Embora derrotado na Câmara, movimento impulsionou fim da ditadura e deixou legado hoje sob ataque
Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)
[RESUMO] Em 2 de março de 1983 a emenda que propunha a restauração de eleições diretas para a Presidência obteve assinaturas suficientes para ser apresentada no Congresso. A campanha das Diretas logo atrairia o apoio de políticos da oposição à ditadura e de vastas camadas da população —com participação decisiva da imprensa, sobretudo da Folha—, tornando-se a maior mobilização popular da história do país. Mesmo derrotada na Câmara, impulsionou o processo de redemocratização e de conquistas da Constituição de 1988, legado hoje atacado por ameaças autoritárias, como a invasão das sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.
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Quatro décadas depois das Diretas Já, no momento em que relembra a maior campanha popular e a mais animada festa cívica de sua história, o Brasil se encontra, de novo, na posição de ter que fazer da defesa intransigente da democracia o eixo da ação política.
O paralelismo entre as duas situações históricas tem limites evidentes. Em meados dos anos 1980, combatia-se uma ditadura militar que, duas décadas após ter sido implantada, vivia seus estertores. Hoje, sem que o regime democrático tivesse sido rompido, enfrenta-se a ameaça latente gestada no que sobrou de um projeto autoritário cujos simpatizantes mais fanáticos, apelando à violência, relutam em aceitar o veredito das urnas.
No maior comício das Diretas, mais de 1 milhão de pessoas se reuniram no Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress |
Ainda assim, como as diferenças não anulam as semelhanças, não seria impertinente notar o que há em comum entre 1983, quando as Diretas ganham forma ainda embrionária, e 2023. Para citar o que talvez seja o melhor exemplo da comparação, o arco partidário dos palanques de então, que abrangia da esquerda à centro-direita, exibe a mesma amplitude ideológica da frente que no ano passado derrotou a extrema direita.
A correspondência estabelecida entre os dois cenários recobre a efeméride com uma camada adicional de relevância, mas não se sobrepõe ao valor intrínseco das Diretas para a história contemporânea do Brasil.
O impacto expressivo das multidões nas ruas foi suficiente para interferir no curso dos acontecimentos, embora não seja possível cravar que a campanha tenha sido a única responsável pelo ponto final na ditadura. Quando o movimento ganhou as ruas, nos primeiros meses de 1984, o regime militar já demonstrava nítidos sinais de exaustão.
Na economia, o "milagre" dos anos 70 desembocara em uma crise profunda, com forte recessão e inflação descontrolada. Na política, a anistia de 1979 trouxera do exílio opositores da ditadura que desfrutavam de prestígio e popularidade, e as eleições de 1982, pela primeira vez em duas décadas, haviam catapultado críticos do regime ao poder Executivo em estados importantes, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Se o papel das Diretas para o fim da ditadura não foi um fator determinante, já que o ocaso do regime estava no horizonte, também não foi pequeno. A campanha influenciou a maneira como se deu a transição para a democracia, impondo uma adaptação no roteiro original dos militares, que previa cronograma e ritmo próprios para o desembarque do governo. Ao tomarem as praças nos principais centros urbanos do país, os manifestantes colocaram a sociedade civil na equação política elaborada nos gabinetes.
Especular como seria o desfecho do ciclo militar sem a campanha ajuda a dimensionar seu significado. Talvez as Forças Armadas, preocupadas com a autopreservação da instituição, voltassem aos quartéis de qualquer jeito. É igualmente possível que a ausência de pressão popular tivesse viabilizado manobras continuístas, como a que defendia a extensão do mandato do general João Baptista Figueiredo, o último presidente militar. Ou, mais grave, tivesse aberto espaço para a ala dura dos militares, que fazia de tudo para impor retrocessos à redemocratização.
Na certidão de nascimento das Diretas Já consta a data de 2 de março de 1983. Foi nesse dia, no início da nova legislatura, que o estreante deputado federal oposicionista Dante de Oliveira (PMDB-MT) obteve o número suficiente de assinaturas de parlamentares para apresentar ao Congresso seu projeto de emenda constitucional que, com 15 linhas datilografadas, restabelecia a eleição direta para presidente da República. A iniciativa, porém, ao contrário do que se poderia supor, dada a grandiosidade que a campanha teria, não despertou o menor interesse.
Naquela altura, o campo progressista estava mais focado na proposta de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, algo que varresse do mapa político o "entulho autoritário" —o conjunto de normas, leis e atos institucionais baixado pelos militares desde 1964.
Inicialmente, parte das esquerdas, que logo depois abraçaria com entusiasmo a campanha, via na ênfase nas Diretas um deslocamento indesejável de prioridades, pois a eleição em si, argumentava-se, não levaria necessariamente às transformações que enfrentariam a miséria e a desigualdade social, mazelas, aliás, que, apesar dos avanços, resistem ao reformismo dos governos democráticos posteriores.
O jogo das Diretas começaria a ser jogado para valer pouco depois do discurso inaugural de Dante, com a entrada em cena de Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, o principal partido de oposição. Antes de outras lideranças, Ulysses percebe o potencial da campanha, e começa a tratar o assunto como prioridade.
Em abril, uma resolução do diretório nacional do partido aprova a estratégia, que é endossada pelo recém-fundado PT, uma legenda aguerrida mas ainda com pouca representatividade na política nacional. No mês seguinte, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, que seria o mais ovacionado nos megacomícios, e Ulysses, que faria por merecer a alcunha de Senhor Diretas, deixam rivalidades de lado para assumir em conjunto a defesa das Diretas, ainda sem o aposto "já".
O PMDB sai na frente sozinho ao realizar em Goiânia, em junho de 1983, o primeiro comício com organização centralizada. As 5.000 pessoas presentes não tinham a mais pálida ideia do que viria pela frente. O ato discreto, no entanto, serviu à estratégia de Ulysses de colocar seu bloco na rua, mas sem estardalhaço, para ir dobrando aos poucos as resistências dentro de seu próprio partido, onde nem todos estavam convencidos de que o projeto das Diretas seria a melhor opção para acabar com a ditadura.
A campanha só ganharia fundações adequadas ao porte daquela construção política com a adesão dos governadores de oposição ao regime, principalmente Franco Montoro, em São Paulo, Tancredo Neves, em Minas Gerais, e Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Sim, foram as máquinas de suas administrações que financiaram a estrutura dos megaeventos, provocando críticas do governo central, que apontava o suposto mau uso do dinheiro público —como se financiar a defesa da democracia fosse algo alheio à boa governança.
Os chefes dos Executivos estaduais se encontravam em posição delicada. De um lado, acenavam à sociedade que, cada vez mais, se mostrava disposta a impor sua vontade. De outro, dependiam da liberação de verbas do governo federal para tocar obras, em um momento em que a crise econômica esvaziava os cofres públicos. Assim, espremidos entre forças antagônicas, eles reagiam com instinto de sobrevivência política, cada um calculando o passo seguinte para não ser atropelado pela dinâmica do movimento.
Montoro atuou, no mais das vezes, sob o signo da hesitação. Depois de articular a campanha nos bastidores, deixou de comparecer ao primeiro comício em São Paulo, realizado em frente ao estádio do Pacaembu em fins de novembro de 1983, permitindo que o evento, ainda pequeno, fosse dominado pelo PT.
Na sequência, foi corajoso ao apostar no êxito do megacomício da Sé, em 25 de janeiro de 1984, transformando o aniversário da cidade no divisor de águas das Diretas —a partir do sarrafo na casa dos 300 mil presentes, segundo cálculos da época, cada nova manifestação procurava superar a anterior. O governador, porém, não demonstraria a mesma disposição em financiar aquele que seria o maior de todos os comícios, o do Vale do Anhangabaú, em abril.
Quanto a Tancredo, fez o que sabia fazer de melhor: elevou à categoria de arte política a capacidade de agir com ambiguidade em tempo integral. Não deixou de promover um comício exitoso em Belo Horizonte e caprichou na retórica a favor das Diretas, ao mesmo tempo em que mantinha aberta a porta para o plano B, a eleição indireta, a ser decidida por um Colégio Eleitoral em que ele seria o único político de oposição com chances reais de vitória.
Já Brizola teve um comportamento errático. Relutou em patrocinar comícios, mas quando finalmente o fez pegou o microfone para alfinetar a ditadura, usando um tom que lembrava o líder do início dos anos 1960, quando organizou a resistência contra o establishment militar e a favor da posse do presidente João Goulart.
Numa coreografia difícil de ser sustentada por muito tempo, Brizola mantinha um pé na canoa da campanha e outro na defesa do regime, chegando a propor a extensão do mandato de Figueiredo por dois anos, ao fim dos quais haveria eleição direta.
A campanha durou todo o verão de 1984 e mais um pouco. Depois de algumas iniciativas isoladas, começou em 12 de janeiro com o ensaio geral na Boca Maldita, em Curitiba, e terminou com uma vigília cívica nacional horas antes da votação, em 25 de abril.
Foram mais de cem dias em que a população assumiu o protagonismo da cena política, empurrando as lideranças em direção à democracia. Estimava-se à época que quase 5 milhões de pessoas tivessem participado das dezenas de comícios. Embora reconhecidamente inflado pelos organizadores, o número, de qualquer maneira, foi elevado o bastante para traduzir o consenso da sociedade civil em relação à campanha.
A criatividade espontânea deu a tônica das Diretas. É verdade que o slogan estampado nas indefectíveis camisetas amarelas —"Eu quero votar pra presidente"— saiu das pranchetas de publicitários contratados pelo PMDB, que também encomendou o "Frevo das Diretas" a Moraes Moreira e Paulo Leminski.
Mas os cartazes debochados ("Eu quero votar pra presidente, uai!", como se lia num deles em Belo Horizonte); as paródias ("Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?/ Como pode um povo vivo viver sem democracia?", contribuição de Ziraldo); o boneco gigante de Teotônio Vilela em homenagem ao grande inspirador da cruzada cívica, que morreu no pré-lançamento da campanha; as performances artísticas e os happenings engajados; a presença serpenteante do "Dragão das Diretas", obra colorida em papel machê; a politização do futebol e a eclética trilha sonora dos comícios —tudo isso resultava de uma miríade de iniciativas descentralizadas que projetaram a cara descontraída do movimento.
A imprensa, sobretudo a Folha, teve papel decisivo nas Diretas Já. O jornal encampou a proposta quando ela ainda engatinhava, pouco antes do comício do Pacaembu.
Cobrou empenho dos políticos quando identificava apatia cívica, apontou a complacência de lideranças que colocavam interesses pessoais acima dos da nação, salientou a importância do suprapartidarismo nos palanques, ouviu e deu destaque a personalidades que apoiavam a causa, estimulou uma cobertura jornalística que, mais do que noticiar, enaltecia os avanços da campanha. Não à toa a Folha foi chamada de "o Jornal das Diretas".
Outros veículos demoraram para aderir ao movimento, e muitos só o fizeram quando passou a ser impossível ignorar a voz cada vez mais audível das ruas. Não que a imprensa fosse em peso a favor da continuação da ditadura. A questão é que não acreditava que o caminho para a democracia passasse pelas Diretas Já.
O argumento mais consistente era o de que, ao afrontar os militares, a campanha poderia ter efeito contrário, revertendo o lento processo de abertura política que, desde os anos 1970, vinha sendo administrado pelo governo, com avanços e recuos. Além disso, a imprensa duvidava que a emenda fosse aprovada pelo Congresso, onde os governistas estavam super-representados, em parte devido à série de casuísmos que haviam favorecido os candidatos da situação nos anos anteriores.
A TV Globo, por exemplo, ignorou vários comícios e apresentou o da praça da Sé como um show de música por ocasião do aniversário de São Paulo. Mais tarde, no megacomício da Candelária, do Rio, redimiu-se, colocando toda sua estrutura a serviço de uma vibrante cobertura ao vivo. Ao longo da campanha, sob pressão constante do governo, oscilou entre o entusiasmo e a prudência.
A mídia só se manifestaria em uníssono quando o governo impôs um cerco militar a Brasília e censurou o noticiário das rádios e TVs às vésperas da votação da emenda no Congresso. O objetivo era blindar os parlamentares que votassem contra o projeto, evitando sua exposição junto ao eleitorado.
Nos veículos impressos, que continuaram livres para informar e opinar, a iniciativa do governo foi recebida com duras críticas. Nos de mídia eletrônica, obrigados a se submeter ao controle oficial sob pena de serem tirados do ar, informações cifradas e mensagens subliminares, como o uso de gravatas amarelas pelos apresentadores, marcavam a posição editorial.
Como o ceticismo não chegou a superar a esperança, a derrota das Diretas frustrou a nação, até porque o placar foi relativamente apertado. Apesar de ter contabilizado 298 votos a favor —inclusive de 55 parlamentares do PDS, o partido governista – a emenda Dante de Oliveira não obteve a maioria qualificada de dois terços, exigida para mudanças na Constituição.
Votaram contra a proposta 65 deputados, e 113 se ausentaram. Houve ainda três abstenções. Faltaram 22 votos para a vitória. Rejeitada pela Câmara, a emenda não precisou ser enviada ao Senado. Entre os deputados que votaram "não", mais de dois terços (67%) não se reelegeram, em comparação ao índice de 50% entre os que votaram "sim".
A história das Diretas só não termina aí porque o capital eleitoral acumulado nas praças lotadas viabilizou, nos meses seguintes, uma candidatura de oposição, a de Tancredo Neves, que fez prevalecer a eficiência de seu jogo político, que agradava à população sem desagradar aos generais.
O arranjo incluiu a formação da chapa com um vice egresso do partido governista e que fizera carreira à sombra dos militares, José Sarney. Tancredo se elegeu em 15 de janeiro de 1985 com folga. Recebeu 480 votos, contra 180 dados ao seu adversário, o polêmico Paulo Maluf, cuja insistência em concorrer abrira caminho para o êxito do mineiro.
Tancredo, como se sabe, não teve tempo de vestir a faixa presidencial. Internado horas antes do que deveria ser a sua posse, morreu semanas mais tarde, em 21 de abril de 1985, quase um ano depois da derrota das Diretas. Embora eleito por um Colégio Eleitoral restrito, carregava o prestígio de ter feito campanha nos palanques e tinha a aura de mártir da democracia. Para a sociedade civil, era a segunda frustração seguida.
Se a redemocratização teve um início torto, no entanto, o espírito remanescente das Diretas se encarregou de conduzir o país à Constituição de 1988, que, além de contemplar demandas sociais até então ignoradas, resiste como anteparo a ameaças antidemocráticas, como a invasão e a depredação das sedes dos três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro.
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