Felipe Loureiro
Professor de história das relações internacionais na USP e organizador do livro "Linha Vermelha: a Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais no século 21"
Professor de história das relações internacionais na USP e organizador do livro "Linha Vermelha: a Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais no século 21"
Após um ano e, ao contrário de todas as expectativas, a Ucrânia segue de pé diante da agressão russa. Sustentado por um revigoramento da aliança entre EUA e Europa, o país manteve o Ocidente unido em torno de si, tarefa que muitos imaginavam difícil diante dos impactos econômicos globais da guerra.
Se no Norte Global a Ucrânia está vencendo a batalha por corações e mentes, congregando governos e grupos sociais das mais diferentes posições políticas, no resto do mundo o cenário é outro.
Homem varre calçada na capital Kiev perto de imagem de propaganda com soldado ucraniano e o slogan "inquebrável, inconquistável, imparável" - Serguei Supinski - 22.fev.23/AFP |
Em que pese o fato de a maioria das nações do Sul Global ter apoiado resoluções na ONU condenando a invasão russa e a anexação de porções ucranianas, esse movimento parou aí. Nada de adesão às sanções ocidentais contra a Rússia, muito menos apoio econômico e militar à Ucrânia.
Mais: a opinião pública nesses países é pouco simpática à Ucrânia. A guerra é vista como mero palco no embate entre Rússia e Otan, a aliança militar do Ocidente, extirpando-se qualquer atuação de Kiev.
Essa relativa apatia —quando não indisposição— chama a atenção. Em teoria, os países do Sul Global são os que deveriam fortalecer o princípio de segurança coletiva no sistema internacional. Afinal, num mundo do cada um por si, são essas as nações que tenderão a ficar mais vulneráveis a intervenções.
Por que, então, não cerrar fileiras em torno de Kiev, ainda mais diante de um caso de manual de violação da Carta da ONU por parte de Moscou? A natureza da relação econômica e estratégica desses países com a Rússia e a tradição de neutralidade em política externa são parte da equação, mas explicam menos quando olhamos para percepções gerais sobre a guerra dentro dessas sociedades.
Para além do legado do colonialismo e do neocolonialismo, a história mais recente escancara contradições entre retórica e ação de europeus e americanos sob o prisma do direito internacional.
Mesmo tirando o bode da sala —a ilegal e catastrófica invasão do Iraque em 2003—, o saldo é de um histórico de desrespeitos sistemáticos a normas internacionais. A Carta da ONU é clara: excetuando-se a prerrogativa da autodefesa, apenas o Conselho de Segurança tem o poder de autorizar o uso da força.
Apesar disso, EUA e seus aliados da Otan, especialmente Reino Unido e França, desrespeitaram essa máxima inúmeras vezes nas últimas décadas. Os casos mais emblemáticos foram as intervenções da aliança militar na Sérvia em 1999 e na Líbia em 2011. Enquanto a primeira foi realizada sem autorização da ONU, a segunda desvirtuou uma resolução com fins humanitários visando a derrubar o regime líbio.
Isso sem contar o abuso do direito de autodefesa pelos Estados Unidos no contexto da Guerra ao Terror, que normalizaria o princípio de ataques preventivos contra alvos designados como terroristas em países da África, da Ásia e do Oriente Médio, com impactos dramáticos.
Soma-se a isso a sensação de que o Ocidente não dá a mesma importância a ameaças de segurança e a crises humanitárias quando elas ocorrem no Sul Global, algo escancarado em diversos exemplos.
Talvez nenhum maior do que a negligência ocidental frente ao genocídio em Ruanda, em 1994, apesar de o atual descaso com o caos na Líbia pós-Gaddafi e o cenário distópico de um Iêmen constantemente alvejado pela Arábia Saudita merecerem destaque nessa infindável lista.
Diante de tantos padrões duplos, como esperar uma adesão apaixonada de governos e sociedades do Sul Global em apoio à Ucrânia? Não é à toa que uma retórica ocidental principialista e moralista, como a que vem predominando até aqui, acaba soando hipócrita, ressuscitando velhos fantasmas coloniais.
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