2 de setembro de 2025

A frente popular de Lula

Este artigo analisa a adesão de Luiz Inácio Lula da Silva a uma frente ampla contra forças de extrema direita associadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Explora a campanha presidencial ideologicamente expansiva de Lula em 2022 e seus desafios para governar em meio à fragmentação partidária, e argumenta que coalizões amplas, embora eficazes eleitoralmente, complicam a governança progressista em democracias polarizadas.

Andre Pagliarini


Vol. 9 – No. 1

Em 2022, Jair Bolsonaro, o presidente de extrema-direita do Brasil, apostou tudo em uma estratégia de semear dúvidas sobre a capacidade de seu país de realizar uma eleição livre e justa. Furioso com o Supremo Tribunal Federal (STF) por investigar ele e seus aliados por palavras e ações antidemocráticas, incluindo a participação deles em uma vasta conspiração para disseminar notícias falsas durante as eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro incitou seus apoiadores a desafiar publicamente a mais alta corte da maior nação da América Latina em 7 de setembro de 2021, o Dia da Independência do Brasil. A demonstração de força pretendida em grande parte fracassou. Constantemente atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas, Bolsonaro passou a campanha inteira praticamente anunciando suas intenções de subverter a democracia brasileira, recorrendo a aviltar abertamente a integridade eleitoral de seu país na esperança de que houvesse dúvidas reais sobre quem venceu em outubro de 2022. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, a ideia de que o sistema de votação é rotineiramente manipulado por funcionários corruptos e partidários inescrupulosos se tornou um delírio do ecossistema de informação da direita. Bolsonaro freneticamente levantou poeira para causar tumulto na disputa.

Como esperado, no entanto, Lula, o ex-operário que governou o Brasil de 2003 a 2011, venceu com sessenta milhões de votos contra cinquenta e oito milhões de Bolsonaro. Alguns interpretaram sua vitória apertada como um sinal de fraqueza. Afinal, apesar de ter presidido uma resposta calamitosa à pandemia e de ter recebido condenação universal pelo desmatamento da Amazônia, Bolsonaro ajudou a eleger vários aliados-chave em diferentes níveis de governo. Por um lado, mesmo na derrota ele havia, sem dúvida, demonstrado uma força surpreendente. Por outro, considerando que nenhum presidente em exercício havia perdido a reeleição desde que a constituição permitiu pela primeira vez que titulares buscassem um segundo mandato em 1997, a vitória de Lula não foi pouca coisa. Seu Partido dos Trabalhadores (PT) havia governado o Brasil de 2003 a 2016, quando sua sucessora escolhida a dedo, Dilma Rousseff, foi destituída por um Congresso reacionário. Anos de fervor histérico anti-PT se seguiram, puxando a política brasileira bruscamente para a direita. Agora, o candidato com profundas raízes no movimento sindical e nos movimentos sociais havia retornado ao auge do poder nacional.

“A partir de 1º de janeiro de 2023, vou governar para 215 milhões de brasileiros, não apenas para os que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um só país, um só povo, uma grande nação”, proclamou o presidente eleito em seu discurso de vitória na noite da eleição, trabalhando imediatamente para avançar sua própria moldura patriótica na esteira da apropriação do patriotismo pela direita em sua guerra retórica de anos contra a esquerda. A vitória de Lula foi uma validação de sua estratégia de campanha de frente ampla, que incluiu nomear seu ex-rival Geraldo Alckmin como vice-presidente e buscar o apoio de outras vozes proeminentes de centro-direita, como a senadora Simone Tebet, que montou uma campanha de terceira via surpreendentemente forte; Aloysio Nunes, o candidato a vice-presidente do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de centro-direita em 2014; e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que implementou um conjunto de reformas neoliberais no final da década de 1990. Candidatando-se não como um esquerdista, mas como o árbitro de um grande esforço nacional de reconciliação, Lula alcançou uma virada notável que parecia impensável apenas alguns anos antes.

Na avaliação da estratégia de frente ampla que garantiu a eleição de Lula e em grande parte definiu seu terceiro mandato, este artigo se divide em três partes. A primeira discute a corrida de 2022, examinando as ações e os argumentos que sustentaram a decisão de Lula de incorporar ativamente figuras de centro em sua sexta campanha presidencial. O artigo então discute o governo de Lula de 2023 a 2025, abordando os debates internos que definiram a orientação política da administração. A parte final volta-se para 2026 e a campanha presidencial que se aproxima, oferecendo uma análise especulativa sobre se e como Lula poderá tentar uma corrida semelhante àquela que o levou à vitória em 2022.

Durante seus mandatos anteriores, Lula se beneficiou de sua reputação como um negociador habilidoso, mas ideologicamente flexível, comprometido em oferecer melhorias materiais para sua base tradicional de eleitores pobres e da classe trabalhadora. Ganhos econômicos, como controle da inflação, aumento do emprego e elevação da renda, já foram indicadores-chave do sucesso de sua administração e contribuíram para a opinião pública positiva. Ele deixou o cargo com 83% de aprovação — uma conquista inimaginável em meio à polarização rancorosa que definiu o Brasil, entre outras democracias ao redor do mundo, nos anos seguintes — entregando as rédeas da governança nacional à sua sucessora escolhida, a primeira mulher presidente do país. Com seu país pronto para continuar sua lenta, mas constante, ascensão à influência global, o legado de Lula parecia seguro.

But the political landscape has shifted drastically in a decade and a half. The growing ideological divisions in the country, fueled by new media platforms rife with misinformation, have shifted the focus away from traditional economic metrics, which have consistently outperformed market expectations throughout Lula’s third term, and toward more c ontentious debates over morality and cultural values. This shift has created a less favorable environment for Lula, with policy successes no longer having the same impact on his approval ratings as they once did. According to José Dirceu, who served as Lula’s chief of staff twenty years ago, the president “set up a center-right government.” He adds that “the PT gets outraged” when he points this out, “but it is a requirement of the historical and political moment we are living in.” Lula, he says, “has not opted for ideological polarization.” Indeed, Lula has not picked major fights on topics that animate the Left. However, if polls are to be believed, the political benefit of avoiding controversy has been negligible.




As of late April 2025, Lula’s approval rating stood just below 40 percent. Well over half of those polled expressed a negative view of his administration, raising red flags as to how he might perform in the 2026 presidential race. Lula’s experience in power illustrates that a broad-front strategy in campaigning is decidedly weaker as a case for how to actually govern. Assembling a diverse coalition against a far-right extremist is one thing; being beholden to political actors outside of your ideological camp, each of whom credit themselves in large part for your victory, is quite another. Delivering on a coherent, ambitious social democratic agenda under such circumstances has proven difficult, if not impossible, in the world’s fifth-largest democracy. This is a structural problem for progressive governance in an era of profound ideological polarization, one that Lula — who will be eighty when Brazilians go to the polls next year — has struggled to resolve.




Beating Bolsonaro

In November 2019, after 580 days behind bars, Lula was released from prison. He had been jailed on feeble grounds as part of a larger judicial effort known as Operation Car Wash, which, in the name of fighting corruption, was found to have violated key constitutional precepts. Lula had maintained his innocence of any wrongdoing as an international solidarity campaign galvanized progressives the world over. Suddenly the Brazilian left had its most effective spokesman charging back into the fray as the country withered under Bolsonaro’s implacable and incompetent reactionary leadership. Lula asserted that he left prison further to the left than when he went in, suggesting that he would be stepping up his rhetoric against the entrenched conservative forces in the media, finance, and government that laid the groundwork for Bolsonaro’s ascension.




In March 2021, when the Federal Supreme Court ruled that Lula could run for office in 2022, markets panicked. His renewed political eligibility “sent stocks and the currency cratering, deepening some of the worst performances [that] year,” Bloomberg reported. Investors told Reuters that “the prospect of Bolsonaro running against Lula pits two ‘populist’ candidates against each other, hollowing out the center ground, which is more fertile for the economic reforms Brazil desperately needs.” Such hand-wringing ignored the obvious differences between the incumbent and the would-be challenger who unsuccessfully ran for president three times before finally breaking through in 2002. Indeed, two years into Bolsonaro’s disastrous term, even center-right figures noted Lula’s ability to build bridges, a dig at Bolsonaro’s inability to do so. As in 2002, when Lula promised a plausible social democratic alternative to the deprivations of neoliberalism, there appeared an opening for his singular appeal.




In a speech at the metalworkers’ union headquarters in São Bernardo do Campo where Lula’s public life began, he struck a conciliatory tone. Making clear he intended to seek the presidency once again, he emphasized the need for common sense and basic governing skills. “It is always important to reiterate whenever you can,” he declared, “the planet is round . . . and Bolsonaro doesn’t know it.” He outlined all the steps he would have taken had he been in office when the pandemic struck, each measure more sensible than the last. When asked about the notion of a broad front against Bolsonaro, Lula made a familial analogy: “Anyone who sits at a dinner table with five children and sees them fighting over one more steak and has to compromise to make them happy knows that there is no difficulty in building an alliance when the time comes.” Widespread political support would follow, he argued, “if we have the ability to talk to other political forces that are not on the left end of the spectrum. Is it possible? It is.”




Soon an electoral strategy came into view: Lula would not be running as a leftist firebrand but as a consensus builder staking out a broad swathe of the electorate from the center-right to the far left. It is unclear whether any other political figure in the broad progressive camp could plausibly pull this off. But Lula, who combined hard-fought credibility among the poor and working class with a record of responsible, market-friendly governance, seemed well positioned to assemble an eclectic coalition as Bolsonaro lurched from crisis to crisis and torched Brazil’s international standing. Both the then speaker of the house, elected to his influential position with Bolsonaro’s support, and the previous one, a center-right figure whose party had hinted it might endorse Bolsonaro in 2022, signaled an openness to Lula’s rehabilitation. Whatever one thought of his political views, Lula was an eminently reasonable figure compared to Bolsonaro.




As the 2022 race got underway, Lula placed defending democracy — rather than radical redistribution — at the center of his campaign. In the face of Bolsonaro’s frequent anti-institutional outbursts, rank homophobia, and obscurantism, Lula sought to position himself as a unifier, capable of transcending traditional partisan divides in the name of a democratic system less than forty years old. The centerpiece of this strategy was the choice of his running mate, former São Paulo governor Geraldo Alckmin. A deeply conservative Catholic, Alckmin had sought the presidency twice before as a member of the PSDB, facing off with Lula in the 2006 runoff. In 2017, as Lula contemplated a presidential run before being arrested, Alckmin accused the former president of wanting “to return to the scene of the crime.” Now, with Alckmin switching to the Brazilian Socialist Party, they found themselves on the same side. This arrangement was the product of discreet machinations of Lula allies in the PT and beyond and became Exhibit A in the case that he could work productively outside his ideological silo.




Alckmin, by all accounts, abhorred Bolsonaro and wanted badly to associate himself with his most plausible challenger. His presence on the ticket likely also helped other, decidedly nonleftist figures make their way to endorsing Lula. After it became clear that Lula and Bolsonaro would face each other in a runoff, the former president assembled the largest partisan coalition of his career; eleven parties backed him to Bolsonaro’s five. The framing of the race as a binary choice between democracy and authoritarianism become even clearer in the second round and resonated with the country’s political center and center right, not just the Left. With time, the PT could point to a wide range of prominent political actors who one by one set aside their past animosity toward Lula to support him against Bolsonaro. “There are many people who were never part of the PT and who participated in my government. And that is how it will be,” Lula asserted. “It will not be a PT government; it will be a government of the Brazilian people.”




Lula sought to position himself as a unifier, capable of transcending traditional partisan divides in the name of a democratic system less than 40 years old.

But Lula’s appeal was not merely popular. He recognized the need to placate powerful constituencies linked, for example, to the country’s highly capitalized agricultural sector — a pillar of Bolsonaro’s well-organized and deeply funded support — and the virulently reactionary Evangelical faith leaders who hold enormous sway in a nation where Catholic influence is on the wane. During the campaign, Alckmin served as Lula’s personal liaison to Big Ag, which has always distrusted Lula’s decades-long ties to the Landless Workers’ Movement (MST), while Lula himself expressed an eagerness to win the support of conservative Christians by highlighting his own traditionalist views on issues like abortion and legalizing drugs.




Other than generic references to the need for depoliticization, Lula had relatively little to say about the armed forces, empowered politically by Bolsonaro like no president in several decades. Lula made clear that he would not be out for revenge against members of the military brass who flouted convention by cozying up to his political rival. Naturally, not everyone was won over. As André Singer observed, “The layer of the ruling class that acts as the central nervous system of the Brazilian bourgeoisie — and whose interests (in banking, manufacturing, heavy industry, culture) are most directly related to the nucleus of global capitalism, especially through financial intermediation — was reluctant until the very last to join Lula’s cross-section of supporters.” Bolsonaro managed to maintain considerable support from both elite and grassroots sectors, but Lula’s electoral coalition proved larger and more diverse.




That heterogeneity carried the seeds of future dilemmas. How hard would Lula push on the issues that most animated his longtime base of support given the eagerness with which he accepted the backing of more conservative actors? Was he setting himself up for an inevitable betrayal of at least one part of his coalition? Would it really be possible, for example, to reconcile the urgency of a robust ecological agenda with the economic imperatives of large-scale agricultural production? Furthermore, as one columnist put it at the time, “The broad front in the second round was so large that it will be impossible for Lula (or any PT candidate) to repeat the feat. In an electoral context, the PT believes that people will be led to conclude that support for Lula has melted away in four years.” These are debates the party entertained but rightfully put to bed almost immediately. After all, given the stakes of the election, the priority was winning. The party could wrestle later with the messy implications of precisely how it had won.




Lula’s Third Term

“It is time to put down the arms we never should have picked up,” Lula said on election night once it became clear victory was his. He insisted that “Brazil is back” and promised to “work tirelessly for a Brazil where love prevails over hate, truth over lies, and hope is bigger than fear.” As the traditional jockeying over cabinet nominations and other federal appointments began, it was too soon to wonder how Lula might maintain the support of individuals with widely varying ideologies over the next four years when the central narrative of defending democracy inevitably waned in importance. It was easy to imagine that things had more or less returned to normal concerning politics.




By treating the dawn of a new Lula administration as essentially the same as previous terms — with positions routinely doled out to various allied parties in rough proportion to their representation in Congress — the government missed an opportunity to impress upon the new political landscape a point that had been made incessantly during the campaign — namely, that this perilous moment for Brazilian institutions required pro-democracy parties to act in concert rather than as individual agglomerations with distinct motivations. In hindsight, Lula should have created a concrete structure around the broad front, “with personalities, with an address, with positions of support for the government, with proposals and criticisms. With the face of a broad front. Like the parties have.” So argued Dirceu, perhaps the most important strategic thinker in the PT’s history, in July 2024.




The failure to institutionalize the broad front meant that the PT lost its hold on the coalition narrative it had managed to construct in 2022. Critical support was often forthcoming from centrist forces in Congress, but the optics of the third Lula term quickly devolved into PT actors negotiating with everyone else in service of Lula’s agenda. The broad front became a relic of the last campaign rather than a fixture of the new conjuncture characterized by an enduring threat from the far right.




To be fair, such machinations seemed unnecessary early on, as political developments seemed to assemble leaders in a pro-democracy direction organically. During his campaign, Lula had argued that the country needed cooler heads in power; the week after his inauguration made clear that a significant segment of the country rejected reconciliation. On January 8, 2023, a week after Lula’s inauguration, Bolsonaro supporters staged an insurrection in Brasília, drawing instant comparisons to the US Capitol invasion by Donald Trump supporters two years prior. Enraged by Bolsonaro’s defeat, rioters clad in the national colors stormed key government buildings and did millions of dollars’ worth of damage. Proving the point of Lula’s victorious campaign, the attack revealed a long-standing authoritarian streak in Brazilian politics that contested not just a failed election or presidential bid but democracy itself.




Lula responded forcefully, denouncing the rioters as “fascists” and invoking federal intervention to restore order and investigate security lapses. Many prominent Bolsonaro supporters decried the violence even as they accused the government of overreaching with mass arrests. Nevertheless, Lula seemed invigorated by the challenge. His righteous indignation was on full display in the days that followed as his administration pushed forward with an aggressive legalistic response to defend Brazil’s democratic institutions. International leaders, including US president Joe Biden and French president Emmanuel Macron, rallied behind Lula, celebrating the country’s democratic resilience. While deeply unsettling, the moment underscored the far right’s challenge to Brazil’s democratic framework, with Lula positioning himself as a defender of democracy against its dogged enemies. The lack of unity and clear direction among Bolsonaro’s supporters post-riot reflected the political disarray on the Right, which promised to strengthen the president’s ability to respond to future threats against democracy.




But the salience of January 8 has ebbed with time. Lula’s government has had notable successes, including passing a simplification of the country’s arcane tax code and presiding over both the largest post-pandemic real wage increases among major economies and some of the lowest unemployment rates on record. Yet inflation remains stubbornly high, which has led to a drop in Lula’s approval rating steeper than any he had previously experienced in office. Diagnoses abound for this turn of events. Some point simply to the incumbent fatigue afflicting leaders all over the world. Like Joe Biden, for example, Lula is an aging longtime politician struggling to adapt to a new political media ecosystem, and his positive economic story is not translating into robust popular support.




Others, from differing angles, fault Lula’s handling of the critically important broad front that delivered him the presidency. Expressing the view of many market-oriented analysts, economist Fabio Giambiagi lambasted Lula’s spending and foreign policy as a betrayal of the trust moderates had placed in him. “Lula gave some somewhat decorative positions to people not linked to the PT. Then he met with Nicolás Maduro and began to attack [Central Bank president] Roberto Campos Neto and ‘Brazilianize’ the prices charged by Petrobras, undermining the company’s yearslong efforts to put its accounts in order after the dramatic situation experienced in the mid-2010s.” From Giambiagi’s perspective, “The PT had a second historic opportunity to form an alliance and wasted it. We can be fooled once, twice. But in life’s learning, we will hardly be fooled a third time. I believe that there is zero chance of reestablishing a broad front in the future.” As of now, many of the centrists who held their nose and voted for Lula last time because they found Bolsonaro so objectionable seem ready to support supposedly moderate right-wing alternatives.




Some on the Left, by contrast, argue the problem is that Lula has actually been too enthralled by the broad-front mentality. In a memorable late-2024 interview, Gleisi Hoffmann, the president of the PT, asserted that the party would not sacrifice its left-wing identity to appease its governing partners. “We had political dialogue with the center during the campaign and expanded it in government. They tried to kill the PT and failed,” stated Hoffmann, who took over the party in the wake of Rousseff’s ouster and steered it through the trying years of Lula’s trial and imprisonment. “They cannot now ask the PT to commit suicide, breaking with the social base that brought us here.”




This was interpreted as a shot across the bow at Finance Minister Fernando Haddad, who, while overseeing a concerted effort to pass a more progressive tax system in one of the most unequal countries on earth, has pursued moderate fiscal policies to placate market actors. There is a history of behind-the-scenes tensions between Hoffmann and Haddad, the PT’s presidential nominee in 2018. But Haddad is only in his current position because Lula put him there. Critics of Haddad’s approach are actually arguing about Lula’s ideological orientation. Rather than focusing on the demobilizing spending cuts that market actors would like to see, for example, PT congressman Lindbergh Farias argues that “we have to change the subject, we have to get involved in the people’s agenda. My line now is that 2025 is Lula’s year. It’s Lula being Lula. It’s Lula talking about people’s lives” and all the new social programs implemented since his return to power. No matter how big the tent, it can be hard to move inside if you let too many people in. At some point, Lula has to act like Lula.




To what extent might the major policies of Lula’s third term be presented as a unified political argument? First, the obvious: Lula has acted as a consummate democrat, fulfilling the basic promise that he would not constantly test the country’s political institutions as Bolsonaro had. More substantively, the administration can credibly claim to have advanced on its priority of lessening inequality. The comprehensive tax overhaul enacted in December 2023 consolidates multiple consumption taxes into a streamlined system featuring the goods and services tax, the subnational tax on goods and services, and a federal excise tax. The new system is designed to lower the average consumption tax rate from 34 percent to approximately 26.5 percent, thereby reducing the tax burden on lower-income households and promoting economic equality in a highly stratified society. Many presidents have tried and failed to pass a reform of this kind, yet it will not take full effect until 2033, which will likely blunt some of the political benefit for the current administration.




The government has also made a point of increasing the minimum wage above the rate of inflation, contributing to real income gains for the lowest earners, retirees, and beneficiaries of other public programs that use the minimum wage as a benchmark for benefits. Additionally, the government has expanded the income-tax exemption threshold, raising it from R$1,900 per month in early 2023 to R$2,824 by February 2024, effectively removing millions of Brazilians from the country’s tax base and increasing disposable income for low-wage workers (this move is supposed to be offset by increased taxation on the richest Brazilians, but that matter is currently stuck in the legislature).




Haddad also oversaw passage of a fiscal framework to replace the more austere spending-cap system introduced under former president Michel Temer. The arcabouço fiscal, as the new arrangement is known, allows for modest growth in annual public spending in accordance with revenue performance. Crucially, it exempts key social expenditures from spending caps, safeguarding essential services. This design aims to balance fiscal responsibility with Lula’s redistributive agenda, enabling ongoing investments in welfare, education, and health care. It has nevertheless drawn fire from both the Left, which argues that by fetishizing fiscal restraint the government gives too much ground to neoliberal thinking, and the Right, which insists the measure does not go far enough in reining in government spending.




There is no doubt that Lula’s third term will end on more solid economic footing than it began on, in no small part because of the policies the government has pursued. But the administration’s aversion to courting any kind of conflict means that many of the most tangible benefits of the various economic measures are years away from being felt. Further complicating matters for Lula this time is the fact that Bolsonaro handed enormous amounts of discretionary power over the federal budget to individual lawmakers, a dynamic that has been hard for Lula to reverse.




By making so much of the urgent menace of Bolsonarismo, Lula has inadvertently placed himself in a politically precarious position.

Traditional politicking has become more difficult for the president as members of Congress wield more power than ever. Lula’s government has struggled to maintain high levels of public support in this deeply polarized political climate. In a post-Bolsonaro context, it is no small thing that Lula revived the major pieces of his social agenda from twenty years ago. But there is a dearth of creative new thinking, which speaks to the novel constraints of this moment. From where will fresh ideas emerge? The broad front painstakingly assembled in 2022 was premised on the notion that Lula was the most viable candidate to defeat Bolsonaro and that, as a committed democrat, his return would benefit all players. What happens if powerful actors reject these fundamental premises next year?




Lula may well have become a victim of his own past political success. Given his personal and ideological style, he has always governed as a pragmatist, including in his orbit representatives of the traditional political elite that has benefited from proximity to power since the early nineteenth century. This approach was not called a broad front twenty-two years ago, when Lula first took office, but it was widely understood that in order to govern — to begin delivering on what André Singer has called a “Rooseveltian dream” for Brazil — Lula and the PT would have to make substantive concessions to a panoply of political forces to their right. For the sake of winning and holding on to power, the PT deemphasized a radical wide-ranging redistributive agenda even as it managed to implement a host of genuinely transformative social policies.




This approach, messy and transactional as it was, delivered. Now, however, whenever Lula displeases this or that coalition partner, he is accused of either failing to meet the high bar of consensus implied by the broad-front strategy pursued in 2022 or displaying insufficient concern for the health of Brazilian democracy. The political onus is apparently on the president to keep everyone happy rather than on the coalition as a whole to defeat the far-right threat that united them in the first place. By making so much of the urgent menace of Bolsonarismo, Lula has inadvertently placed himself in a politically precarious position.




The Next Campaign

Lula has insisted that he is eager to run for president one last time in 2026, but both he and the First Lady have seemingly left the door open to withdraw for health reasons. If Lula’s standing in the polls does not improve, it is easy to imagine him backing out. Still, the same electoral question will be put to the PT whether or not he is the candidate: Whither the broad front? Notwithstanding the sui generis appeal of Bolsonaro in 2018, a broad coalition is key to electoral victory in a country with as many active political parties as Brazil.




But the articulation of a broad front goes beyond a simple partisan alliance. It signals to voters that something greater is at stake than sectarian advancement. Bolsonaro has been barred from running for office until 2030, by which point he could well be serving a lengthy prison sentence of his own for his alleged role in a plot to overthrow Lula’s elected government. It will be enormously challenging, if not impossible, for the PT to make the case to potential partners that any of the aspiring Bolsonaro stand-ins represent the grave danger that he did.




This does not mean they won’t try. Placing Lula’s government at the center of the political spectrum, Haddad last year described the president’s strategy as “a coalition to prevent the greater evil.” Furthermore, he posits that “as long as the far right has this strength and these instruments of attack, this alliance will be a protection for the country. . . . Repolarization around healthier and more democratic perspectives will require, first, the ebbing of the extreme right in Brazil and in the world.” First we must defeat right-wing extremism, those beyond the bounds of acceptable political discord, Haddad suggests. Then we can worry about besting the regular conservatives.




This logic is sound. After all, Bolsonaro may not be running, but he remains the face of a larger corrosive movement that will very much be vying for power under the guise of a moderate alternative to Lula’s supposed radicalism. The need for a broad front against democratic erosion remains. “I want to establish the best possible coexistence [with other parties], because I believe we should have a broad front for the election of President Lula, even larger than the one we had in 2022,” Hoffmann asserted in her new role as minister of institutional affairs, a position to which Lula appointed her in March. Dirceu has made a similar argument, insisting that the PT must at the same time strengthen its ties with other left-of-center parties and reanimate the broad front put together three years ago. Less than a year into his third term, Lula himself reportedly told interlocutors that he wanted an even broader front next time. But it’s unclear what kind of pull he will have in 2026 compared to 2022.




Prominent PT leaders agree on the desirability of a broad front in next year’s campaign, but it is worth asking what end it serves beyond winning an election. If and when the PT embarks on a fresh attempt to cobble together a heterogenous coalition to support Lula in the name of restraining the far right, it should be clearer about the president’s vision to defeat radical reactionaries beyond the time horizon of the next election. There is something to be said for the balancing act Lula has undertaken in office as the face of a broad front after beating Bolsonaro. Crucially, it worked. But that broad-front strategy does not, and cannot, mean that Lula is held hostage to the positions of his most conservative voters over the course of the next four years. Lula has delivered a bevy of good economic news, but criticism of government spending has been a fixture of mainstream news coverage in Brazil. Next year, Lula’s campaign should insist that a broad front cannot mean that he must embrace draconian budget cuts, as market actors have urged since his inauguration. Austerity was not the agenda the broad front assembled to implement in 2022. This should be made explicit in 2026.




It is ultimately because of Lula’s enduring electoral strength, built up over decades, that Brazil today can serve as a model in the global struggle for institutional democracy.

Despite stylistic differences, any candidate seeking Bolsonaro’s blessing next year would almost certainly be as right-wing as the disgraced former president himself. Would the Right’s candidate conspire with high-ranking men in uniform to subvert the will of voters as Bolsonaro did? Probably not. But a successor would be willing and able to oversee a draconian economic agenda that leaves many worse off. In response, pragmatism, as always, will be Lula’s order of the day. “I am a union leader who believed in all or nothing,” he told university professors who went on strike to demand a raise and better working conditions in June 2024. “For me, it was 100 percent or it was nothing. And many times I was left with nothing.” He urged the striking members to accept the deal the government had put forth, insisting that the strike had run its course and its leaders had an obligation to recognize as much. They did soon thereafter. This case reflects Lula’s temperament as much as his political strategy in this polarized moment. Lula the radical has been glimpsed at times during this term, but the conciliatory Lula who would mediate rather than stoke class conflict has been the most consistent presence.




We will, however, almost certainly see both sides of Lula in ample measure during next year’s campaign: the bridge builder in pursuit of a new broad front and the populist firebrand attacking whichever Bolsonaro ally picks up a head of steam. Indeed, in recent months, the contours of Lula’s potential reelection pitch have come into focus. In the first round, when several candidates are likely to compete, his campaign will probably focus on economic justice and a progressive nationalist discourse. On economic justice, he will emphasize his proposal to phase out income taxes for poor and working-class Brazilians and increase them on high-income earners and on profits and dividends sent abroad.




On nationalist discourse, he will likely hammer the Brazilian right for its infatuation with Trump and Elon Musk, who has flouted Brazilian law and criticized members of the government in extremely harsh and puerile terms. These are sure to be potent electoral cudgels. The fact that the governor of São Paulo, a leading pro-Bolsonaro presidential contender, has gone notably quiet on Trump’s tariffs after celebrating the Republican’s election last year is a case in point. Despite a bevy of unfavorable polling in recent weeks, Lula cannot be counted out. He draws the ire of many, but he has managed remarkable political turnarounds before. He would not have won in 2022 were he as objectionable as his most ardent opponents believe.




It is ultimately because of Lula’s enduring electoral strength, built up over decades, that Brazil today can serve as a model in the global struggle for institutional democracy, rather than being held up as a cautionary tale of catastrophic civic decline. His political resilience, forged in the crucible of dictatorship and economic turmoil, remains a vital counterweight to the authoritarian impulses that continue to threaten democratic norms across the globe. At stake next year is whether Brazil will remain a broadly pluralistic, open society with a government attuned to the material needs of the poor and working-class majority, or settle into a more exclusionary vision of social life. A broad front should be assembled in service of the former, and not to simply ease the country into the latter more gently than Bolsonaro or his acolytes would.




No party likes to lose elections, of course, but Lula and the PT have nevertheless always kept an eye toward the next race. They successfully forged and wielded a broad front to beat back the far right at the national level in 2022. A broad front, however, should not be seen as an end in itself. The PT has spent Lula’s third term attending to the picayune demands of this or that coalition partner while diluting the effects of its substantive policy successes. While the results are not negligible, there has been a conspicuous lack of ambition, innovation, and, yes, aggressiveness from the PT’s fifth presidential administration. Ironically, by walking on eggshells in an attempt to displease no one, the party could find itself in a position where it inspires too few in the ongoing struggle against transnational reactionary obscurantism. As it plots its political future, the PT must not allow the broad front it built three years ago to become a gilded cage.

Contributors

Andre Pagliarini is assistant professor of history and international studies at Louisiana State University, faculty fellow at the Washington Brazil Office, and a nonresident expert at the Quincy Institute for Responsible Statecraft.

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Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto, Brasília, julho de 2025
Adriano Machado / Reuters

Em abril, quando Donald Trump anunciou suas tarifas do "Dia da Libertação" sobre dezenas de países, o Brasil saiu praticamente ileso. As exportações brasileiras para os Estados Unidos passaram a estar sujeitas a uma alíquota de 10%, a alíquota básica, escapando das tarifas debilitantes aplicadas aos produtos de alguns aliados dos EUA. No final de julho, no entanto, Trump declarou que as exportações brasileiras passariam a enfrentar tarifas de 50%, uma das maiores taxas já impostas por Washington no mundo. O anúncio levantou a perspectiva de uma guerra comercial entre os Estados Unidos e a maior economia da América Latina. Também indica a disposição de Trump de usar tarifas não apenas para forçar acordos comerciais mais benéficos ou equilibrar déficits comerciais, mas também como uma ferramenta para influenciar a política interna de um país estrangeiro.

Ao anunciar a nova taxa, a Casa Branca declarou que "a perseguição, intimidação, assédio, censura e processo politicamente motivados pelo Brasil contra o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro" — um aliado de Trump que está sendo julgado por organizar uma insurreição após sua fracassada tentativa de reeleição em 2022 — equivalem a "graves abusos de direitos humanos que minaram o Estado de Direito no Brasil". Os Estados Unidos revogaram os vistos de oito dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e impuseram sanções econômicas, sob a Lei Magnitsky Global, contra o ministro Alexandre de Moraes, que supervisiona o caso de Bolsonaro. (O julgamento do ex-presidente começa na terça-feira.) Essas medidas vêm em resposta ao papel central do tribunal no julgamento de Bolsonaro e seus apoiadores por seu envolvimento em uma tentativa de golpe pós-eleitoral. Constituem ataques públicos à legitimidade das instituições democráticas brasileiras. O governo brasileiro tem percebido essas ações, juntamente com as novas tarifas, como violações flagrantes de sua soberania e como tentativas deliberadas de enfraquecer a posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que derrotou Bolsonaro, antes das eleições planejadas para outubro de 2026.

Washington minou sua credibilidade como parceiro confiável de um amigo com quem mantém mais de dois séculos de cooperação diplomática e econômica. Em vez de promover os interesses americanos (ou de Trump), essas medidas desencadearam uma reação negativa no Brasil. Pesquisas de opinião pública indicam que a maioria dos brasileiros desaprova as ações de Trump, que contribuíram para minar o apoio a Bolsonaro, enfraquecer a coerência ideológica do bloco econômico de direita brasileiro e alienar segmentos da elite empresarial. Como resultado, mesmo setores conservadores, antes ávidos por seguir o exemplo de Washington, estão agora mais inclinados a apoiar a estratégia do governo brasileiro de diversificar as parcerias econômicas e reduzir a dependência dos Estados Unidos.

Quanto mais os Estados Unidos buscam minar a soberania do Brasil e desestabilizar suas instituições democráticas — inclusive defendendo implicitamente a mudança de regime —, mais espaço geopolítico criam para a China expandir sua já considerável influência no país. Pequim vem aprofundando constantemente sua presença no Brasil por meio de investimentos em áreas críticas como energia, agricultura e segurança alimentar, defesa, tecnologia avançada, fabricação de automóveis, um programa conjunto de satélites e infraestrutura estratégica, como portos. Mais notavelmente, a China está construindo uma ambiciosa ferrovia transcontinental no Brasil para conectar os oceanos Atlântico e Pacífico. Esses acontecimentos não apenas corroem a posição de Washington no Brasil, mas também recalibram o equilíbrio regional de poder.

Para muitos formuladores de políticas no Brasil, essa situação é inaceitável porque retarda o surgimento da tão desejada ordem mundial multipolar. Em vez de conseguir equilibrar as relações tanto com os Estados Unidos quanto com seus rivais tradicionais, ao mesmo tempo em que cultiva laços pelo chamado Sul Global, o Brasil está sendo pressionado a uma escolha binária: alinhar-se completamente a Washington ou a Pequim. Diante das crescentes ameaças de Washington, Brasília pode, em última instância, concluir que suas opções são muito mais restritas do que esperava.

AMIGOS DE BOM TEMPO

Durante décadas, a relação positiva e produtiva entre o Brasil e os Estados Unidos foi baseada em interesses mútuos e confiança, o que, por sua vez, sustentou a estabilidade regional. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o Brasil aliou-se aos Estados Unidos e permitiu a construção de bases aéreas no nordeste do país em troca de assistência econômica e desenvolvimento industrial — um momento fundamental na estratégia de defesa do hemisfério. Mais recentemente, tem havido intensa cooperação em segurança regional e no combate ao tráfico ilícito de drogas, particularmente por meio de mecanismos como o Acordo de Cooperação em Defesa EUA-Brasil de 2010, que aprofundou os laços institucionais entre as forças de segurança dos dois países. Hoje, o comércio bilateral reflete tanto a profundidade quanto a assimetria dessa parceria. O fato de os Estados Unidos terem desfrutado de um superávit comercial com o Brasil de cerca de US$ 400 bilhões na última década reforça a vantagem estrutural de Washington.

Isso não significa que não tenha havido divergências ou tensões, particularmente quando o Brasil buscou uma política externa mais autônoma. A liderança do Brasil no Sul global, especialmente durante a primeira presidência de Lula (2003-2011) e sob sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2016), frequentemente colidiu com as prioridades dos EUA. Washington percebeu vários desalinhamentos estratégicos: a oposição aberta do Brasil à invasão do Iraque pelos EUA, em 2003; seu papel central em 2009 na criação do BRICS, um bloco intergovernamental em expansão com crescente influência global; e seu esforço conjunto com a Turquia em 2010 para intermediar um acordo nuclear com o Irã, que o governo Obama acabou deixando de lado em favor de negociações com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, além da Alemanha. Mais recentemente, Washington expressou preocupação com os laços crescentes do Brasil com a China, que se aprofundaram desde a derrota de Bolsonaro, que havia deliberadamente distanciado Brasília de Pequim.

No cerne da atual recalibração da política externa brasileira está a convicção de que a ordem pós-Segunda Guerra Mundial, liderada pelos Estados Unidos, está em declínio. Brasília encara cada vez mais a ascensão de um mundo multipolar — impulsionado por uma série de grandes potências e pela crescente assertividade do Sul global — como um imperativo e uma oportunidade. Dentro desse paradigma, o Brasil aspira a ajudar a orientar a trajetória da governança e do desenvolvimento globais. Isso explica seu esforço para construir parcerias estratégicas com países além da órbita dos Estados Unidos e outras potências ocidentais tradicionais, bem como a crescente ênfase que coloca na cooperação direta entre países do Sul global. Brasília promove este último ponto principalmente por meio do BRICS, que se tornou um importante elemento estrutural da política externa brasileira. Mesmo os céticos brasileiros anteriores em relação ao consórcio agora o consideram uma plataforma indispensável para o avanço dos interesses do país. Sua estrutura tem sido instrumental, por exemplo, no fornecimento de esforços conjuntos de segurança entre o Brasil e a Índia; na criação do Novo Banco de Desenvolvimento, que ajuda a financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento no Brasil e em outros mercados emergentes; e na coordenação de esforços para reduzir a dependência de seus membros do dólar americano.

Ainda assim, o Brasil não pretende virar as costas aos Estados Unidos. Os dois países historicamente priorizam muitos dos mesmos objetivos, incluindo a estabilidade regional. E Lula, o líder político mais influente da América Latina, permanece aberto a novas negociações comerciais com Washington. O estilo de Trump, no entanto, pode impedir que os dois países se entendam. Lula, um pragmático diplomático, historicamente demonstrou disposição para fazer concessões se as negociações forem conduzidas de boa-fé e baseadas no respeito mútuo. Ele tem sido menos receptivo à coerção, à diplomacia transacional ou a imposições unilaterais, todas características da política externa de Trump.

Questões de soberania tornam-se especialmente agudas quando o Brasil resiste a se alinhar às prioridades estratégicas dos EUA — seja em relação à migração, à diplomacia climática, ao comércio agrícola, ao comércio ou às reformas da governança multilateral. Para o Brasil, projetar uma identidade internacional autônoma é essencial para sua aspiração de liderança no Sul global. No entanto, essa aspiração é cada vez mais testada pelas realidades de uma ordem multipolar: à medida que mais potências competem por influência, o Brasil precisa navegar em um espaço cada vez menor entre preservar sua autonomia, sustentar a cooperação com os Estados Unidos e evitar a dependência excessiva de qualquer parceiro, seja a China ou qualquer outro. A fluidez do sistema emergente torna o equilíbrio entre esses objetivos mais urgente e mais difícil.

INIMIGOS RÁPIDOS

Agora, Washington parece interessada em exibir seu poder assimétrico. A questão central é se o uso de tarifas e sanções por Trump visa extrair concessões em uma negociação comercial substancial com o Brasil — ou se visa simplesmente promover uma mudança de regime. Sinais da Casa Branca sugerem a última opção, assim como o superávit comercial dos EUA com o Brasil, que, em princípio, deveria ter poupado o Brasil da serra tarifária de Trump. O círculo íntimo de Trump vê cada vez mais o Brasil como uma ameaça à supremacia dos EUA na América Latina devido à crescente parceria do país com a China. E muitos em Brasília, inclusive nos círculos mais próximos de Lula, acreditam que a pressão de Washington visa inclinar a balança política interna do Brasil a favor da oposição, na esperança de que um futuro governo conservador realinhe firmemente o Brasil com a agenda dos Estados Unidos em relação à China, segurança regional e comércio. Para Trump, Lula representa um parceiro pouco confiável: independente demais, muito empenhado na cooperação entre os países do Sul global, relutante demais em aderir às prioridades estratégicas dos EUA. Bolsonaro, que parece totalmente disposto a fazer infinitas concessões à Casa Branca, é visto como uma alternativa ideal.

Mas a estratégia de Trump pode sair pela culatra. Pesquisas de opinião até agora indicam que Lula se beneficiou do efeito "união em torno da bandeira", típico de países sujeitos a sanções externas. Além disso, é improvável que qualquer futuro governo de direita no Brasil mude radicalmente o alinhamento da política externa do país em relação aos Estados Unidos. A relação econômica do Brasil com a China é agora estrutural. Até mesmo os eleitores do agronegócio no interior do Brasil, há muito um reduto de Bolsonaro, reconhecem que o Brasil não pode simplesmente se distanciar de Pequim. Trump, portanto, interpretou mal o cenário político brasileiro ao presumir que a pressão externa enfraqueceria Lula, ignorando até que ponto a interdependência econômica do Brasil com a China e o pragmatismo de seu eleitorado limitam qualquer realinhamento acentuado da política externa em favor de Washington.

É possível que o efeito "união em torno da bandeira" se dissipe com o tempo. Mas, dado que o Brasil é muito menos dependente dos Estados Unidos hoje do que há 30 anos, o governo pode ser capaz de amortecer o impacto da campanha de pressão de Washington e chegar às eleições de outubro de 2026 com uma economia razoavelmente forte — um resultado que praticamente garantiria a reeleição de Lula. Para que os Estados Unidos realmente forcem o Brasil a ceder, precisariam impor sanções draconianas ao sistema financeiro brasileiro. Tais medidas, no entanto, quase certamente gerariam um aumento ainda maior no apoio político a Lula. Com o Brasil, Trump parece ter caído em uma armadilha que ele mesmo criou.

Washington minou sua credibilidade como um parceiro confiável.

As sanções contra membros do Supremo Tribunal Federal, impostas em julho, foram particularmente inflamadas. Com exceção dos principais apoiadores de Bolsonaro e de alguns governadores, praticamente todas as principais forças políticas no Brasil criticaram duramente a medida. Esses eleitores veem as sanções e as tarifas como instrumentos legais, usados ​​para fins geopolíticos — e como afrontas diretas à integridade democrática do Brasil. A tentativa de Trump de reabilitar Bolsonaro também está em desacordo com os sentimentos políticos predominantes no Brasil. Bolsonaro e seu filho Eduardo, que tem feito lobby ativamente contra o Brasil em Washington, foram tachados de traidores por apoiadores de Lula. Até mesmo alguns partidos de direita se distanciaram cautelosamente do ex-presidente desacreditado. Além disso, setores-chave que antes formavam a espinha dorsal da coalizão conservadora no Brasil — incluindo agronegócio, energia, indústria de defesa e manufatura — têm se mostrado cada vez mais desiludidos com a interferência de Trump na política do país e com suas políticas comerciais protecionistas, que minaram sua competitividade nas exportações e o acesso às cadeias de suprimentos.

Embora ainda existam áreas de potencial cooperação entre Brasília e Washington, as agendas políticas de Lula e Trump são fundamentalmente antagônicas, e é improvável que qualquer reaproximação se concretize antes das eleições brasileiras de 2026. Lula tem poucos incentivos para atender à pressão econômica e jurídica de Washington. Recuar minaria sua narrativa de defesa da soberania nacional e lhe custaria capital político, especialmente entre os grupos progressistas e nacionalistas que formam sua base principal. De fato, resistir à pressão americana permite que Lula continue consolidando seu apoio interno e reforce o papel de liderança do Brasil no Sul global. Mesmo que o Brasil oferecesse concessões estratégicas, como conceder aos Estados Unidos acesso preferencial a minerais de terras raras, há poucas evidências de que Washington recuaria.

O Brasil, por sua vez, iniciou um processo formal de retaliação com base na recém-promulgada Lei de Reciprocidade Econômica. Lula autorizou a Camex, autoridade comercial do país, a avaliar as medidas americanas, após o que o governo considerará tarifas unilaterais recíprocas. A Camex tem até o final de setembro para apresentar suas conclusões. Além disso, o Brasil está tomando medidas para compensar o impacto da campanha de pressão de Trump — por exemplo, comprando produtos produzidos localmente, alvos das tarifas americanas, como açaí, água de coco e mel, para programas alimentares ou reservas nacionais. Enquanto isso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que criticou a politização do comércio por meio do uso do dólar americano, sinalizou que o Brasil poderia contestar as tarifas nos tribunais americanos. O Brasil também buscou fortalecer suas outras parcerias comerciais. Mais recentemente, o ministro do Comércio do Canadá anunciou, durante visita oficial a Brasília, que seu país planeja assinar um acordo bilateral com o Mercosul, o bloco comercial sul-americano do qual o Brasil é membro.

NOVAS CONEXÕES

A abordagem de Trump está corroendo o soft power e a legitimidade global dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que fortalece seus rivais, incluindo a China, ao enfraquecer as próprias estruturas que outrora sustentaram a primazia americana. Em outras palavras, está acelerando a ascensão da ordem multipolar que o Brasil quer ajudar a conduzir. Quando as elites da política externa brasileira testemunham a postura adversária de Trump em relação a outros aliados tradicionais dos EUA — incluindo Austrália, Canadá, Japão e Europa — isso apenas reforça sua impressão de que Washington não pode oferecer ao Brasil uma parceria viável a médio prazo. Há um consenso crescente nos círculos diplomáticos do país, de fato, de que os Estados Unidos podem permanecer um parceiro pouco confiável muito depois do término do mandato de Trump em 2029 — na próxima década ou até mais.

Como resultado, o relacionamento do Brasil com a China quase certamente se fortalecerá. O governo brasileiro está buscando proativamente diversificar os mercados de exportação do país. Em resposta às tarifas americanas sobre produtos brasileiros, a China declarou sua intenção de expandir suas importações de commodities brasileiras essenciais, como café, carne e grãos, sinalizando um realinhamento estratégico nas relações comerciais. Um segmento crescente da liderança de direita brasileira agora vê a China como um parceiro econômico de longo prazo mais estável e pragmático do que os Estados Unidos. Essa percepção é compartilhada pelo setor privado, que exerce crescente pressão sobre o governo brasileiro para que conceda às empresas chinesas maior acesso ao mercado brasileiro.

É fundamental notar que a política externa do Brasil tem se abstido, de forma consistente, de adotar uma postura explicitamente antiamericana ou antiocidental. Em vez disso, o Brasil tem preferido uma abordagem diplomática multidirecional, fundamentada nos princípios de autonomia, pragmatismo e engajamento construtivo com uma gama diversificada de atores globais. Para Brasília, Pequim constitui um parceiro estratégico indispensável, mas Washington, mesmo após suas recentes agressões, continua sendo uma potência global insubstituível. Como resultado, o Brasil não considera viável ou desejável a ideia de escolher entre Pequim e Washington. Ainda assim, a postura cada vez mais conflituosa e coercitiva adotada pelo governo Trump abalou o cálculo diplomático do Brasil e acelerou sua inclinação geopolítica em direção a Pequim.

Se esse alinhamento se tornasse permanente, os efeitos seriam de longo alcance. Economicamente, o aprofundamento dos laços comerciais e de investimento consolidaria a China como principal parceira externa do Brasil, incorporando firmemente empresas chinesas em setores estratégicos. Geopoliticamente, tornaria mais difícil para o Brasil servir de ponte entre o Sul global e os países ocidentais, limitando suas aspirações multipolares e estreitando sua flexibilidade diplomática. Esses cenários já aparecem nos debates políticos que antecedem as eleições de 2026: figuras da oposição alertam para a "dependência excessiva" da China, enquanto aliados do governo consideram a diversificação essencial para a defesa da soberania nacional em uma era de rivalidade entre grandes potências. Essa diversificação, no entanto, pode se tornar mais difícil de implementar. A agressividade contínua de Trump pode colocar os formuladores de políticas brasileiros em uma posição que eles não querem estar, uma posição na qual se sentem compelidos a escolher.

HUSSEIN KALOUT é pesquisador da Universidade Harvard e membro do Conselho Consultivo Internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Ele atuou como Secretário Especial de Assuntos Estratégicos do Brasil de 2016 a 2018.

1 de setembro de 2025

Ele enfrentou Trump. Agora vem seu maior desafio.

Para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, os riscos antes das eleições do ano que vem não poderiam ser maiores.

Andre Pagliarini
Andre Pagliarini é especialista em política brasileira e autor de "Lula: um presidente do povo e a luta pelo futuro do Brasil".

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Brasil em agosto. Evaristo Sa/Agence France-Presse — Getty Images

O presidente Trump parece estar de olho na América Latina. Desde os dias mais sombrios da Guerra Fria, Washington não adotava uma política de tamanha hostilidade em relação aos seus vizinhos do sul. No entanto, um país emergiu como alvo especial da ira de Trump: o Brasil. Em julho, ele ameaçou impor tarifas de 50% a menos que as autoridades suspendessem o processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, acusado de conspirar contra a democracia após sua derrota em 2022, e anulassem uma decisão da Suprema Corte sobre conteúdo de mídia social.

O atual presidente do país, Luiz Inácio Lula da Silva, recusou-se categoricamente. Em vez disso, cheio de justa indignação, assumiu o manto nacionalista e se apresentou como defensor da soberania brasileira contra a mão pesada de Washington. "Em nenhum momento", disse ele ao The Times, "o Brasil negociará como se fosse um país pequeno contra um país grande". As tarifas exorbitantes foram devidamente impostas, embora algumas isenções tenham suavizado o golpe. No entanto, a recusa de Lula em ser intimidado e a insistência para que o Brasil desempenhe um papel independente no cenário mundial lhe renderam um aumento no apoio em casa.

Ele vai precisar. No ano que vem, aos 80 anos, buscará um quarto mandato sem precedentes quando os brasileiros forem às urnas. A eleição não decidirá apenas o destino do governo ou o legado de Lula. Determinará se o Brasil, a quarta maior democracia do mundo, se juntará ao coro autoritário que reverbera por todo o Hemisfério Ocidental. Para Lula e seu país, os riscos não poderiam ser maiores. O presidente brasileiro pode ter enfrentado Trump, mas seu maior desafio ainda está por vir.

Durante grande parte de seu terceiro mandato, Lula lutou com resultados medianos nas pesquisas. Apesar do baixo desemprego, a inflação tem sido um problema persistente. Também houve um sentimento entre uma parcela considerável do eleitorado de que suas prioridades em política externa, como uma tentativa antecipada de intermediar um acordo entre a Rússia e a Ucrânia, bem como suas críticas incisivas ao governo israelense, eram quixotescas e improdutivas.

Mas as coisas estão melhorando. A maioria aprova sua conduta no cenário mundial, e muitos apoiam sua condução da disputa com Trump. Pesquisas recentes também o mostram superando todos os concorrentes testados para 2026, incluindo o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, um bolsonarista ferrenho visto como o mais formidável concorrente de Lula. O humor público também mudou: mais brasileiros dizem temer um retorno de Bolsonaro do que se preocupar com a permanência de Lula no poder.

O presidente agora é menos um titular em declínio do que um favorito resiliente. A melhora da confiança do consumidor explica parte disso, mas o panorama político mais amplo é igualmente importante. Com Bolsonaro impedido de exercer o cargo até 2030, seu filho se mudou para os Estados Unidos para fazer lobby na Casa Branca em tempo integral. Seus esforços parecem ter dado resultado. Mas a tentativa do governo Trump de coagir o Brasil a retirar acusações que podem levar iminentemente a uma longa pena de prisão para Bolsonaro saiu pela culatra. Apesar dos esforços da família Bolsonaro para culpar Lula, mais brasileiros os culpam pelas tarifas onerosas de Trump.

O vento pode estar a favor de Lula, mas ainda existem desafios consideráveis. Por exemplo, a coalizão que o levou de volta ao cargo há três anos é extremamente frágil. Seu partido sozinho não consegue garantir a maioria no sistema político fragmentado de hoje. A vitória no ano que vem exigirá a formação de uma ampla aliança que vá da centro-esquerda aos conservadores pragmáticos, o mesmo bloco desajeitado que sustentou seu retorno em 2022. Isso significa atender constantemente a governadores, líderes do Congresso e grupos empresariais de centro, que a atual safra de candidatos da oposição também está cortejando. Será que Lula conseguirá convencer os centristas de que a democracia está nas urnas, mesmo que Bolsonaro não esteja?

Resta saber também como se desenrolará o ataque comercial de Trump ao Brasil. Graças a um esforço concentrado para diversificar seus parceiros comerciais, o Brasil depende muito menos do mercado americano do que antes. Ainda assim, há uma linha tênue entre a defesa dos interesses nacionais com princípios e a postura política diante de uma calamidade. Lula insiste que está perfeitamente disposto a conversar com Trump e apresentou um plano de contingência para ajudar com as consequências. Por enquanto, isso está indo bem. Mas se as tarifas se mostrarem duradouras e mais dolorosas do que o esperado, sua abordagem inflexível pode ser irritante.

A direita, por sua vez, está longe de estar acabada. Bolsonaro pode estar prejudicado por problemas legais, mas o bolsonarismo — uma mistura nociva de conspiração, ressentimento, fervor religioso e nostalgia pela ordem militar — não é tão facilmente contido. Enquanto 39% dos eleitores em uma pesquisa recente se identificaram com o partido de Lula, 37% apoiaram Bolsonaro. O herdeiro mais confiável continua sendo o governador de São Paulo, Sr. Freitas, um tecnocrata que deve sua carreira política ao ex-presidente. Nas pesquisas competitivas, ele precisa decidir se vai se voltar para o centro na disputa do próximo ano ou se comprometerá cada vez mais fielmente com o movimento reacionário de Bolsonaro.

Se esse dilema estratégico definir a campanha da oposição, a de Lula dependerá de ele conseguir manter a economia estável o suficiente para neutralizar os ataques à sua gestão e enquadrar a eleição como um referendo sobre a própria democracia. Ele já começou a fazer isso, apresentando-se como um baluarte contra a interferência estrangeira e a recaída autoritária. Se conseguir fazer com que 2026 seja o momento de decidir se o Brasil continuará como uma sociedade independente e pluralista ou se recairá em um padrão de erosão democrática que se submete aos interesses dos Estados Unidos, ele terá boas chances.

Lula sempre prosperou com poucas chances. Ele ascendeu da pobreza à presidência, voltou da prisão para derrotar um presidente pela primeira vez na história pós-ditadura do Brasil e sobreviveu a todos os obituários escritos sobre sua carreira política. No entanto, a eleição que se avizinha pode ser seu maior desafio até agora. Trump e seus aliados certamente buscarão influenciar a disputa de alguma forma, colocando à prova as famosas habilidades de campanha do presidente brasileiro.

Lula é, sem dúvida, uma figura lendária do passado do país. Agora, ele precisa convencer os eleitores de que também pode liderá-lo para o futuro.

Andre Pagliarini (@apagliar) é professor assistente de história e estudos internacionais na Universidade Estadual da Louisiana, membro do Escritório do Brasil em Washington e especialista não residente do Instituto Quincy para a Arte de Governar Responsável. Ele é autor do livro "Lula: A People’s President and the Fight for Brazil’s Future", a ser lançado em breve.

31 de agosto de 2025

Israel depois de Fordow

Netanyahu está se baseando na obliteração de Gaza para lançar uma ofensiva externa em múltiplas frentes, visando a cantonização no Líbano e na Síria, e a mudança de regime, se não a dissolução do Estado, no Irã. O que explica o investimento político do Ocidente em um Oriente Médio centrado em Israel, tão evidente durante a Guerra dos Doze Dias de junho?

Susan Watkins

New Left Review

NLR 154 • July/Aug 2025

Em questão de meses, Israel atacou quatro estados: Líbano, Síria, Iraque e Irã, explorando sua atual supremacia aérea sobre a região. Em setembro de 2024, eliminou grande parte da estrutura de comando do Hezbollah, lançou oitenta bombas sobre a casa de Nasrallah, bombardeou Beirute e o Vale do Bekaa e reocupou o sul do Líbano. Em outubro, destruiu as principais defesas aéreas do Irã, depois que Khamenei respondeu à morte de Nasrallah com uma chuva de mísseis simbólica. Em dezembro, saudou a captura de Damasco pelos insurgentes da al-Nusra com bombardeios extensivos da infraestrutura indefesa da Síria. Em março de 2025, rompeu o cessar-fogo de Trump em Gaza para continuar o bombardeio de casas, hospitais, campos de refugiados e filas de alimentos, expandiu seus centros de tortura e bloqueou a ajuda alimentar, impondo fome generalizada. Na Cisjordânia, expulsou milhares de suas casas e autorizou vinte e dois novos assentamentos judaicos. Em 13 de junho de 2025, lançou um ataque ao Irã, supostamente com o objetivo de atrasar o programa nuclear de Teerã, alegando o "direito à autodefesa" de Israel, mas, na verdade, visando o próprio regime — o alto comando militar, os líderes do Conselho de Segurança da Guarda Revolucionária (IRGC), os chefes de inteligência, a Basij e a infraestrutura de energia e radiodifusão. Finalmente, conseguiu atrair Washington para a guerra contra o Irã. Em 22 de junho, B2s americanos lançaram suas cargas úteis de 13.600 kg em Fordow e Natanz, enquanto um submarino americano lançou mais de 30 mísseis de cruzeiro contra os locais.

Houve poucas tentativas tão explosivas de dominação regional desde a ascensão do Japão Imperial, anexando a Coreia, Taiwan e o sul da Manchúria — ou, talvez, desde a "estratégia total" da África do Sul nas décadas de 1970 e 1980, visando Angola, Namíbia e Moçambique. A de Israel é diferente em muitos aspectos importantes. Primeiro, embora o Japão tivesse o apoio de Londres e Washington até a década de 1920, agiu sozinho. Possuía, observou um diplomata britânico, "tanto o desejo quanto a capacidade" para fazê-lo.1 Os desejos de Israel ainda superam suas capacidades. Os primeiros líderes sionistas não tinham dúvidas sobre a necessidade de apoio imperial. O pequeno estado nascente não poderia ter sobrevivido à Revolta Árabe de 1938 sem as armas britânicas, nem ter escapado da Nakba se as tropas britânicas não tivessem recuado para permitir isso, nem alcançado reconhecimento internacional sem que Washington o promovesse na ONU. Israel lutou tenazmente pela autonomia operacional, acumulando um fundo de guerra de 200 mil milhões de dólares para cobrir quaisquer falhas na assistência anual de 3,5 mil milhões de dólares dos EUA, mas permanece um mínimo irredutível de dependência diplomática e material; ainda precisa de Washington para manter o Egipto acorrentado.2

Em segundo lugar, o Japão teve uma longa pré-história de desenvolvimento urbano relativamente pacífico antes da chegada dos navios de guerra americanos na década de 1850; entrou em um cenário mundial já dividido entre grandes potências imperiais e se propôs a conquistar um lugar entre elas, mesmo que apenas para evitar se tornar uma colônia. Israel foi fundado como um pequeno estado colonizador étnico-confessional, mental e materialmente cercado por um "muro de baionetas", nas palavras de Jabotinsky: "O sionismo é um empreendimento colonizador e, portanto, sua sobrevivência depende da questão da força armada". Nenhuma população nativa aceitaria de bom grado uma maioria estrangeira; se um lar judaico na Palestina fosse o objetivo, ele teria de ser imposto.3 Embora o sionismo trabalhista gostasse de afirmar que não tinha conflito de interesses com os trabalhadores árabes, apenas com efêndis e proprietários de terras, sua prática militar — a Nakba, 1948, 1956, 1967, 1973 — seguia a mesma lógica. Na narrativa sionista, a propriedade judaica da terra é uma concretização da promessa de Deus, numa linha direta da era de ouro narrada no Pentateuco, enquanto as forças armadas são o principal aparato ideológico do Estado, o instrumento social que transformou os judeus europeus — árabes, africanos e soviéticos — em israelitas: "a nação é a criação do exército, que é por sua vez a glória suprema da nação".4

Uma terceira diferença: o Japão Imperial iniciou um programa abrangente de desenvolvimento industrial e de infraestrutura nas terras que conquistou, mobilizando trabalho forçado para construir portos, ferrovias, usinas e minas. Em seu domínio de meio século sobre a Cisjordânia e Gaza, Israel reduziu grande parte da população palestina à mendicância, enquanto seus empreiteiros favoritos se tornaram hiper-ricos. O desdesenvolvimento e a "degradação do regime" foram seus objetivos na Síria, Líbano e Iraque. Em vez da anexação, visa à fragmentação dos Estados vizinhos, com a Força Aérea Israelense como sua supervisora ​​aérea. Nesse caso, aproxima-se mais do padrão da África do Sul do apartheid, com ataques preventivos, assassinatos seletivos e dinheiro para forças locais. Mas o objetivo da África do Sul era político: lutava contra movimentos de libertação amplamente alinhados aos soviéticos como aliada dos EUA na Guerra Fria; na ausência dessa condição, toda a estrutura do apartheid ruiu. Os objetivos de Israel são etnonacionalistas e sua relação com a política externa americana tem sido mais íntima, embora objetivamente mais tensa.

O terceiro front

A comparação serve para sublinhar o caráter único de Israel como um Estado colonizador etnoconfessional, politicamente autônomo, mas existencialmente dependente de uma superpotência distante na qual seus correligionários ocupam uma posição significativa, mas não dominante. O sionismo sempre teve que lutar em três frentes: esmagar a resistência palestina nativa, combater o ceticismo da diáspora judaica e batalhar pelo apoio das Grandes Potências. Um século de dependência precária, com reveses nas mãos de Londres em 1922 e 1939, depois de Washington em 1956 e, por um momento agonizante, em 1973 — antes que o transporte aéreo de tanques americanos para os campos de batalha no deserto lhe permitisse invadir o Egito — ensinou aos líderes sionistas lições indeléveis sobre a falta de confiabilidade das grandes potências. O abismo que se abriu em 1973 trouxe à tona, de forma mais dramática do que nunca, a necessidade de uma mão moldadora na política americana para o Oriente Médio. Israel possuía ampla capacidade militar em tanques, aviões e tropas para uma guerra colonial de baixa intensidade contra os palestinos mal armados; para enfrentar os Estados árabes em sua vizinhança, precisava da superpotência. A partir de meados da década de 70, com efeito cumulativo, líderes judeus montaram uma campanha político-organizacional sem precedentes para reequipar o AIPAC e suas organizações irmãs a fim de solidificar o apoio a Israel no Congresso, no Executivo, no mundo dos think tanks e na mídia, sustentados pela infraestrutura cultural para uma nova vertente do Memorialismo do Holocausto que equiparava qualquer crítica a Israel ao início de um novo Judeocídio. footnote5

Desde então, a riqueza material da burguesia judaico-americana cresceu paralelamente à expansão do setor financeiro e à inflação geral dos preços dos ativos. Os casamentos de Chelsea Clinton e Ivanka Trump são testemunho da simbiose cultural entre a nova riqueza herdada por goys e judeus e a postura pró-Israel que permeia a convivialidade oligárquica americana. Enquanto isso, os gigantes americanos de alta tecnologia se espalharam pela costa perto de Tel Aviv com enormes departamentos de P&D, compostos por oficiais das Forças de Defesa de Israel (IDF), com portas giratórias para o aparato militar e de inteligência de Israel. Nota de rodapé 6 Mais rico agora do que na década de 1990, com seu capital humano impulsionado por um milhão de ex-imigrantes soviéticos altamente qualificados, e politicamente mais confiante, tendo superado — desdenhando até mesmo as restrições ostensivas dos acordos de Oslo — o máximo que o Ocidente poderia oferecer em termos de arquitetar uma rendição palestina palatável, o Israel de Netanyahu pode se apresentar convincentemente como um vencedor em um cenário de Estados árabes fragmentados. Nota de rodapé 7

Mas, se as condições da precária dependência de Israel evoluíram, ele continua sendo um pequeno país que se impõe à força em uma região hostil, ainda dependente do apoio de Washington para sua expansão, o que nem sempre pode ser garantido. Embora o domínio de Israel sobre a política americana para o Oriente Médio tenha se fortalecido, os riscos estão aumentando, e os interesses nacionais americanos estão se tornando mais claramente distintos dos do Estado judeu. Subordinar o Egito a Washington é um objetivo racional dos EUA; manter seus 120 milhões de habitantes sob confinamento militar e policial seria desnecessário, não fosse a pressão adicional imposta por seus governantes, que precisam fechar os olhos para o destino dos palestinos. O Iraque de Saddam não representava uma ameaça aos EUA e havia solicitado permissão antes de invadir o Kuwait; a ocupação do Iraque por Bush, pressionada pelos falcões israelenses, agora é considerada um erro. Preservar o monopólio nuclear de Israel não precisa ser, em si, uma preocupação dos EUA; o Irã jamais atacaria a América do Norte e uma dissuasão simétrica teria maior probabilidade de estabilizar a região, como tem sido de fato o caso com a Índia e o Paquistão. Desde 2012, o senso comum semioficial de Washington sustenta que o Oriente Médio ocupa muita largura de banda, desviando a atenção de tarefas imperiais maiores, como a China e a fronteira leste da OTAN, e atolando os EUA em guerras que, de outra forma, seriam desnecessárias.

Uma casa dividida

Como essas coordenadas mudaram desde 7 de outubro? Primeiro, o governo Biden concedeu a Israel um grau extraordinário de latitude política para se vingar das mortes e da tomada de reféns no ataque do Hamas. Com uma leve repreensão e o ritual da diplomacia de busca de cessar-fogo, Biden permitiu que Netanyahu rompesse as regras de engajamento existentes: que o Hamas lançaria alguns mísseis ou capturaria reféns como tática de negociação, quando os moradores de Gaza estivessem desesperados por algum alívio; que o Hezbollah dispararia foguetes quando as forças das Forças de Defesa de Israel ultrapassassem os limites; que os EUA suspendessem os ataques a Gaza após algumas semanas. O horror implacável que Israel infligiu a Gaza se destaca não tanto pela escala das mortes, por mais terríveis que sejam — mais de 60.000, com muitas incontáveis ​​sob os escombros —, mas pelo caráter singularmente descarado de sua crueldade, pela falta de vergonha de seu ódio etnonacionalista, transmitido ao mundo em uma época em que imagens legendadas compartilhadas são notícia.

A resposta tem sido uma enorme campanha internacional de solidariedade à Palestina, visando a cumplicidade dos Estados ocidentais, comparável ao movimento contra a Guerra do Vietnã. Nos EUA, a cisão na comunidade judaica americana, que começou com jovens radicais, agora abrange figuras importantes como Ezra Klein, do New York Times, que questiona se a segurança do povo judeu não é melhor atendida pela república secular-liberal dos EUA do que pelo etnonacionalismo israelense. Cartas abertas de rabinos reformistas e ortodoxos denunciando a campanha de fome, a vitória do crítico de Israel Zohran Mamdani nas primárias democratas de Nova York e o apoio de 34 congressistas ao projeto de lei Block the Bombs são apoiados por pesquisas que mostram que 53% dos americanos têm uma visão desfavorável de Israel, acima dos 42% antes de 7 de outubro, e 60% se opõem ao que as Forças de Defesa de Israel (IDF) estão fazendo em Gaza. Muitos críticos liberais judeus-americanos — Thomas Friedman, do Times, em primeiro lugar — argumentam que a guerra em Gaza está sendo prolongada apenas para manter a coalizão governante unida e manter Netanyahu fora da prisão. Pesquisas de opinião indicam que ele deve perder a próxima eleição, a ser realizada em outubro de 2026, na qual o bloco amorfo de oposição liderado por Yair Lapid deve obter 65 assentos no Knesset de 120 assentos, enquanto a coalizão de Netanyahu caminha para cinquenta. Os sionistas liberais depositam suas esperanças no retorno de um governo Lapid, Benny Ganz ou Naftali Bennett, que possa concordar com alguns arranjos de autogoverno do tipo bantustão no que resta de Gaza e da Cisjordânia, sob uma Autoridade Palestina reformulada, em parceria com forças de paz árabes — permitindo que o conflito "fratricida" que atualmente destrói sinagogas e o Partido Democrata se cure. footnote10

Mas, se muitos israelenses estão fartos de Netanyahu, a maioria não rompeu com seu tratamento aos palestinos. Mais de 70% dos judeus israelenses concordam com seu governo que "não há inocentes em Gaza" e 78% dizem que "não se preocupam" com relatos de sofrimento palestino. Israel já se viu militarmente sobrecarregado no passado, como na ocupação do sul do Líbano entre 1982 e 2000. Enquanto as Forças de Defesa de Israel (IDF) se preparam para a próxima rodada de massacres e demolições na Cidade de Gaza, seu comandante soou o alarme sobre o esgotamento e o trauma das forças de reserva, agora mobilizadas no Líbano e na Síria, bem como na Cisjordânia e em Gaza. Mas, até agora, apenas alguns corajosos foram presos por se recusarem a servir por motivos políticos, e não pessoais. Nota de rodapé 11

A oposição popular americana à violência exterminista de Israel em Gaza não enfraqueceu o poder do lobby americano-israelense como máquina política, nem afrouxou o domínio do sionismo sobre os líderes políticos ocidentais. Biden não pôde defender diretamente os líderes israelenses dos mandados de prisão emitidos contra eles pelo Tribunal Penal Internacional em maio de 2024, nem das restrições impostas pelo Tribunal Internacional de Justiça em julho de 2024 sobre sua condução da guerra. Mas isso não impediu Netanyahu de receber cinquenta aplausos de pé do Congresso uma semana após a decisão da CIJ. Israel pode contar com um fluxo constante de munições americanas para a destruição de Gaza, apoiado por peças de reposição e voos de vigilância do Partido Trabalhista Britânico. O apoio da elite a Israel se estende aos campi da Ivy League, onde o ativismo pró-Palestina foi criminalizado, como na Alemanha, Reino Unido e França.

A integração das redes de inteligência do Mossad e da CIA tem sido crucial para a nova rodada de ofensivas israelenses. Sem a assistência dos EUA, é improvável que o Mossad pudesse ter penetrado na rede de comunicações do Hezbollah, permitindo-lhe eliminar Nasrallah e seus principais quadros. Nota de rodapé 12 A inteligência americana via satélite ajudou a guiar os bombardeiros da Força Aérea da Índia (IAF) que destruíram as defesas aéreas iranianas em outubro de 2024. Israel confiou nos EUA para fragmentar a Síria, coordenando a oposição cismática a Assad e canalizando fundos do Golfo para milícias étnicas, clãs e fundamentalistas sunitas apoiados pela Turquia, mesmo que Tel Aviv não tenha ficado muito satisfeita com o resultado. A inteligência americana estava claramente envolvida no planejamento israelense para a Operação Leão Ascendente; os negociadores nucleares iranianos foram manipulados pelos EUA, e o cronograma das negociações acabou fornecendo cobertura para o ataque das Forças de Defesa de Israel (IDF) a Teerã. O domínio israelense sobre a política americana para o Oriente Médio permanece tão forte quanto sempre.

A Guerra de Junho

Os líderes europeus começaram a hesitar quando as Forças de Defesa de Israel (IDF) começaram a atirar em moradores de Gaza famintos em filas de comida no início de junho de 2025. Mas assim que Israel lançou sua guerra contra o Irã — 200 caças visando centros políticos, campos de petróleo e infraestrutura, bem como instalações nucleares e militares, enquanto o Mossad tentava provocar deserções militares (nota de rodapé 13) — os europeus se apressaram em dar apoio a Trump. Na reunião do G7 em Alberta, três dias após o início da guerra, Macron, Meloni, Merz, Starmer, Carney e Ishiba repetiram os argumentos israelenses: "O Irã é a principal fonte de instabilidade e terror regionais" — "O Irã jamais poderá ter uma arma nuclear" — "Afirmamos que Israel tem o direito de se defender". A hipocrisia — enquanto Israel atacava Teerã, a milhares de quilômetros de distância, tentando abertamente derrubar o governo iraniano enquanto semeava instabilidade e terror nos Territórios Ocupados — fala por si.14

Quão fácil foi para Netanyahu e os falcões israelenses convencerem Trump a se juntar à guerra contra o Irã — o primeiro ataque militar direto dos EUA à República Islâmica? Obama já havia facilitado o caminho ao elaborar planos meticulosos para um ataque a Fordow, ordenando a construção de uma réplica do local no deserto americano para testar o Penetrador de Artilharia Maciça GBU-57.15 Em 13 de junho, Trump descreveu os ataques iniciais de Israel como uma "ação unilateral", mas indicou que havia dado sinal verde. De acordo com uma reportagem lisonjeira do Jerusalem Post, Netanyahu e Ron Dermer, seu interlocutor americano-israelense, conversavam com Trump quase todos os dias, impressionando-o, como Trump disse à mídia, com o sucesso de Israel. Esta era uma frase que Trump poderia usar com sua base de revistas avessas à guerra: o que poderia ser mais autenticamente americano do que o sucesso? Em 17 de junho, ele começou a postar animadamente: "Sabemos exatamente onde o chamado 'Líder Supremo' está escondido. Ele é um alvo fácil, mas está seguro lá — não vamos eliminá-lo (matá-lo!), pelo menos não por enquanto." Questionado no dia seguinte se os EUA se juntariam a Israel no ataque às instalações nucleares do Irã, ele respondeu: "Posso fazer isso. Posso não fazer isso. Ninguém sabe o que vou fazer." Se o Jerusalem Post estiver certo, isso era mentira. Ele já havia tomado a decisão; Netanyahu e Dermer sabiam, assim como todas as pessoas a quem haviam contado, e centenas de militares americanos. Mas foi uma mentira eficaz, pois alimentou a sensação de imprevisibilidade, o reinado da irracionalidade política, e ocultou com sucesso a vitória do interesse étnico-confessional.16

Depois que as bombas foram lançadas sobre o Irã, Trump se apressou em se distanciar de qualquer impressão de que havia sido enganado por Israel. Ele exigiu, rudemente, que o país respeitasse o cessar-fogo e concordasse que os EUA haviam "completa e totalmente destruído" instalações-chave de enriquecimento nuclear — o que significa que não havia mais casus belli. Com a sensibilidade de um subalterno às necessidades da Casa Branca, Netanyahu concordou e foi recompensado pelo apoio de Trump em seu caso de corrupção em andamento. Para Israel, porém, a Operação Leão em Ascensão foi, na melhor das hipóteses, um resultado misto. Apesar da conquista de Netanyahu em garantir um ataque americano, o regime de Khamenei não caiu; comandantes assassinados foram logo substituídos e iranianos furiosos se uniram à bandeira. Os mísseis de Teerã penetraram as defesas israelenses em vários pontos, destruindo estoques americanos. E o trabalho ainda estava por terminar. No dia seguinte ao anúncio do cessar-fogo por Trump, Netanyahu disse aos israelenses: "Precisamos completar a campanha contra o eixo iraniano" — "Com a destruição do eixo iraniano do mal, abriremos um caminho para a paz e a prosperidade para as nações da região, e eu lhes digo, até mesmo para além das nações da região." 17

Lógica do shatterbelt

Qual é esse caminho? Desde setembro de 2024, uma estratégia israelense para a região, que há muito tempo orienta operações secretas, começou a emergir abertamente. Ela foi resumida de forma mais sucinta há quarenta anos por um funcionário do Ministério das Relações Exteriores de Israel, escrevendo no periódico trimestral da Organização Sionista Mundial. O autor, Oded Yinon, um anticomunista violento, via o mundo árabe como um elo fraco na ordem internacional, mesmo que seu poderio militar constituísse uma ameaça presente. Seu sistema estatal era "um castelo de cartas temporário construído por estrangeiros", França e Grã-Bretanha na década de 1920, "sem que os desejos e vontades dos habitantes fossem levados em consideração", dividindo arbitrariamente a região em dezenove Estados, "todos feitos de combinações de minorias e grupos étnicos hostis entre si".18 No relato de Yinon, o Egito estava dividido entre uma maioria sunita e uma grande minoria cristã copta no sul. Na Síria, a minoria xiita alauíta no poder se opôs à maioria sunita, enquanto no Iraque, a minoria governante era sunita, a maioria xiita, com uma grande minoria curda no norte; ambos os países se mantinham unidos apenas por fortes regimes militares. O Líbano, devastado pela guerra civil, estava dividido entre maronitas e outros cristãos, o protetorado do Major Haddad, apoiado por Israel, e libaneses xiitas (Yinon os chamava de "majoritariamente palestinos") ao sul do rio Litani. Na Arábia Saudita, grande parte da população era estrangeira, iemenita ou egípcia. A Jordânia era "essencialmente palestina". No Irã, os persas constituíam uma pequena maioria (na verdade, 60%). Enquanto isso, o Sudão estava dividido entre os árabes sunitas no poder e uma mistura de africanos animistas e cristãos.

No entanto, essa situação "triste e tempestuosa" oferecia a Israel amplas possibilidades, prosseguiu Yinon. A divisão do Líbano em cinco províncias deveria servir de precedente para todo o mundo árabe. O principal objetivo de Israel na frente oriental deveria ser dividir o Iraque e a Síria, uma vez que seu poder militar fosse "dissolvido". A Síria poderia ser dividida em um pequeno estado xiita alauíta ao longo da costa, um pequeno estado sunita em Aleppo, drusos no sul e outro pequeno estado sunita em Damasco, hostil ao seu vizinho de Aleppo. O Iraque se dividiria em três partes, centradas em suas principais cidades, Basra, Bagdá e Mosul. A monarquia jordaniana deveria ser derrubada e o país entregue aos palestinos. O Egito deveria ser dividido, separando-se do sul copta, com Israel retomando o Sinai.

O grau de fantasia é evidente, e a sociologia amadora de Yinon estava equivocada em muitos pontos. Mais impressionante é a extensão em que seus sonhos se tornaram realidade. O Iraque foi dividido pela zona de exclusão aérea dos EUA sobre a região curda após 1991; A partir de 2003, Washington e, vergonhosamente, Teerã, mobilizaram grande parte do sul xiita contra a resistência liderada pelos sunitas à ocupação americana. Washington supervisionou a partição do Sudão em 2011. A Síria foi reduzida em 2015 aos pequenos estados que Yinon descreve, além de um enclave curdo ao norte e uma região petrolífera ocupada pelos EUA. Do ponto de vista israelense, a tentativa da Al-Nusra de unir o país após a derrubada de Assad é um retrocesso; daí o bombardeio da Força Aérea Islâmica (FAI) na Praça Ummayad, no centro de Damasco, em 16 de julho, como um aviso ao governo de Al-Sharaa para não tentar bloquear a tutela israelense da região drusa no sul. O novo presidente sírio considerou suas opções e cumpriu.

Essa estratégia de fragmentação coloca Israel frente a frente com a Turquia, criando mais dores de cabeça para os EUA; o Departamento de Estado já teve que intermediar um acordo entre eles, enquanto vozes na imprensa israelense insistem na cantonização total da Síria como forma de enfraquecer o controle de Erdoğan. O mesmo destino é previsto para o Irã: o Jerusalem Post pediu garantias de segurança para as regiões separatistas sunitas, curdas e balúchis. Como a Guerra dos Doze Dias deixou claro, Israel sozinho não tem capacidade para isso e ainda depende dos EUA para conseguir o que quer. A "rodovia" de Trump ao longo da fronteira Armênia-Irã representa uma nova e enorme presença americana na região, bem como um elo entre a Turquia e a porta dos fundos da China em Xinjiang. Será que Netanyahu conseguirá manobrar os EUA para "terminar o trabalho" no Irã? Ou o expansionismo israelense sofrerá outro revés frustrante, restringindo-se mais uma vez a operações secretas?

1 Frederick Dickinson, ‘The Japanese Empire’, em Robert Gerwarth e Erez Manela, orgs., Empires at War, 1911–1923, Oxford 2014, pp. 198–212.
2 Sobre o fundo de guerra, ver Adam Tooze, ‘Israel’s National Security Neoliberalism at Breaking Point?’, Chartbook, 6 de agosto de 2023.
3 Avi Shlaim, The Iron Wall: Israel and the Arab World, Nova York 2001, pp. 14–16.
4 Haim Bresheeth-Zabner, An Army Like No Other: How the Israel Defence Forces Made a Nation, Londres e Nova York 2020, p. 16.
5 Peter Novick, The Holocaust in American Life, Nova York 1999; Stephen Walt e John Mearsheimer, The Israel Lobby and us Foreign Policy, Nova York, 2007.
6 A integração das redes de inteligência do Mossad e da CIA foi acordada por Bush em 2008: Ronen Bergman e Mark Mazzetti, ‘Secret History of the Push to Strike Iran’, NYT, 4 de setembro de 2019.
7 Sobre o “vitorismo” na política americana, ver Zhang Yongle, ‘Reconfiguring Hegemony: Modes of Winning from Fukuyama to Trump’, nlr 153, maio-junho de 2025. Netanyahu já é primeiro-ministro há mais anos (dezoito) do que Ben Gurion (treze).
8 A escala do massacre de civis não é, em si, inédita; entre 2020 e 2022, as forças etíopes e seus aliados mataram centenas de milhares de tigrés na “operação policial” de Abiy Ahmed.
9 Ezra Klein, ‘Por que nós, judeus, não nos entendemos mais’, NYT, 20 de julho de 2025; Simone Zimmerman, ‘Retórica sem acerto de contas’, Jewish Currents, 22 de agosto de 2025; Laura Silver, ‘Como os americanos veem Israel’, Pew Research Center, 8 de abril de 2025; Megan Brenan, ‘32 por cento dos EUA apoiam a ação militar de Israel em Gaza, um novo recorde’, Gallup, 29 de julho de 2025
10 Thomas Friedman, ‘A campanha de Israel em Gaza está tornando-a um estado pária’, NYT, 25 de agosto de 2025.
11 Para as sondagens de opinião, ver Emma Graham-Harrison, ‘Israeli Protesters Stage “Day of Disruption” Calling for End to War in Gaza’, Guardian, 26 de agosto de 2025; Sobre reservistas das Forças de Defesa de Israel (IDF), veja Aaron Boxerman, ‘Israel’s Exhausted Soldiers Complicate Plans for Gaza Assault’, NYT, 28 de agosto de 2025.
12 Mehul Srivastava, James Shotter, Charles Clover e Raya Jalabi, ‘How Israeli Spies Penetrated Hizbollah’, FT, 29 de setembro de 2024.
13 Warren Strobel, Souad Mekhennet e Yeganeh Torbati, ‘Israeli Warning Call to Top Iranian General’, Washington Post, 23 de junho de 2025.
14 Primeiro-Ministro do Canadá, ‘G7 Leaders’ Statement on Recent Developments between Israel and Iran’, Kananaskis, Alberta, 16 de junho de 2025. Japão, China, Rússia, Brasil e África do Sul, juntamente com muitos outros países, condenaram os ataques israelenses.
15 Bergman e Mazzetti, ‘Secret History of the Push to Strike Iran’. A Agência Internacional de Energia Atômica divulgou um relatório na semana anterior ao lançamento do ataque de Israel, afirmando que o Irã estava violando suas obrigações no Tratado de Não Proliferação Nuclear — apenas para admitir, na semana seguinte, que não havia encontrado nenhuma prova de armamento: repórteres da ft, ‘Iranian Officials Hit Out at iaea’s Grossi’, ft, 19 de junho de 2025. O diretor-geral argentino da aiea, Rafael Grossi, não escondeu durante um almoço com o Financial Times (6 de junho de 2025) que estava de olho no cargo de diretor-geral da ONU.
16 Amichai Stein, ‘“Finish the Job”: How Netanyahu Convinced Trump to Strike Iran’s Nuclear Sites—Exclusive’, Jerusalem Post, 22 de junho de 2025; Equipe da Al-Jazeera, ““Ninguém sabe o que vou fazer”: Trump abraça a ambiguidade em relação ao Irã”, Al-Jazeera, 18 de junho de 2025. Para as postagens de Trump nas redes sociais durante a guerra, veja Marium Ali, “12 Posts from “12 Day War”: How Trump Live-Posted Israel–Iran Conflict”, Al-Jazeera, 25 de junho de 2025.
17 “Declaração do primeiro-ministro Netanyahu”, Ministério das Relações Exteriores de Israel, 24 de junho de 2025.
18 Oded Yinon, “A Strategy for Israel in the Nineteen Eighties”, Kivunim, n.º 14, inverno de 5742 [fevereiro de 1982]; uma tradução em inglês do texto por Israel Shahak, presidente da Liga Israelense para os Direitos Humanos e Civis e professor de química na Universidade Hebraica de Jerusalém, foi publicada logo depois no Journal of Palestine Studies.

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