, cerca de 400.000 policiais militares, outros 130.000 policiais civis e federais, além de cerca de um milhão de seguranças privados. Por isso é tão relevante o papel das Forças Armadas e das Polícias Militares estaduais: reforçando a associação entre a mensagem "Ordem e Progresso" da bandeira nacional verde e amarela e a capilaridade dos escalões inferiores dos empregados em serviços armados.

Pró-armas, pró-prisão e hostil ao universalismo dos direitos humanos, a onda bolsonarista se mostrou "poderosamente sedutora", não só para as Forças Armadas e Polícias Militares, mas também para as polícias civil e federal, segundo nota importante do jornalista Fabio Victor livro, Poder camuflado. Outro estudo mostra que, em 2021, cerca de um terço da Polícia Militar interagiu com bolsonaristas radicais online. Marcelo Pimentel, coronel da reserva que fez um estudo sobre o que se chama de "Partido Militar", observa que quatorze dos dezessete generais que compunham o Alto Comando das Forças Armadas em 2016 ocuparam cargos de chefia no governo Bolsonaro em 2021.[25]

O retorno dos generais à arena decisória, de onde haviam sido banidos após o desmonte da ditadura militar de 1964-85, faz parte de uma história que remonta à proclamação da República em 1889. No período recente, pode ser útil distinguir quatro estágios principais. Na primeira fase, sob as presidências de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010), o regime militar ainda constituía um culto para um número indeterminado, mas significativo, de oficiais nos quartéis. Tais opiniões foram expressas publicamente apenas por algumas figuras na reserva, no entanto, passando despercebidas pela maioria dos estudiosos e políticos, levando à falsa impressão de que os oficiais mais jovens eram imunes aos atrativos do autoritarismo. A segunda fase teve início em 2011, quando Dilma Rousseff, sucessora de Lula, criou a Comissão Nacional da Verdade (VNV), com a missão de investigar as mortes e desaparecimentos de oposicionistas durante a ditadura. O relatório do CNV, entregue em dezembro de 2014, constatou que cerca de cem militares vivos haviam violado os direitos humanos. Como observa Victor, isso provocou protestos do corpo de oficiais e “intervenções políticas de generais de serviço”. A terceira fase viu o impeachment de Dilma em 2016, enquanto seu vice-presidente Michel Temer deu aos militares "um grau de poder não visto em 21 anos".[26]

Por fim, esse retorno gradual resultou em um candidato presidencial com base nas Forças Armadas. Bolsonaro, formado em 1977 pela Academia Militar das Agulhas Negras, equivalente à West Point, lançou sua candidatura presidencial em uma escola em uma cerimônia de formatura de cadetes. Apesar de quase ter sido expulso do Exército por indisciplina em 1988, foi "anistiado" pelos ex-colegas. Após o colapso do governo Temer de 2016-18, que rapidamente caiu em um pântano de corrupção, membros das Forças Armadas se reuniram para a candidatura deste congressista anteriormente banal, cada vez mais considerado como um "mito" por seus admiradores.[27] Em um momento-chave da pré-campanha de 2018, o chefe das Forças Armadas emitiu uma mensagem pública ao Supremo Tribunal Federal, que deveria proferir no dia seguinte o julgamento de um habeas corpus que poderia ter aberto o processo caminho para Lula, então preso pela Lava Jato em Curitiba, disputar a eleição. Segundo a mensagem, o Exército não aceitaria a “impunidade”. O mandado foi negado e Bolsonaro tornou-se o 38º presidente da República.

Segundo o vice-presidente Mourão, o governo Bolsonaro não foi um regime militar, mas sim um regime de ex-militares. No entanto, dos 5.000 cargos executivos ocupados por oficiais uniformizados – incluindo, como vimos, cargos de alto escalão – de acordo com os cálculos de Victor, 60% estavam servindo atualmente. Além de uma quase duplicação de integrantes das Forças Armadas absorvidos no aparelho governamental, os corpos militares e policiais receberam inúmeros benefícios materiais. O "Partido Militar" retribuiu, demonstrando seu apoio aos desígnios autocráticos do líder, apesar das contínuas renúncias. Para citar um dos vários exemplos: o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ex-comandante das Forças Armadas, deixou de lado sua imagem "moderada" assim que foi nomeado ministro da Defesa, em março de 2022, e prontamente se revelou "um ardente militante".[28] Nogueira de Oliveira acompanhava Bolsonaro em julho de 2022 quando o presidente fez suas mais contundentes ameaças de golpe, atacou a integridade das urnas eletrônicas e deixou claro, diante de uma plateia de quarenta embaixadores estrangeiros que, em caso de derrota, ele apoiaria uma ruptura institucional como a tentada por Trump no Capitólio dos Estados Unidos. Em resposta, um porta-voz do Departamento de Estado de Biden certificou que o sistema eleitoral do Brasil não era apenas "capaz e testado pelo tempo", mas um modelo para outras nações.

Pendurado no barbante

Três semanas depois, em 11 de agosto de 2022, foi a vez da burguesia financeiro-industrial desfraldar a bandeira da legalidade, na carta aberta acima mencionada que rendeu o desprezo de Hang. “A tentativa de desestabilizar a democracia e a confiança pública na imparcialidade do sistema eleitoral” não teve sucesso nos EUA, e “também não terá aqui”, afirmaram os signatários.[29] A data marcou uma divisão dentro da classe dominante brasileira. Os do setor financeiro e dos grandes negócios professaram sua fé na “democracia” (mas não em Lula). Aqueles que não assinaram a carta, liderados pelo agronegócio moderno, ficaram do lado dos Confederados. Claro, houve aqueles na agricultura e no setor de serviços que apoiaram o sistema democrático, e aqueles nas finanças e na indústria que apoiaram Bolsonaro. Mas a linha geral de divisão entre as duas frações havia sido traçada. O mesmo se aplica à classe média tradicional, que se dividiu em duas: a parcela maior – 55%, conforme a Tabela 2 – não seguiu o exemplo do grande capital e das finanças, com os quais vinha acompanhando desde o retorno da democracia eleitoral em 1985.

O apoio da burguesia financeiro-industrial veio com condições. Sabendo perfeitamente que nenhum candidato teria chance de derrotar Bolsonaro a menos que estivesse enraizado na grande massa da população, o bloco empresarial que se moveu para impedir um golpe de estado em 11 de agosto decidiu colocar vento nas velas de Simone Tebet, senadora centrista do MDB pelo Mato Grosso do Sul, na esperança de ganhar força na negociação com Lula. Tebet se apresentou como uma alternativa moderada às duas principais coalizões, recebendo 4% dos votos no primeiro turno – no qual, lembremos, Lula perdeu a vitória por apenas 1,8%. Ciro Gomes, um candidato de centro-esquerda, recebeu 3 por cento concorrendo pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Assim que o primeiro turno deixou claro que todos os votos contariam, Gomes deu um endosso superficial à coalizão democrática e retirou-se do palco. Tebet, pelo contrário, apelou a um novo alargamento da concertación e assumiu um papel combativo na nova aliança. Nos bastidores, outro cabo de guerra estava em andamento. Os capitalistas avançados queriam um “gesto dramático” de Lula, comprometendo-se com a responsabilidade fiscal, ainda que o manifesto apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral prometesse “revogar o teto de gastos públicos”.

No dia 6 de outubro, ainda sem solução, quatro proeminentes pensadores econômicos do PSDB – Pedro Malan, Edmar Bacha, Armínio Fraga e Persio Arida – falaram, por assim dizer, pelo moderno capital financeiro-industrial, declarando que votariam em Lula, com "a expectativa" de que haveria "gestão responsável da economia". O The Economist, que pode ser visto como o termômetro do capital estrangeiro, havia feito o mesmo 48 horas antes. A grande imprensa "séria", abertamente antagônica a Bolsonaro, divulgou esses fatos por toda parte e, por três semanas, colocou a democracia acima da desconfiança com o lulismo.[30] Quinze dias após a declaração do quarteto do PSDB, Lula comentou brevemente, em discurso no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que “este não será um governo do Partido dos Trabalhadores”. Com isso, segundo o jornalista Cristiano Romero, ele enviou um recado tanto “às correntes mais de esquerda de seu partido quanto, claro, aos mercados”. Não haveria espaço no governo para militantes do Partido dos Trabalhadores “que levantassem a menor dúvida sobre os rumos da política econômica” em um terceiro mandato de Lula.[31] A presença de Henrique Meirelles, arquiteto do teto de gastos públicos, ex-presidente global do BankBoston e presidente do Banco Central no governo Lula no evento, além de Persio Arida, outro ex-presidente do Banco Central dos anos FHC e idealizador da reforma monetária antiinflacionária da década de 1990, o Plano Real, destacou a mensagem.

Conservadores e cristãos

O "Partido Militar", por sua vez, parece ter entendido que tentar derrubar os procedimentos eleitorais estabelecidos sem o apoio do capital financeiro-industrial avançado ou dos EUA resultaria em seu isolamento e incapacidade de governar. O programa autocrático teria de ser desenvolvido dentro da estrutura das instituições democráticas, pelo menos por enquanto. Como disse Mourão ao admitir a derrota: "Concordamos em participar de um jogo em que o outro jogador [Lula] não deveria participar. Mas se concordamos, não há mais do que reclamar." Questionado sobre os protestos pró-Bolsonaro, ele respondeu: "Deveriam ter ocorrido quando o jogador que não deveria estar no jogo foi autorizado a competir. Eles deveriam ter começado esse tumulto nas ruas, mas não o fizeram."[32]

Em compensação, as eleições de 2022 tiveram um aumento significativo de representantes eleitos ligados aos serviços de segurança, com 48 deputados federais eleitos e 39 estaduais – um aumento de 27%.[33] A máquina política confederada, com seus componentes de segurança e liderança econômica, tem as condições necessárias para continuar funcionando, mesmo que o "mitológico" Bolsonaro desapareça depois de 2023. De fato, alguns pensam que o carisma do "mito" tem raízes puramente paroquiais. Segundo o jornalista Bruno Paes Manso, Bolsonaro e seus filhos são representantes ideológicos de uma cultura miliciana que cresceu no Rio de Janeiro e “chegou até a presidência do Brasil”.[34] As milícias em questão eram unidades formadas por policiais em exercício e ex-policiais no Rio a partir da década de 1990, que assumiam o papel de “segurança” em áreas supostamente invadidas por traficantes predadores. As milícias coletavam o dinheiro da proteção e obrigavam os moradores a pagar pelos serviços – conexões ilegais de TV a cabo, impostos sobre cooperativas de transporte e um alto percentual de cobrança na compra e aluguel de carros. Um estudo estima que, nos últimos trinta anos, as milícias cariocas ocuparam mais da metade do território antes controlado pelo crime organizado, com mais de 4 milhões de habitantes. Uma análise da votação do primeiro turno mostra que Bolsonaro varreu bairros com grande presença de milícias.[35]

O Rio também é o estado onde os grupos pentecostais têm maior influência. Pregadores evangélicos fizeram greve de fome em protesto contra a perspectiva de Lula vencer no primeiro turno, e a pressão religiosa pode ter sido a principal influência ali. Em Minas Gerais, onde não se sabe da atuação de milícias, o avanço do bolsonarismo no segundo turno foi atribuído aos evangélicos. Com o apoio de 30% da população e uma chapa recém-eleita de 92 representantes, importantes igrejas evangélicas lançaram uma mobilização nacional sem precedentes em favor de Bolsonaro. Seu voto de 2018 já havia sido vinculado ao evangelismo, mas o ciclo eleitoral de 2022 testemunhou um aumento conservador bíblico diferente de tudo o que já foi visto antes. Ele mesmo católico, Bolsonaro investiu sistematicamente na construção de relacionamentos com lideranças evangélicas. A partir de 2011, passou a incorporar “temas relacionados à moralidade sexual” em sua atividade legislativa e, celebremente, fez-se batizar no rio Jordão. Uma vez no cargo, ele usou o slogan "Deus acima de tudo" estampado em todos os lugares, aplicou conceitos religiosos a decisões de estado, nomeou figuras evangélicas para cargos ministeriais e do Supremo Tribunal Federal, se opôs a restrições a grupos religiosos durante a pandemia e perdoou uma dívida de R$ 1,4 bilhão devida ao Estado pelas igrejas.[36]

Em troca, líderes religiosos – incluindo o bilionário Edir Macedo, fundador da megaigreja Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – deram seu apoio entusiástico ao projeto bolsonarista. O canal de TV de Macedo, Rede Record, o segundo maior do Brasil, juntou-se a outras mídias, incluindo a Jovem Pan, uma empresa modelada na Fox News, para contrabalançar a cobertura crítica de Bolsonaro pela Globo, a maior e mais influente rede de TV do país. Uma missiva da IURD em setembro de 2022 reiterou o apoio de Macedo ao presidente, já que o "pensamento evangélico" não podia aceitar "o ataque constante à estrutura familiar tradicional, composta por pai, mãe e filhos".[37]

No início da campanha eleitoral, empresários religiosos inundaram o país com um exército de fervorosos proselitistas, dando voz ao que a cientista política Marina Basso Lacerda chamou de “paleoconservadorismo brasileiro”.[38] Importado dos Estados Unidos, este prega que uma boa sociedade não é alcançada por meio de políticas públicas ou medidas redistributivas, mas pelo “fortalecimento da família como fonte de provisão para seus membros”. Como disse Bolsonaro às Nações Unidas, a família era a célula-mãe da qual emergiria uma sociedade saudável. Um Brasil “conservador e cristão” precisaria defender sua ordem moral interna contra aqueles que pretendem miná-la. Enquanto Bolsonaro evitou a oposição explícita ao estado laico, isso estava efetivamente em questão, visto que um país cristão deixa aqueles que não são cristãos em uma posição de inferioridade. Ocorre uma inversão retórica da realidade, transformando o agressor em vítima.[39] A mensagem é que os inimigos da família visam destruir esse pilar de uma boa sociedade e por isso devem ser reprimidos – quando, na verdade, quem quer suprimir o outro e se recusa a permitir a diversidade são os paleoconservadores.

Um estudo realizado em uma área periférica do sul de São Paulo na década de 2010 traçou a lenta difusão de argumentos anti-PT entre os evangélicos da classe trabalhadora, geralmente aqueles na faixa de 2 a 5 salários mínimos - funcionários de salões de beleza, lojistas, seguranças, policiais – tudo junto com o agravamento dos problemas econômicos e as denúncias de corrupção dirigidas ao petista.[40] Pode ser esse coquetel de sentimento molecular antipetista e paleoconservadorismo que explique o caráter fanático da polarização política de 2022. Em linguagem que lembrava a dos agitadores de extrema direita americanos dos anos 1930 estudados por Löwenthal e Guterman, os oponentes políticos não eram mais concebidos como obstáculos humanos à conquista de objetivos particulares, mas como um corpo externo à sociedade, a encarnação do próprio mal.[41]

Dirigindo-se a uma congregação da Igreja Batista de Filadélfia em Salvador, Bahia, pouco antes do segundo turno, um pastor eleito para o Congresso falou em "uma guerra civil contra o mal iminente de uma possível vitória da esquerda". Um membro de outra igreja relatou que o pastor havia dito que, se Lula fosse eleito e viesse queimar as igrejas, “ele faria com que quem tivesse votado em Lula fosse o primeiro a queimar”. Em Belo Horizonte, um pastor com uma congregação semanal de cinco mil pessoas usou seu púlpito para acusar Lula de apoiar o aborto e a legalização das drogas, querendo restringir a mídia e libertar os condenados por pequenos furtos.[42] A pressão foi tanta que Lula se viu na obrigação de publicar uma "Carta aos evangélicos", duas semanas antes do segundo turno, assegurando aos leitores que não impediria o livre funcionamento dos locais de culto, que era pessoalmente contrário ao aborto e comprometido com "o fortalecimento as famílias para que nossos jovens fiquem bem longe das drogas." Ainda assim, partindo de um empate com Lula entre os evangélicos em dezembro de 2021, a agitação dos pastores deu a Bolsonaro uma vantagem de 20 pontos entre eles na corrida para o segundo turno.

3. A grande coalizão

Na política brasileira, caracterizada por um hipertransformismo que confundiria até mesmo Gramsci, as posições mais fanáticas podem ser alteradas com uma mudança de vento. Em 3 de novembro de 2022, Edir Macedo pregou o "perdão" de Lula. A Realpolitik foi ainda mais rápida. As negociações com o Congresso começaram imediatamente. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-Alagoas), aliado de Bolsonaro que fala pelo Centrão – a maior bancada do Congresso, com cerca de 300 deputados, majoritariamente conservadores – nem esperou o anúncio formal dos resultados em 30 de outubro para correr na frente das câmeras de notícias e dizer que a vontade do povo expressa nas urnas "nunca deve ser contestada". Na hora, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-Minas Gerais), também amigo de Bolsonaro, seguiu o colega da Câmara: "Podemos oferecer ao povo uma grande coalizão de alinhamento entre as instituições no próximo governo".

O que Lira e Pacheco queriam em troca dessa flagrante reviravolta – que também serviu para desestimular possíveis movimentos golpistas de extremistas pró-Bolsonaro – era o apoio de Lula para reelegê-los para as presidências de suas respectivas Casas em fevereiro de 2023. Além disso, eles queriam a continuação do que ficou conhecido como o "orçamento secreto", mecanismo em funcionamento desde 2019 e oficializado por Bolsonaro em 2021, no qual o líder da Câmara recebe um enorme pote de dinheiro – cerca de 20 bilhões de reais (US$ 3,8 bilhões) – para distribuir em emendas legislativas. Parte desses recursos pode ser gasta pelos legisladores em seus próprios círculos eleitorais, sem a necessidade de detalhar as obras realizadas ou prestar contas. Este foi um expediente (escandaloso) para comprar o controle sobre os membros do Congresso, já que aqueles que recebem esse dinheiro tendem a ser reeleitos; a eleição de 2022 teve a menor rotatividade da Câmara desde 1998. O orçamento secreto reforçou a posição do líder da Câmara, já habilitado por uma cláusula da Constituição que estipula que ele, e somente ele, pode decidir sobre o encaminhamento de artigos de impeachment que lhe foi submetido ao plenário da Câmara. Bolsonaro aceitou o orçamento secreto como o preço para evitar seu próprio impeachment e assim se tornou a "tchutchuca do Centrão", de acordo com um de seus próprios partidários - francamente retratado pela Associated Press como "o 'queridinho' de uma fração do barril de porco do Congresso".[43]

Como Lula também precisa do apoio do Congresso para escapar do impeachment, bem como para aprovar os programas sociais que prometeu, ele também tem feito uso do hipertransformismo, inclusive apoiando a reeleição de Lira e Pacheco. Mas no processo de negociação com eles, ele conseguiu extrair algumas concessões. A história é cheia de reviravoltas. Após a eleição, Lula – como qualquer presidente brasileiro – teve que negociar com vários partidos do Congresso e até membros independentes até que, seguindo a regra da “grande coalizão”, tivesse apoio parlamentar suficiente para governar.[44] Os deputados são eleitos por representação proporcional em nível estadual, de modo que o apoio absoluto da maioria nacional conferido ao presidente não se reflete no Congresso. E graças às suas regras flexíveis de formação partidária, o Brasil há muito tem um dos cenários político-partidários mais fragmentados do mundo. Em 2022, 23 organizações estavam representadas na Câmara de 513 deputados, o que significa que cada uma tinha apenas um pequeno bloco de representantes.[45] Como os partidos da coligação pré-eleitoral do PT tinham apenas 154 cadeiras na Câmara, o PSD e o MDB – o partido que liderou o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016 – foram rapidamente convidados a entrar no terceiro gabinete de Lula. Em teoria, pois as lealdades partidárias individuais também são bastante relativas, elas trazem consigo 83 assentos. O partido conservador União Brasil, com um valioso bloco de 59 cadeiras, também conquistou cargos ministeriais, mas ainda assim está dividido quanto ao apoio a Lula. Com isso, o governo Lula conseguiu uma estreita maioria na Câmara, mas à custa de abranger todo o espectro ideológico da esquerda à direita, excluindo apenas os partidos pró-Bolsonaro. No Senado, o candidato bolsonarista a presidente da Câmara foi derrotado por 49 a 32 votos no dia 1º de fevereiro.

Se esses grupos ambíguos puderem ser mantidos juntos – sempre uma proposta cara – um novo impeachment pode ser evitado. Mas mesmo eles não foram suficientes para aprovar emendas à Constituição, que requer 308 deputados e é essencial até mesmo para um programa legislativo mínimo, já que a Constituição brasileira é extremamente detalhada, deixando pouco ao acaso. Analistas sugeriram já em outubro que Lula também tentaria cooptar membros de partidos pró-Bolsonaro dentro do Centrão, vacilando em deputados individuais.[46] Após a rápida reviravolta de Macedo, os Republicanos, partido ligado à Justiça, declararam-se "não fervorosos" na oposição. Alguns do Partido Progressista (PP), principal herdeiro da ditadura, também se inclinaram a aderir a Lula. Mesmo no Partido Liberal (PL), organização criada em 1985 e colonizada por Bolsonaro em 2021, cerca de 40 dos 99 membros do grupo na Câmara eram favoráveis à entrada em um governo liderado por Lula. Mas o chefe do partido, Valdemar Costa Neto, agindo sob pressão de Bolsonaro, assumiu uma postura linha-dura. Assim, o manto da oposição caiu sobre o PL como plataforma para desestabilizar o governo Lula. Por outro lado, o PSDB, ex-hegemon do voto da classe média, agora com apenas 13 deputados, declarou-se independente tanto de Lula quanto de Bolsonaro; e com ele, talvez, as modernas frações capitalistas financeiro-industriais.

A situação econômica do Brasil, combinada com a recessão global e as pressões inflacionárias, tornou imperativo que Lula alcançasse algum tipo de resolução orçamentária até o início de 2023. Um fator de "sentir-se mal" era exatamente o que as forças da Confederação esperavam, para acender a fogueira que consumiria seu capital político acumulado. Uma vez que o espaço fiscal para respirar foi descartado por uma emenda constitucional de 2016 que impôs um teto muito rígido para os gastos públicos, a questão foi definida para puxar as costuras da colcha de retalhos interclasse do governo Lula. Além disso, o discurso de Lula em 21 de outubro, na presença de Meirelles e Arida, parecia descartar qualquer movimento redistributivo. Teria ele capitulado às pressões que Rui Falcão, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, tinha em mente quando alertou sobre ser pressionado a “adotar um programa que não é o nosso programa”?[47] TA verdade é que Lula buscava uma fórmula de conciliação, que foi o que tentou em sua "Carta para o Brasil de Amanhã", divulgada 48 horas antes da votação: "É possível combinar responsabilidade fiscal, responsabilidade social e desenvolvimento sustentável". O setor financeiro, previsivelmente, considerou o documento muito genérico, sem respostas sobre de onde viria o dinheiro para atender a tantas demandas.

No entanto, a necessidade de cumprir as promessas feitas aos pobres e aliviar a dívida das famílias, aumentar o salário mínimo e financiar medidas de segurança pública, sistema de saúde, educação - enfim, a reconstrução nacional que tantos esperavam - impulsionou Lula, numa jogada inteligente, para negociar com Lira antes mesmo de ser empossado. Em termos brutos, ele trocou seu apoio implícito à reeleição de Lira e Pacheco por uma renúncia aos limites de gastos no primeiro ano. Formalmente, Lula passou o controle de sua equipe de transição para Alckmin e nomeou Arida como um de seus coordenadores de política econômica, junto com outros três economistas, dois deles militantes do Partido dos Trabalhadores.[48] Arida defendeu um plano de "renúncia" para permitir gastos de R$ 100 bilhões (US$ 19 bilhões) acima do teto de gastos - bem aquém do que as pessoas de esquerda julgaram necessário para um projeto de reconstrução modelado no discurso de Biden ao Congresso em 28 de abril de 2021. Não chegava nem para garantir o "mínimo social": a promessa de Lula de manter o Bolsa Família em R$ 600, com acréscimo de R$ 150 para cada filho até seis anos.

Então Lula deu seu audacioso chute a gol – entrando em negociações diretas com o Congresso, ou seja, Lira e Pacheco, sem consultar a equipe de economistas que ele mesmo havia nomeado sob a alçada de Alckmin. Ao mesmo tempo, o “orçamento secreto” foi submetido à Suprema Corte, que o considerou ilegal. Isso fez com que Lira tivesse que aceitar a solução intermediária que Lula oferecia, que envolveria novas negociações entre o presidente da Câmara (Lira) e o Executivo (Lula) sobre a alocação de parte do que era o “orçamento secreto”. Com certeza, Lira fará de tudo para manter o controle do dinheiro. Ao mesmo tempo, Lula tentará arrancar dele concessões legislativas, em troca das emendas que deseja. Quanto aos resultados desta feroz batalha, só o tempo dirá. Mas Lula, com a ajuda decisiva do STF, conseguiu reconquistar algum poder para a presidência.

A chamada "Emenda Constitucional para a Transição" que Lula extraiu do Congresso abriu mão do teto anual de gastos em 50% acima da proposta de Arida, elevando o valor para cerca de R$ 150 bilhões, o que deve garantir o "mínimo social" até o fim de 2023. Após dura negociação, a emenda constitucional foi aprovada em 21 de dezembro de 2022. Será suficiente? Estima-se que seja suficiente para o "mínimo social", mantendo os R$ 600 do novo Bolsa Família, mais R$ 150 por criança de até seis anos. Em outras palavras, Lula conseguiu do Congresso o suficiente para beneficiar seu eleitorado: os pobres. Uma família com dois filhos menores de seis anos receberá mensalmente R$ 900, não muito abaixo do salário mínimo de R$ 1.300. Mas sobrarão apenas 23 bilhões de reais para todo o resto.

"Um começo muito ruim" para o novo governo, disse um consultor de gestão ao Financial Times.[49] Embora a fração central da burguesia tenha sido impelida a ficar do lado dos pobres em prol da democracia, ela pode logo se sentir descontente com o fato de ter feito isso. Há motivos para temer que se torne nostálgico o programa de Paulo Guedes, ministro da Economia de Bolsonaro, que insistiu – a ponto de arriscar a derrota do chefe – na necessidade de despojar o orçamento de seus "índices, vínculos e obrigações", abrindo caminho para que as pensões e o salário mínimo fiquem abaixo da inflação. Dito isso, a verdadeira oposição provavelmente virá do Senado. Com ex-ministros importantes eleitos como senadores, uma brigada de bolsonaristas tenta criar um bunker anti-Lula na Câmara dos Deputados. E pode-se contar com Lira, o homem que cobiru as costas de Bolsonaro na Câmara, quando os tempos difíceis chegarem? E com uma coalizão tão ampla, haverá consenso suficiente para assinar programas que possam convencer a população de que a democracia vale a pena?

Um motim e seus significados

Quando boa parte deste ensaio já estava escrito, a revolta bolsonarista de 8 de janeiro de 2023 descarregou sua fúria nos belos prédios projetados por Oscar Niemeyer em Brasília. Além do dano material, e talvez irrevogável, às instituições democráticas centrais da nação, o que dizer sobre as consequências políticas? Segundo Ross Douthat, escrevendo no New York Times, a tempestade vista em Brasília foi apenas performativa, uma vez que Lula já havia sido empossado na semana anterior, em 1º de janeiro, e nem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário estavam funcionando, como era um domingo. A louca multidão extremista, reunida de várias partes do interior, não estava tentando seriamente perturbar a democracia eleitoral, argumentou Douthat. Eles estavam apenas fazendo um show para evocar as imagens da invasão do Capitólio em 6 de janeiro, dois anos antes.[50]

Sobre o momento do vandalismo, Douthat está certo. Ela explodiu quando, graças à hábil condução do Congresso por Lula, as expectativas populares para o novo governo aumentaram. Graças a essa sabedoria pragmática, os cem dias de boa vontade geral após sua comovente posse estavam em andamento. Por isso a espantosa violência contra as instituições democráticas na Praça dos Três Poderes esvaiu-se no vazio e no isolamento, além de ser energicamente repudiada pela esmagadora maioria dos brasileiros. Pode ter ajudado, talvez, a infligir uma ferida mortal no bolsonarismo. Isso vai depender se a aliança entre o governo e o STF se mostrar capaz de lucrar com a oportunidade.

Mas há três aspectos em que a análise de Douthat falha. A primeira, curiosamente, tem a ver com o seu sucesso. A incrível vontade de ser como os trumpistas da multidão reunida em 8 de janeiro é peculiar, algo que precisa ser estudado em seus próprios termos. Embora a invenção americana de 2016 tenha causado impacto mundial, o cenário social brasileiro foi provavelmente o mais profundamente afetado pela experiência de Trump. O impulso de imitar os EUA é constitutivo da história republicana brasileira. Quando a monarquia foi abolida em 1889, dando origem à república, a primeira bandeira proposta para o novo regime brasileiro tinha estrelas e listras, em amarelo e verde. Após um período de conciliação, acabou com estrelas em globo, sem listras, resultando em um desenho bastante semelhante ao antigo estandarte imperial. É possível que o bolsonarismo tenha dado um novo salto nessa trajetória, aproximando mais do que nunca a política brasileira da americana.

O segundo aspecto refere-se às consequências simbólicas do episódio. É perigoso enfatizar demais o peso do simbolismo na política; afinal, o que se faz é mais importante do que se fala, como ensinou Marx. Mas representações, palavras e símbolos têm um lugar especial na política. Aquele dia de janeiro foi impressionante o suficiente para não ser esquecido, mesmo em uma cultura que tende a esquecer tudo. Será sempre um lembrete de que o bolsonarismo, no final das contas, não é absorvível pela democracia, mesmo que ela pretenda atuar de forma criptoautoritária.

O terceiro ponto diz respeito à responsabilidade política de militares, policiais, oficiais, pastores evangélicos e empresários pelos eventos de 8 de janeiro. O envolvimento deles mostra que a performance imitativa observada por Douthat também foi um aviso de uma parte do bloco confederado à concertação. Do governador de Brasília, cuja polícia acolheu os "manifestantes", aos militares que impediram a prisão de alguns dos que se refugiaram no "acampamento" próximo ao quartel-general do Exército, sem falar nos empresários que financiaram a destruição, o mensagem era: não aceitamos conciliação e não baixamos as armas. As investigações do Supremo Tribunal Federal e da Polícia Federal em andamento têm condições de colocar na ilegalidade muitas pessoas, inclusive o ex-presidente.[51] Se isso acontecer, dependerá da convicção, do grau de unidade e, por último, mas não menos importante, do apoio popular à grande coalizão nos próximos meses.

O dilema nos remete às previsões de Buarque e Candido. Para ambos, a democracia só poderia prevalecer no Brasil se servisse para acelerar "o surgimento das camadas oprimidas da população, as únicas com capacidade de revitalizar a sociedade e dar um novo sentido à vida política".[52] Ao vestir a faixa presidencial no primeiro dia de janeiro deste ano, Lula também assumiu a responsabilidade de abrir novas perspectivas para os que estão por baixo, sob a ameaça de um ressurgimento autocrático que varreria o justo Cruzeiro do Sul do mapa de estrelas e da bandeira tropical.

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1 Antonio Candido, "O significado de Raízes do Brasil", in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro 1971.
2 Gabriel Mascarenhas e Natália Portinari, "Nós concordamos em participar do jogo, agora não adianta mais chorar", Globo, 2 nov. 2022.
3 André Singer, "Regime Autocrático e Viés Fascista: um Roteiro Exploratório", Lua Nova, 116, Mai.-Ago. 2022.
4 As investigações de corrupção da chamada "Lava Jato"] começaram em 2013, quando um lobbysta envolvido em uma rede de propinas centrada na Petrobras, a empresa estatal de petróleo, foi preso sob a evidência de uma escuta telefônica num balcão de câmbio em um lava-rápido em Brasília - e, em um acordo judicial, derrubou vários CEOs e membros do Congresso, de todos os partidos. As investigações foram conduzidas por um jovem juiz, Sergio Moro, e o promotor, Deltan Dallagnol, que começaram a vazar detalhes - acima de tudo dos escândalos petistas - para Veja, um tabloide reacionário, enquanto as manifestações de direita pedindo o impeachment de Dilma aumentavam em 2015-16. Em abril de 2018, Lula foi julgado pela intenção de receber de uma empreiteira um apartamento de frente para o mar, que nunca foi seu, e condenado pela Justiça de Moro em Curitiba a 9 anos de prisão. Em recurso em janeiro de 2018, isso foi estendido para 12 anos. No entanto, mesmo na prisão, Lula era o candidato mais popular para a eleição presidencial de 2018. Seu recurso ao Supremo Tribunal Federal em abril de 2018 com base em habeas corpus, para concorrer à eleição, foi rejeitado - permitindo que Bolsonaro se tornasse presidente. Em abril de 2021, no entanto, com a maré virada contra Bolsonaro em Washington e em outros lugares, o mesmo Supremo Tribunal anulou a condenação de Lula com base na "incompetência" do tribunal de Curitiba. [NLR]
5 "Dos 10 bancos mais rentáveis do mundo, 4 são brasileiros", Valor, 18 abr. 2022.
6 Um jovem Fernando Henrique Cardoso, então marxista, analisou uma situação comparável e apresentou uma hipótese interessante em O modelo político brasileiro, São Paulo 1973, capítulo 3. Ver André Singer, "Revolução burguesa dependente e modelo político brasileiro, 1971-2021", disponível em SciELO Preprints.
7 Salvo disposição em contrário, os números das pesquisas são retirados do Instituto Datafolha.
8 Dylan Riley, "Faultlines", NLR 126, Nov.-Dez. 2020.
9 Segundo a Tendências, consultoria empresarial, as famílias com renda mensal de até 2.900 reais em 2021 devem ser consideradas “pobres” ou “muito pobres”. Isso incluiria aqueles contabilizados na faixa inferior de renda pelo Datafolha em suas pesquisas (dois salários mínimos = 2.424 reais por mês).
10 Júlia Barbon, "Datafolha: Lula mantém apoio de 'vulneráveis', e Bolsonaro retoma eleitor 'seguro' de renda", Folha de S. Paulo, 23 ago. 2022.
11 Paul Singer, Dominação e desigualdade: estrutura de classes e repartição da renda no Brasil, Rio de Janeiro 1981, p. 22.
12 Sobre o realinhamento eleitoral de 2006, que viu um deslocamento significativo de pobres e idosos para o apoio de Lula após o gasto social de seu primeiro governo, ver André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, São Paulo 2012, especialmente a introdução.
13 Equivalentes em dólares somados, à taxa de 1 real = $ 0,19, arredondado para o 5 mais próximo. [NLR]
14 Vinicius Torres Freire, "Pobres ganharam em 2020, perderam tudo em 2021 e largaram Bolsonaro", Folha de S. Paulo, 11 jun. 2022.
15 Os números estimados para quem passa fome são da Rede Brasileira de Pesquisas em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; O Ministério da Economia de Bolsonaro contestou os números.
16 Yan de Souza Carreirão, "A eleição presidencial brasileira de 2006: uma análise preliminar", Política & Sociedade, 10, abr. 2007.
17 Getulio Xavier, "Por que o aumento do Auxílio Brasil não fez Bolsonaro decolar nas pesquisas", CartaCapital, 31 ago. 2022.
18 André Singer, "A reativação da direita no Brasil", Opinião Pública, vol. 27, no. 3, Set-Dez 2021.
19 Michael Pooler e Bryan Harris, "Can a New Commodities Boom Revive Brazil?", FT, 26 jul. 2021.
20 Marsílea Gombata, "Agro cresce, ignora crises e vive 'realidade paralela' à do Brasil", Valor, 14 out. 2022.
21 Veja a entrevista com Patricia Fachin, "Projeto Fazendão versus Plano de Metas à la JK", Instituto Humanitas Unisinos, 5 out 2022.
22 Nelson de Sá, "Bolsonaro perde 'momento' e Lula se aproxima da volta por cima tota", Folha de S. Paulo, 25 out. 2022; Jennifer Goularte et al., "Lula e Bolsonaro travam disputa por voto dos pequenos empresários", Globo, 6 out. 2022.
23 Joana Cunha, "Manifesto pela democracia é 'muita fumaça e fogo nenhum', diz dono da Havan", Folha de S. Paulo, 29 jul. 2022.
24 Reportado em Fernando Canzian, "Encolhendo e em crise, classe C vira motor do bolsonarismo", Folha de S. Paulo, 12 nov 2022.
25 Veja respectivamente: Fabio Victor, Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro, São Paulo 2022, p. 97. Ver também "Pesquisa: 27% dos PMs apoiam 'bolsonarismo radical' nas redes sociais", Poder360, 2 set. 2021; Marcelo Pimentel Jorge de Souza, "Generais arrastam Forças Armadas para a política e governam o país com 'partido militar'", Folha de S. Paulo, 17 jul. 2021.
26 Victor, Poder camuflado, pp. 97, 136.
27 Victor, Poder camuflado, p. 111.
28 Victor, Poder camuflado, pp. 224-5, 343.
29 "Carta aos Brasileiros em Defesa da Democracia", publicado no site da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
30 Os conglomerados de mídia mais poderosos do Brasil estão centrados em torno de um triângulo composto pelo Grupo Globo, Grupo Folha e O Estado de S. Paulo. Os veículos associados ao antigo Grupo Abril, agora extinto, perderam terreno.
31 Cristiano Romero, "A última chance de Lula", Valor, 27 out. 2022.
32 Mascarenhas e Portinari, "Nós concordamos em participar do jogo, agora não adianta mais chorar".
33 Marina Basso Lacerda, "'Bancada da bala': foram eleitos 48 deputados militares e policiais", Le Monde diplomatique-Brasil, 21 out. 2022.
34 Bruno Paes Manso, A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, São Paulo 2020, p. 246.
35 Ver respectivamente: Alba Zaluar e Isabel Siqueira Conceição, "Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz?", São Paulo em Perspectiva, vol. 21, no. 2, jul-dez 2007, p. 90; Igor Mello, "Milícia cresce 387 por cento e ocupa metade do território do crime", UOL, 13 set. 2022; Lucas Neiva, "Bolsonaro teve maior apoio em bairros tomados por milícias no Rio", UOL, 12 out. 2022.
36 Marina Basso Lacerda, "Paleoconservadorismo de Bolsonaro: o pesadelo brasileiro", in André Singer, Cicero Araujo e Fernando Rugitsky, eds, O Brasil no inferno global: capitalismo e democracia fora dos trilhos, São Paulo 2022, p. 324; Marina Basso Lacerda, "Análise do voto evangélico ou a fortaleza bolsonarista", Le Monde diplomatique-Brasil, 23 ago. 2022.
37 Jeff Benício, "Dono da Record TV, bispo Macedo reafirma apoio a Bolsonaro e critica Lula", Terra, 17 set. 2022.
38 Lacerda, "Paleoconservadorismo de Bolsonaro".
39 Ver Jason Stanley, How Fascism Works: The Politics of Us and Them, New York 2018, p. 111.
40 Ver Vinicius do Valle, Entre a religião e o lulismo: um estudo com pentecostais em São Paulo, São Paulo 2019, pp. 190, 201, 206, 208.
41 Leo Löwenthal e Norbert Guterman, Prophets of Deceit: A Study of the Techniques of the American Agitator, New York 1948.
42 Ricardo Senra, "Eleições 2022: 'Perseguição contra cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da Igreja'", BBC News-Brasil, 18 out. 2022; "Quem é André Valadão, pastor envolvido com TSE, Bolsonaro e Lula", Valor, 20 out. 2022.
43 Citado, por exemplo, por Jack Nicas, "Bolsonaro Grabs for Man's Phone and Gets a New (Insulting) Nickname", NYT, 20 ago. 2022.
44 Sobre grandes coalizões, veja Sérgio Henrique Hudson de Abranches, "Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro", Dados, vol. 31, no. 1, 1988.
45 A recente adoção de novas regulamentações que impedem a formação de coalizões multipartidárias permanentes e a elevação do patamar mínimo de representação no Congresso tenderá a reduzir o número de partidos ao longo do tempo daqui para frente, mas é difícil dizer em que medida.
46 Rafael Neves, "Oposição real a Lula e bolsonaristas 'light': o que esperar da nova Câmara", UOL, 3 out. 2022.
47 Sérgio Roxo, "Entrevista: 'O que se cobra do Lula e assumire um programa que não e o nosso' diz Rui Falcão", Globo, 19 out. 2022.
48 Rafael Vazquez, "Economistas elaboram propostas a candidatos 'democráticos' e excluem Bolsonaro", Valor, 5 ago. 2022.
49 Michael Pooler, "Brazil Lawmakers Approve $28bn Increase in Spending Cap for Lula Plans", FT, 22 dez. 2022.
50 Ross Douthat, "Brazil's Homage to Jan. 6 Was an Act of Pure Performance", NYT, 11 jan. 2023.
51 Como observou um erudito observador da cena brasileira, o medo demonstrado por Bolsonaro quando decidiu ficar na Flórida até meados de 2023 foi um sinal de fraqueza que pode marcar o fim de sua carreira; marcou, para dizer o mínimo, um contraste marcante com a coragem de Lula na prisão.
52 Antonio Candido, "O significado de Raízes do Brasil".

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