O zurro do burro é necessário, ou poderia o burro cantar à perfeição uma ária operística só de agudos agudíssimos e continuar a ser burro? A questão é um dos aspectos do debate medieval entre realistas e nominalistas.
Terry Eagleton
Vol. 30 No. 18 · 25 September 2008 |
Accident: A Philosophical and Literary History
Ross Hamilton
Chicago, 342 pp., £18.00, February 2008, ISBN 978 0 226 31484 6
Tradução / Seria de surpreender se milhões de pessoas comuns se mostrassem familiarizadas com as Formas platônicas ou com a doutrina da natureza de Spinoza. Mas fato é que milhões de garçons, enfermeiros e caminhoneiros têm ideia operacional da distinção aristotélica entre substância e acidente. Isso porque somos Católicos Romanos, e o Concílio de Trento bebeu lições de Aristóteles para explicar como o pão e o vinho da eucaristia transmutam-se em corpo e sangue de Cristo embora continuem a ter aparência e sabor de pão e vinho. Nesse sentido, uma doutrina opaca foi obscurecida por outra.
Ross Hamilton inicia seu impressionante estudo do que é acidental, pela distinção aristotélica, e registra sua influência na teologia católica. Mas deixa passar sem anotar um aspecto teológico mais interessante do acidental: a doutrina da Criação. Essa doutrina nada tem a ver com como o mundo começou – que é questão do domínio da ciência. Tem a ver com a crença cristã, segundo a qual tudo, no mundo, depende, para existir, de haver Deus. Dado que Deus é pura liberdade, significa que é a fonte, em si, da capacidade, presente em tudo, para florescer como é. Mas, dado que a liberdade de Deus também significa que nada pode ser necessário em Deus, além da necessidade de ser verdadeiro ante sua natureza divina, pode-se concluir que Deus nunca precisou necessariamente criar mundo algum. Fez, porque lhe deu na telha. Nada, na Criação, tinha a ver com ele. Poderia ter-se deixado ficar, indolente, luxuriante, só ele, por toda a eternidade. Ter-se-ia poupado quantidade inacreditável de problemas.
Nesse sentido, o universo é um acidente. Não significa que Deus criou o mundo por engano ou erro, ou em momento de descuido ou distração. Significa simplesmente que, como a queda no valor de venda das casas ou a invasão do Iraque, a Criação não foi ato necessário. Nada há que não seja absolutamente contingente. Teologicamente falando, o mundo é acossado pelo escândalo: poderia jamais ter acontecido; essa evidência é especialmente óbvia, no caso das criaturas, nós, cuja existência é assombrada pela consciência de nossa mortalidade. Como disse Santo Agostinho, a existência é atravessada pelo nada, do começo ao fim. Assim sendo, o mundo é como uma obra de arte, posto que Deus o criou por amor, não por necessidade. Mais especificamente, é como obra de arte modernista, a qual, para fugir da má consciência, tem de encontrar alguma via oblíqua para fazer saber que sua existência é totalmente gratuita – que não tem fundamento ou justificativa racional e pode bem ser o caso de jamais ter tido.
Se o próprio mundo não é essencial, a inessencialidade aplica-se também aos conteúdos do mundo? São como são necessariamente, ou todos os conteúdos do mundo poderiam ser diferentes? O zurro do burro é necessário, ou poderia o burro cantar à perfeição uma ária operística só de agudos agudíssimos e continuar a ser burro?
A questão é um dos aspectos do debate medieval entre realistas e nominalistas. Realistas como Tomás de Aquino defendem que entidades gerais, como a natureza e as substâncias realmente existem. As coisas têm naturezas inerentes, que até Deus tem de respeitar. Deus não pode simplesmente se pôr a modificar o que criou, como mande a fantasia. Nem Deus pode, nem nós podemos. Há um ar de alteridade no que tenha a ver com o mundo, que impede que o mundo vire nossa propriedade privada. Nominalistas como Duns Scoto, por sua vez, entendiam que conceitos gerais, como a natureza, não passavam de ficção, e que pretender que as coisas tivessem natureza sua seria impor limites inaceitáveis à onipotência de Deus. Se Deus é para ser todo poderoso, nesse caso as coisas têm de ser o que são não em virtude de alguma necessidade interna, mas, exclusivamente, porque Deus diz que são o que sejam. Dois e dois, quatro, porque Deus decretou que sim, não simplesmente porque dá quatro. Se tivesse preferido, Deus teria feito o infanticídio admirável, e o perdão, repugnante. Talvez haja universos outros, nos quais tenha feito isso, exatamente.
Esse debate ainda nos acompanha, sob formato secularizado. Antiessencialistas pós-modernos afirmam que as coisas não têm naturezas determinadas além das que nós construamos. Os nominalistas receberam esse nome porque afirmam que ideias gerais não passam de nomes, ou de efeitos de linguagem; para os pós-modernistas, todo o mundo é efeito de linguagem, inclusive South Kensington e o intestino grosso. A realidade, para eles, não se dispõe espontaneamente em classes e subespécies. “Maconha” é uma categoria que inventamos, não é natureza.
Os pós-modernistas desconfiam da natureza, porque suspeitam que, se as coisas tivessem naturezas, dificilmente mudariam – o que não é necessariamente verdade. Preferem a noção de cultura, porque imaginam que o cultural mude mais facilmente que o natural – o que também não é necessariamente verdade. Por trás dessas duas crenças equivocadas jaz o pressuposto de que a mudança seria sempre positiva e de que a permanência seria sempre negativa – o que absolutamente não é verdade.
Seja qual for a opinião de uns e outros sobre tudo isso, os antiessencialistas da seita pós-moderna têm um problema, por menos que deem qualquer sinal de já terem percebido. O problema é que há, como se pode argumentar, uma via que leva, do nominalismo medieval, que quase todos aceitam, à razão do Iluminismo, que eles rejeitam. É provável que a ideia Iluminista de uma racionalidade instrumental que subjuga a natureza tenha algumas de suas raízes presas a Dun Scoto e seu pessoal. Pós-modernistas não gostam de naturezas fixas, mas tampouco gostam de racionalidade instrumental; e, historicamente falando, os dois casos sempre andaram firmemente conectados. Se Deus não é constrangido pelas essências das coisas, por que nos constrangeríamos nós? Podemos ser tão imperativos quanto ele. Despidas de suas substâncias, as coisas podem ser consideradas como argila em nossas mãos, a serem moldadas para nossas próprias finalidades e metas. A realidade converte-se em vasta cirurgia plástica para finalidades cosméticas. A plasticidade do mundo anda de mãos dadas com um culto à vontade que não baixa a crista, como se vê hoje na atual política exterior dos EUA. Voluntarismo e mutabilidade são lados da mesma moeda. O que cria outro problema para os pós-modernos, porque eles apreciam a mudança e a mutabilidade, mas não apreciam a vontade autônoma.
Hamilton nos lembra que, em Aristóteles, “acidente” significa aquelas propriedades de uma coisa que não lhe são essenciais. É da essência de Bruce Forsyth [2], como membro da espécie humana, que, mais dia menos dia não consiga levantar-se de uma poltrona, sem ajuda; mas não é da essência de Bruce Forsyth andar pela rua com a careca coberta por peruca ridícula. A classe social é atributo acidental para nós, mas não foi para muitos de nossos ancestrais.
Hamilton também destaca que, para Aristóteles, ‘acidental’ pode também significar raro, surpreendente ou imprevisível. O assassinato do presidente Kennedy foi, nesse sentido, acidental, embora nem a Comissão Warren, de lavagem de roupa suja, tenha tido coragem de declarar que teria sido acidental no sentido corriqueiro do termo. A morte da princesa Diana foi acidental, nos dois sentidos.
Essa reflexão tem algo a ver com a questão do realismo literário, embora esse não seja aspecto de interesse ao livro. Pode-se dizer que o realismo empurra o acidente para que sirva ao não acidental. Emprega frequentemente detalhes para criar o que Roland Barthes chama de “um efeito de realidade” e, ao fazê-lo, reforça um senso geral de necessidade. Retrato de uma Senhora [3] nos conta que Ralph Touchett acompanha Henrietta Stackpole para ver os quadros da longa galeria da casa de campo de seu (dele) pai, um dia depois de os dois terem andado de barco juntos; mas sabemos que poderia ter sido três dias depois, ou cinco. O tempo é especificado simplesmente para criar ares de realidade. Quer dizer, o detalhe é arbitrário e contingente nele mesmo, mas contribuiu para a solidez da narrativa como um todo, e, portanto, também para um senso de necessidade geral. Autor modernista que desejasse pôr a nu as artimanhas do efeito de realidade poderia dizer que não sabia quanto tempo transcorrera, ou diria “um dia” e, depois, se desmentiria. Ou pode-se elaborar sobre detalhes que flutuam livremente, com tal irônica laboriosidade que, no estilo de Flaubert, detalhes irrelevantes assumem proporções monstruosas e bloqueiam a visão do leitor, perfurando a narrativa, mais do que lhe emprestando credibilidade.
Hamilton destaca que a tragédia grega converteu o acidental, em necessário; mas pode-se dizer que exigiu muita arte, inclusive muita arte realista. Deve-se considerar que houve alguns efeitos ideológicos não desejáveis. Roubar do contingente para dar ao inevitável é estratagema que convém mais aos governantes que a nós, governados.
O senso popular de “realismo” sugere suportar sem reclamar algo sobre o que só se pode fazer pouco ou nada, mais ou menos como no caso do termo “filosófico” usado como se significasse “estóico”. Se se define um poema como “essas dadas palavras insubstituíveis, nessa dada sequência inalterável”, não haveria na definição uma sugestão de que haja uma relação necessária, ou icônica, entre a linguagem e a experiência, de tal modo que a experiência só possa ser transmitida desse um, único, determinado modo? E essa supressão de possibilidades alternativas, esse usar-sem-pagar entre significante e significado, não geraria um senso de fatalidade, mesmo onde não haja qualquer fatalidade? E se a poesia não for crítica da ideologia, mas (como Paul de Man suspeitava, dessa ideia de poética) paradigma da ideologia?
Brecht desafiou esse senso de trágica inevitabilidade nos gregos. “Os sofrimentos desse homem horrorizam-me”, disse ele, “porque não são necessários”. A arte existiria para permitir que o subjuntivo brilhasse através do indicativo – para sugerir, na própria representação de um evento, o quanto o mesmo evento poderia ter sido diferente, ou ainda pode ser.
Para Hegel, a necessidade era retrospectiva: olhando para trás, espiando cada um sobre o próprio ombro, para a história até aqui, podemos ver como nossas ações tiveram de ter o formato narrativo que tiveram, por mais livres que parecessem ser no passado, quando agimos. Pela astúcia da razão, até os maiores rolos e confusões, estupidezes e becos-sem-saída da história contribuem, na visão de Hegel, para a verdade do todo. Todos os nossos erros são frutíferos. Liberdade e necessidade não são antagonistas – o que é suficientemente óbvio na vida diária, onde não seríamos capazes de agir como agentes livres, sem alguma expectativa de que o mundo se comportará de modo, seja como for, confiável, regido por leis. Não pode haver liberdade, se o mundo não permanecer parado por tempo suficiente para que executemos nossos projetos. A ideia de alguma liberdade livre de todos os tipos de limitação é a mais radical fantasia burguesa.
Além do mais, nossas ações livremente escolhidas nos determinam em todos os pontos, fechando para sempre algumas possibilidades, ao tempo em que abrem outras. Por trás do senso de lógica histórica de Hegel, há a ideia da Providência, que não vive em conflito com nossa liberdade, porque é levada em conta desde o início.
É diferente da visão spinozista, para quem a liberdade é simples ignorância da necessidade, e da de Engels, para o qual é o conhecimento dela. Na visão de Hegel, ou providencialista, a liberdade é real que chegue; o que acontece é, só, que há outra maneira de recontar a história que mostra que, dado o modo como as pessoas escolhem em cada ponto da linha, tudo teria de acontecer como aconteceu. O fato de que somos todos personagens num roteiro impenetrável não significa, necessariamente, que não sejamos agentes livres. Para Tomás de Aquino, nossa dependência de Deus é fonte de nossa liberdade, não obstáculo que a impeça ou dificulte.
Accident: A Philosophical and Literary History é reflexão notavelmente versátil. A Divina Comédia, afrescos de Rafael, canibalismo em Montaigne, a aposta de Pascal, física newtoniana, jogo no século 18, persuasão, darwinismo, filme e fotografia surrealistas: tudo isso e muito mais é grão para o incansável moinho de Hamilton. O conceito de acidente leva a discussões sobre fortuna, ceticismo, identidade, improbabilidade, sorte, interpretação e uma legião de tópicos improváveis. Mas há momentos em que o objeto ameaça submergir sob o peso imponente da lição, para reaparecer de repente, quando já que supunha que se tivesse afogado sem deixar pista. Hamilton não presta toda a indispensável atenção ao roteiro. Há uma grande narrativa lutando para saltar de dentro desse estudo: a história do misterioso sumiço da substância.
O conceito de substância é boa ilustração do alerta que nos deixou Wittgenstein, de que nosso pensamento pode acabar cativo de uma imagem.
Como tantas dessas ameaçadoras imagens, a “substância” é imagem espacial. Literalmente, a palavra significa “aquilo que há por baixo”; portanto, a possibilidade de que a verdadeira natureza de uma coisa possa estar escondida, fora de vista, inacessível ao conhecimento, é parte integrante do modelo desde o início. Tomás de Aquino foi um dos poucos pensadores que escapou dessa arapuca. Para ele, “substância” era simplesmente a resposta a “o que é isto?”
Mas, conforme foi se desenrolando a história europeia, a substância foi se tornando uma espécie de ponto-secreto-mais-santificado-de-todos-os-pontos-santificados, the holy-of-holies, que parece não fazer qualquer diferença para coisa alguma. “Substância” seria o mero espectro, ou paródia, de uma entidade real, ao mesmo tempo inevitável e ilocalizável. Como o sexo para os vitorianos: está em todos os lugares sempre, mas ninguém vê.
O que conta como real para empiristas como Locke é o que podemos perceber, e a substância é imperceptível. Lógico, portanto, que o Bispo Berkeley, com uma penada, tenha abolido tal não-entidade, deixando-nos cá sem nada, além de nossas percepções (irlandeses jamais se entenderam bem com o empirismo inglês).
Em Kant, a substância torna-se o enigmático “noumenon”, do qual só se pode dizer que dele nada se pode dizer. É só um pequeno passo daí ao fenomenalismo de Nietzsche, para quem o modo como o mundo é modo-nenhum em particular, e a substância é simplesmente uma de uma série de ficções metafísicas que incluem agentes, atos mentais e o self.
Encontrar o self nessa lista é uma das razões pelas quais acabar com a substância não é tão simples como talvez pareça. Não se pode deixar simplesmente que caia da prateleira, porque há o risco de, em parte, nos descobrirmos deixando cair da prateleira nossa identidade pessoal. O self, afinal, é candidato óbvio àquela coisa fantasmal que persiste consistente e atravessa todos os múltiplos acidentes da experiência nossa, dando a eles um meio ao qual podem pertencer inerentemente. Não surpreende portanto que o pós-modernismo, que pega a história no pé em que a deixou Nietzsche e é, de fato, longa nota de rodapé àquela reflexão, erradique todas as naturezas dadas, indiferente ao risco de liquidar o sujeito humano.
O que Hamilton traça, embora não o diga em voz suficientemente alta, é o percurso da gradual ascensão do acidente sobre a substância. Para Santo Agostinho e Dante, o mundo é texto sagrado cujos signos aparentemente acidentais devem ser decifrados como revelações da divindade. Berkeley voltará com essa ideia, poucos séculos adiante. A hermenêutica converte o acaso em necessidade. Na visão de Hamilton, isso significa que, para Dante, nada pode ser acidental. Montaigne inclina-se à visão oposta, vendo a substância simplesmente como termo retórico que impede maior compreensão da experiência empírica. Para Pascal, o script do mundo é mutante e ambíguo, o que significa que todas as interpretações são, em algum grau, acidentais. Locke inverte a primazia tradicional da substância sobre o acidente. A ciência do Iluminismo é, num sentido, a volta à semiótica medieval: cada aparente acidente, cada pardal que cai do galho, pode ser explicado nos termos de algum todo necessário. E assim, noutro sentido, o acidente – que Aristóteles exclui do campo da pesquisa científica –, é hoje foco de pesquisa e investigação vitalmente importante para a geração do conhecimento-como-eletrodoméstico.
É o que se vê também na emergência da ficção realista, com seu senso de história como mutável e personagem mais mutantes que fixos. Propriedades externas eram então chaves para a alma, quando romancistas como Austen tornaram-se sensíveis intérpretes do acidental. Pensa-se em Mimesis [4], livro magistral de Erich Auerbach, que registra o triunfo literário do popular, do plebeu, do diário e corriqueiro, sobre o nobre, o mítico e o heróico. Esses últimos traços foram muito favorecidos pelo Fascismo, do qual Auerbach foi refugiado. Há, em suma, uma política do acidental, que tem muito a ver com a ascensão da sociedade de classe média, a democracia popular e a idéia da vida cotidiana. (O prestígio da vida comum, cotidiana, afirma Charles Taylor, foi política do cristianismo, mas foi preciso esperar pela inteligentsia francesa moderna, que a estabeleceu como objeto intelectual kosher).
Autores como Defoe e Richardson emergiram da fascinação infinita e ainda implume da classe média pelo bric-à-brac da própria existência – que Jean-François Lyotard descartou, certa vez, como seu “apetite pornográfico pelo real”. Em Tristram Shandy [5], o acidental cobra sua hilária vingança contra os conceitos racionalistas da necessidade. Romances, para garantir, devem ser mais que capítulos de acidentes, se se deseja que suas lições de moral cheguem aos lares. Se não se tomam Moll Flanders, Tom Jones e Clarissa Harlowe como algo mais que indivíduos aleatórios, corremos o risco de descartar suas histórias como sem importância geral, e, assim, como sem qualquer relevância para nós mesmos. Deve-se, em outras palavras, ler como nominalistas, não como realistas. Mas nem assim a lição de moral chegará aos lares, a menos que os personagens sejam dolorosa, penosamente detalhados e persuasivos. Essa é a tensão entre o geral e o particular que o realismo é obrigado a negociar o melhor que possa.
A pesada narrativa desse livro é pontuada com momentos do que Walter Benjamin poderia chamar de iluminação profana, eventos acidentais que conseguem representar até estranhas epifanias ou experiências de conversão. “O acidente”, escreve Hamilton, “ascendeu à proeminência como local de autotransformação”. Santo Agostinho abre ao acaso as epístolas de Paulo e sente a divina luz flutuar até seu coração; Montaigne cai do cavalo e sente a prazerosa sensação do ensaio geral da própria morte; Rousseau conhece um momento de iluminação espiritual, estendido, exausto, sob árvores; Giacometti é atropelado por um carro em Paris e vivencia momento de alegria. E há também os celebrados “spots of time” (aproximadamente “pontos de tempo”) [6] de Wordsworth, dos quais o livro oferece relação sensível. São todos os eventos nos quais, por um precioso instante, o acidente exterior e a substância interior fundem-se.
Accident lida com tudo isso e muito mais, com destreza e insight, embora seja livro que inspire mais admiração, que afeto. Inexplicavelmente elogiado por um colega como “bela e lucidamente escrito”, a arrevezada prosa acadêmica de Hamilton raramente serve bem ao próprio objeto. Mas não há dúvidas de que acertou um rico e original veio de pesquisa, ao qual oferece notáveis recursos intelectuais. Fica-se a pensar se a ideia do livro atingiu-o como raio acidental, ou se, ao contrário, colheu-o e cresceu nele por alguma necessidade implacável.