1 de abril de 2009

O triunfo da Liberdade?

Retomando sua definição clássica, "governo dos sem propriedade", Luciano Canfora reconstrói a história da democracia na Europa como uma história de derrotas sucessivas, com lições de Luís Napoleão sobre o uso do sufrágio como legitimação do governo oligárquico. Dylan Riley avalia uma notável polêmica histórica do filólogo italiano.

Dylan Riley


NLR 56 • Mar/Apr 2009

A derrota da democracia em Luciano Canfora

O estudo da democracia é geralmente deixado para cientistas políticos, sociólogos ou historiadores contemporâneos, para quem suas origens antigas constituem pouco mais do que um cenário pitoresco para a história de seu triunfo no século XX. Em seus relatos, seus polos centrais tendem a ser o Atlântico Norte: Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Quanto ao próprio termo, "democracia" é definida como um conjunto de procedimentos eleitorais e instituições representativas que legitimam o governo político. Dentro desse campo, há espaço para uma variedade de visões: a ala liberal da ortodoxia anseia por maior participação eleitoral, enquanto a direita teimosa se regozija com a apatia; mas ambas consideram um ciclo eleitoral regular uma condição mínima. Há também uma narrativa histórica comum: de origens modestas e proprietárias, a democracia foi expandida com sucesso para incorporar primeiro os trabalhadores, depois as mulheres. Associada à "liberdade", derrotou o fascismo na Europa e, após 1945, confrontou seu inimigo, o totalitarismo, no Leste Comunista. A partir de meados da década de 1970, uma terceira onda de democratização varreu as ditaduras da periferia sul da Europa — Grécia, Espanha, Portugal — antes de varrer a maior parte do mundo após 1989.

A obra "Democracia na Europa: Uma História de uma Ideologia", de Luciano Canfora, rompe com essa tradição em quase todos os aspectos — conceitual, geográfico e histórico. Nota de rodapé 1 O próprio Canfora não é um cientista político, mas um filólogo clássico, formado na Scuola Normale Superiore de Pisa na década de 1960; um intelectual ferozmente independente, originalmente do PCI e, mais recentemente, do PDCI, um dos pequenos grupos a emergir de seu colapso, pelo qual concorreu como candidato nas eleições parlamentares europeias em 1999. Em uma obra prolífica, seus escritos incluem estudos de Demóstenes e Tucídides, uma análise fundamental dos princípios narrativos da historiografia clássica, uma biografia impressionante de Júlio César e três livros sobre Togliatti, de quem ele continua sendo um grande admirador; sem falar de muitas reflexões sobre a política contemporânea. Entre suas habilidades, destaca-se o trabalho de detetive histórico e textual, que rendeu um conjunto de demonstrações notáveis ​​— entre elas, a de que Giovanni Gentile foi, ao contrário da lenda oficial, morto por ordem da liderança do PCI em 1944; que o célebre papiro atribuído ao geógrafo Artemidoro de Éfeso (séculos II a I a.C.) é quase certamente uma falsificação, provavelmente de um aventureiro grego do século XIX; que uma carta enviada em 1928 — supostamente por Ruggiero Grieco, membro da liderança do PCI no exílio — a Gramsci, que aguardava seu julgamento na prisão, foi uma provocação à polícia fascista. Longe de separar o rigor clássico do compromisso político, ele teorizou diretamente sua conexão. Sua obra mais recente, Filologia e libertà, dedica-se ao argumento de que, historicamente, a paixão pela verdade textual precisa sempre exigiu a rejeição da autoridade canonizada e uma independência de espírito que somente a liberdade de pensamento pode assegurar.

Democracia na Europa combina esses contextos em uma obra intrigante e altamente original. Conceitualmente, Cânfora rejeita categoricamente a visão padrão da democracia como um conjunto de instituições e procedimentos eleitorais. Endossando a visão de Norberto Bobbio de que "a essência da democracia é o igualitarismo", ele argumenta — um anátema para a perspectiva dominante — que ela "pode ​​se reafirmar dentro das mais diversas formas político-constitucionais". 2 Seguindo Aristóteles, Canfora passa a definir democracia como "a ascendência do demos", isto é, o governo das classes mais pobres, não proprietárias. 3 Com base nisso, ele propõe uma narrativa histórica dos destinos da democracia na Europa radicalmente em desacordo com as narrativas convencionais. Em vez de uma ampliação e aprofundamento progressivos, Canfora vê apenas breves momentos de avanço democrático localizado e imediatamente contestado, entre eles o início da década de 1790 na França, a década seguinte a 1917 na Alemanha e na Rússia — um ponto alto — e o final da década de 1940 na França e na Itália. Em grande parte, porém, a história de Canfora é sobre o fracasso da democracia, no seu sentido, e sobre como as elites governantes administraram a ameaça igualitária da ampliação do sufrágio para garantir sua própria liberdade de ação. O período pós-1950 é representado como um cenário político sombrio, com a erosão das aspirações democrático-igualitárias tanto na Europa Oriental quanto Ocidental, e o triunfo final do que Canfora chama de "sistema misto" — "um pouco de democracia e muita oligarquia", combinando "o princípio eleitoral" com a realidade da ascendência da classe burguesa — como a fórmula para o governo político contemporâneo.[4]

Geographically, too, Canfora reverses the standard argument. The people’s democratic republics of central and eastern Europe are given serious critical consideration as ‘experiments in democracy’.footnote5 Indeed, the western welfare-state system is seen as a pale imitation of the eastern model, and the collapse of the Soviet bloc as coterminous with the defeat of political egalitarianism. The United States is mentioned only for its role in stabilizing property systems on the European continent. Instead it is France that emerges as the political nation par excellence: birthplace of the idea of genuinely universal suffrage, and proving ground for the methods by which it would be neutered from 1850 on. French political history occupies the lion’s share of Canfora’s book.footnote6

Zeus’s all-seeing eye

Democracy in Europe is therefore a frontal attack on intellectual orthodoxy as well as continental self-esteem. Unsurprisingly, it has provoked strong reactions. The book was originally commissioned as part of a multi-national ‘Making of Europe’ series under the direction of the French historian, Jacques Le Goff, alongside Peter Burke’s European Renaissance, Jack Goody’s European Family, Charles Tilly’s European Revolutions and a string of other illustrious titles, all of which were to be produced across five languages by top-flight European publishers: Blackwell in Britain, Seuil in France, Crítica in Spain, Laterza in Italy and Beck in Germany. The editors at Beck, however, flatly refused to publish Canfora’s contribution, apparently on the basis of a scandalized reader’s report by the historian Hans-Ulrich Wehler, epitome of right-thinking, who declared it ‘nothing more than a Communist pamphlet, superseding in dogmatic stupidity even the products of the ddr’—an absurdity, given the book’s unremittingly heterodox approach.footnote7

Rather than a substantial engagement with his argument, however, Canfora’s German critics contented themselves with a series of misleading cavils designed to impugn the Italian’s intellectual integrity by tarring him with Stalinism. The most concrete charge is that Democracy in Europe provides an orthodox Soviet interpretation of the Molotov–Ribbentrop Pact. But as Canfora convincingly demonstrates in his pamphlet, L’occhio di Zeus, replying to critics, this is based on a wilful misreading. In fact, after analysing the Pact in the context of France and England’s refusal to join a tripartite alliance with the ussr against Hitler, Canfora goes on to link it to the nationalist involution of the Soviet experiment and discusses at some length the ‘trauma’ that it caused. It may be that his comparison of the Hitler–Stalin agreement to Roosevelt’s recognition of Vichy France, and to the cynical East–West partitioning of Europe agreed at Yalta, also served to irritate his German critics. But what is most striking about the latter’s overheated reaction is their complete failure to interrogate the work’s conception of democracy, its comparative architecture or its overall structural coherence. Democracy in Europe has thus had a peculiarly unbalanced reception: though generating a mass of commentary, its central theses remain virtually unanalysed. This is unfortunate, for Canfora’s historically well-grounded interpretation of democracy is a useful corrective to the standard view. The problems with his argument, meanwhile, touch on issues of central intellectual and political importance, not least for the left.

Admittedly, one obstacle to a full understanding of Canfora’s book is the organization of the text itself. Democracy in Europe pans from fifth-century Athens to Berlusconi’s Italy over some 250 dense, lively and polemical pages, combining historical account with interpretation, in a way that defies conventional comparative schemes. Some places and periods are treated in minute detail, others barely touched upon. After a fascinating philological analysis of the meaning of democracy in ancient Greece, the account moves to France, charting the course of universal suffrage from 1789 to the second Napoleon. Backtracking to 1815, Canfora next discusses the emergence of liberalism across Europe as a whole. He then returns to France, to follow the political developments of the Third Republic from the Commune to 1914, and the consolidation of liberal parliamentary regimes across Europe prior to World War One.

The period of 1914–45 is treated as a unitary whole—a thirty-year convulsion of the continent—within which Canfora analyses the crises of Belle Epoque parliamentarianism, the socialist and fascist responses to it, the Great War and the advent of the Soviet Union. After reconstructing the installation of the fascist regimes in Italy and Germany, Canfora addresses the ‘progressive’ and ‘people’s’ democracies—Italy and Czechoslovakia, pre-1948, as comparative cases—which, he argues, arose from a strategy of ‘antifascism’ in both parts of Europe. The historic defeat of this post-fascist ‘antifascism’ is signalled by De Gaulle’s declaration of the Fifth Republic, type case of the ‘mixed constitution’, in which ‘the “people” express their views but those who matter are the property-owning classes’.footnote8 In Canfora’s view, contemporary European governments are essentially oligarchic regimes decked out with electoral machinery, designed to legitimate elite rule while disqualifying anti-systemic minorities through executive privilege, majoritarian mechanisms—first-past-the-post systems, single-member constituencies, et cetera—control of the mass media and outright coercion. By the end of this vigorous, stimulating text, many readers may be suffering a sense of literary-historical whiplash.

People’s rule

An initial assessment must begin with the key term of Canfora’s analysis: democracy. What does he mean by it? Disconcertingly, his Prologue opens with a rousing evocation of the popular-dictatorial role of Garibaldi as revolutionary democrat, going on to note that, in the Greek political language of the Roman period, demokratia and its derivative, demokrator, could imply ‘rule over the people’. Thus, ‘Appian writes, of the conflict between Caesar and Pompey, that the two fought “vying for demokratia”’, while Sulla, Caesar’s predecessor as ruler of the Roman Republic, is described elsewhere as a demokrator—effectively, a dictator. The ‘uncomfortable closeness’ between the two terms, Canfora suggests, requires us to look beyond accepted doctrine and recall the elements of class that underlie political systems; kratos, he reminds us, denotes ‘the violent exercise of power’. In Athens, democracy was the term used by opponents of government by the demos ‘precisely with the aim of highlighting its violent character’ and the ‘excessive power exercised by the non-property-owning classes when democracy reigns’.footnote9 In his first chapter Canfora provides a striking reading of Pericles’s famous praise for the Athenian system in the Funeral Oration. Far from the complacency with which this is usually misquoted—not least in the Preamble to the 2003 draft European Constitution—Canfora sees a subtle distancing act in Thucydides’s account: Pericles explaining that, although the word ‘democracy’ was used to describe the administration of the city, as relating to the many, not the few, Athenian private life was, in fact, characterized by ‘freedom’. ‘We can reinterpret these words as much as we like’, Canfora concludes, ‘but the essential point is that Pericles is presenting “democracy” and “liberty” as antithetical.’footnote10

The fullest explicit discussion of the term comes in the book’s penultimate chapter, ‘Towards the “Mixed System”’. Canfora writes:


Democracy . . . is indeed an unstable phenomenon: the temporary ascendancy of the poorer classes in the course of an endless struggle for equality—a concept which itself widens with time to include ever newer, and ever more strongly challenged, ‘rights’.footnote11

For the Italian philologist, then, democracy is not a constitutional or political system, but a—historically, short-lived—shift in the distribution of social power: a ‘form of relations between classes’ that is ‘biased towards the “ascendancy of the demos”’.footnote12 Its basic aim is material equality. In a 2007 interview with the Tageszeitung, Canfora explained that his concept referred to the Aristotelian view: ‘Democracy is the rule [Herrschaft] of the propertyless, oligarchy the rule of the rich’.footnote13 The history of democracy therefore involves the study not of constitutional or political systems, but of moments of popular ascendancy, quickly absorbed by anti-democratic forces.

Paradoxically, the origins of this seemingly radical usage lie in the harshest critiques of the political form. Canfora’s account of democracy is deeply indebted to anti-egalitarian and anti-democratic thinkers. This is obvious enough from his initial discussion of the origins of the term among anti-democratic upper classes in classical Greece. But it is also strongly influenced by a specifically Italian tradition of elitist political theory, and particularly the work of Gaetano Mosca, ‘a great analyst of the forces at work in society’.footnote14 Like Mosca, Canfora sees contemporary democracy as largely a set of empty ideological claims. In his sense, liberal-capitalist societies are clearly anti-democratic because they are profoundly unequal, and their ‘democracy’ is essentially a political formula used to justify elite rule. I will argue that this definition of democracy as class equality, ‘the temporary ascendancy of the poorer classes’,footnote15 is based on a conflation of social and political power. But to see why, it is first necessary to look at the turning points of Democracy in Europe’s narrative in greater detail.

1789 and after

For Canfora, ‘the 1789 Revolution was the matrix that shaped the entire subsequent history of Europe’; but its consequences were far from straightforward.footnote16 The use of elections and parliaments as mechanisms of government would soon be separated from the substance of democracy as equality, and European regimes would harness universal suffrage, the classic technique of democracy, to legitimate elite rule. The concept of universal suffrage was first embodied in Robespierre’s Constitution of 1793, which did away with indirect voting and censitary conditions. (Canfora dismisses earlier English and American experiments with suffrage as limited by race or religion, in contrast to the abolition of slavery by the Jacobin Convention.) Thermidor immediately snuffed out this attempt. From then on, successive constitutions ‘contained severe restrictions on the right to vote’, until the Revolution of 1848.footnote17

The democratic breakthrough of 1848 had paradoxical results, however. The French election in April of that year, the first by universal suffrage in Europe, produced a ‘moderate’ Assembly that would attack workers’ living standards and drown their June uprising in blood. Louis Napoleon then swept to electoral victory in December 1848. Canfora provides an incisive definition of Bonapartism: ‘demagogic, seductive, almost irresistible class inclusiveness directed at the less politicized masses, yet at the same time firmly anchored in a relationship of mutual assistance with the property-owning classes’. He sees little difference between uncle and nephew: both are embodiments of reaction in ‘modern, pseudo-revolutionary forms’.footnote18

Louis Napoleon’s victory became a model for the rest of Europe. ‘The second emperor of the French’, writes Canfora, ‘taught bourgeois Europe not to fear universal suffrage but to tame it’.footnote19 To summarize: it was not the French Revolution that brought parliamentary rule to Europe, but the Revolution emasculated by Bonapartism. The key innovation of Louis Napoleon, according to Canfora, was to show how universal suffrage could be manipulated by boundary changes, majoritarian single-member constituencies, political pressure from prefects or governors, the help of the press and so forth, to ensure the election of local notables. Appropriately controlled, universal suffrage could become a useful support for propertied rule.

Canfora adduces a wide array of historical evidence to back this claim. First, where universal suffrage has existed, other mechanisms have always been in place to ensure that powerful working classes could not threaten the established order by changing political personnel through the ballot box. Coercion was one means: in France, the ruthless elimination of the Paris Commune. In pre-1914 Germany, militarist hegemony—the effects of the drill—and the restricted power of parliament made outright repression less necessary. In Italy or the United Kingdom, where relatively powerful parliaments co-existed with organized working-class movements, electoral corruption and restricted suffrage, or an undemocratic majoritarian system, lasted well into the twentieth century.

The establishment of electoral representation, then, far from indicating a shift of power towards the poorer classes, is perhaps the surest sign that such a shift has not occurred. This is underlined by a consideration of the rulers who granted suffrage: Bismarck in Germany, Giolitti in Italy—where the extension of the vote served to shore up a weak and isolated political class—and, though not discussed here, Disraeli in Britain. All these figures seem to fit the Bonapartist pattern of a ‘strong leader’ supported by electoral consensus. They granted universal suffrage for—in Canfora’s sense—clearly undemocratic ends.

The next stage of the analysis focuses on the 1914–45 period of the ‘European Civil War’, interpreted as a three-way struggle between socialism, fascism and a ‘third element’, liberal democracy. Canfora places responsibility for the outbreak of the First World War firmly on the latter: ‘Since the governments that clashed in that memorable August were all parliamentary, it can be confidently asserted that the “third element” has the dubious but considerable distinction of having sparked off the hell of the twentieth century.’footnote20 The Great War would bring what Canfora terms the ‘second failure of universal suffrage’; but its immediate aftermath saw Italy hold its first effective universal-suffrage elections in December 1918, while Germany elected a new constituent assembly in January 1919.

Rather than producing real democracy, however—bringing the propertyless to power—universal suffrage in both cases ended in fascism: ‘the classes that supported the parties in government’ gradually ‘lost faith in “parliamentary democracy”, and chose fascism instead.’footnote21 This re-emergence of the Bonapartist formula, more murderous now than ever, had far-reaching consequences. Not only did it crush the movements for substantive democracy in Germany, Italy and Spain; Canfora argues that the pressures it brought on the Soviet Union—where constituent-assembly elections had been held in November 1917, and which had initially pioneered a form of multi-party soviet democracy—twisted that country’s development as well, with the moral and material complicity of the remaining Western liberal democracies.

An important role in the eventual outcome of the ‘European Civil War’ is played by what Canfora calls ‘antifascism’. He sees this as a political movement that sought to go beyond the old parliamentary regimes and to redress the failings of liberalism, which had ‘given birth to fascism in the first place’.footnote22 Antifascism was therefore also a struggle for substantive democracy in Europe, which would produce both the welfare states and the people’s democracies of the post-war period. Canfora argues that the Soviet example played an important part in this: the ‘antifascist’ constitutions of Italy (1948) and Germany (1949) are said to have incorporated elements from the 1936 Soviet constitution—formally a model juridical construct, however travestied by the purges and show trials coeval with it. Thus Article Three of the Italian Constitution instructs the Republic to remove all ‘economic and social obstacles that, limiting the actual liberty and equality of citizens, impede the full development of the human individual and the effective participation of all workers in the economic, political and social organization of the country.’ In addition, antifascism’s role in liberating the countries of central and eastern Europe ensured, Canfora argues, that their post-war governments had a degree of real mass support.

The moment of ‘antifascist democracy’ also proved short-lived; it would soon be beaten back by the consolidation of the ‘mixed system’. The model for this form of rule was De Gaulle’s Fifth Republic, whose important innovation was the reintroduction of a majoritarian system, designed to eliminate the pcf as a viable political alternative. By the end of the twentieth century, the mixed system had undermined progressive democracies across the continent. It strengthened the executive, undermined proportional representation and selected politicians according to criteria of wealth, to ensure the rule of oligarchies unaccountable to legislative control. Democracy in its European homelands has thus been reduced to the electoral legitimation of elites. As Canfora writes:


The postscript has been the victory—and it promises to be a lasting one—of what the Greeks called the ‘mixed constitution’, in which the ‘people’ express their views but those who matter are the property-owning classes. In more modern terms, it is the victory of a dynamic oligarchy that is centred on great wealth but capable of building consensus and securing legitimacy through elections, because it keeps the electoral mechanisms under its control.footnote23

The result has been the defeat of democracy in the substantive sense by its antithesis, in Pericles’s terms: freedom. Not freedom for all, of course, ‘but for those who are “strongest” in competition, be they nations, regions or individuals’—for ‘every obligation that favours the less “strong” is precisely a limitation on the freedom of others’.footnote24 In citing the Funeral Oration, the drafters of the European Constitution’s Preamble had inadvertently uttered ‘not a piece of edifying rhetoric but rather what truly needed to be said: that freedom has won—in the rich world—with all the terrible consequences this has, and will continue to have, for the rest’.footnote25 Postponed to some future era, democracy will be invented all over again—though perhaps not, Canfora adds, by Europeans.

Class and party

Such is the main argument of Democracy in Europe. How should it be evaluated? One of the strengths of its perspective is the way that it can account for the ebbing of substantive democracy conjointly with the spread of electoral representation—a conundrum to which standard political-science studies have provided no definitive answer. Canfora’s scathing description of the electoral oligarchy of the ‘mixed system’ is a bracing corrective to self-celebratory European accounts. His analysis of the post-war role of ‘antifascism’ is a useful reminder of the egalitarian aspirations at stake in the construction of the welfare state, and his discussion of the tortured history of universal suffrage, above all in France, is never less than compelling. Yet there are some important conceptual problems with his account. As I indicated above, Canfora’s definition of democracy as the rule of the propertyless is based on a conflation of social and political power, and thus tends to de-emphasize the specificity of both. Aristotle, to whose authority Canfora often appeals, seems to have been much clearer about this. For Aristotle, democracy is a political regime in which the status of citizenship is shared across classes; it does not depend on the elimination of class differences, but rather on the construction of a political status that is independent of them.

Canfora’s notion of democracy implicitly conceives of the demos as a monolithic body; hence a single leader—Garibaldi—can be the expression of its political will. Yet the propertyless, not excluding small property holders, come from numerous different sectoral, geographical, cultural and ethnic backgrounds and experiences, and have historically built a range of political parties to articulate their needs. Even the most benighted people’s democratic republic recognized the need for a tame peasants’ party, alongside the ruling Communists. Yet the role of parties is a notable absence in Democracy in Europe. Strangely, too, Canfora shows little interest in the novel forms thrown up by moments of proto-socialist democracy: the improvisations of the Paris Commune, where judges and police chiefs were directly elected and recallable; the multi-party soviets in the early days of Bolshevik power.

While Canfora’s insistence on the many parallels in developments on both sides of the Iron Curtain may be salutary, there were important differences in the political experience of the two parts of the continent that are not given adequate recognition here. Taking Czechoslovakia and Italy as his paradigms, Canfora sees both imperial powers, Washington and Moscow, using a mix of material aid and the threat of force to establish friendly political regimes in their zones of influence, in the immediate post-war period. Here, he argues,


there was an implied principle that was a logical corollary of the division into spheres of influence. This ran as follows: elections will be held as soon as possible, to give representative governments to the countries involved; in any case, if the division into areas has any sense, the elections will be won by the parties that are sympathetic to the power with hegemony in that area.footnote26

The processes by which Klement Gottwald in Czechoslovakia and Alcide De Gasperi in Italy came to power were fundamentally similar. Both won relatively free elections in 1946, Gottwald’s ksc receiving a plurality of 38 per cent, while De Gasperi’s Christian Democrats won 35 per cent (compared to a combined 39 per cent for the pci and Socialists). Both won again in 1948, in contests that were far more compromised. In Czechoslovakia, Canfora singles out the food aid received from the Soviet Union (in competition with the Marshall Plan), which raised the prestige of the Communists after the political battles of February 1948 and resignation of the non-Communist parties, and the manipulated elections four months later, ‘openly geared to produce a unanimous result’. Canfora considers that the Communists’ victory was validated by their undoubted support among the working class, a real mass base if not a majority of the electorate; nevertheless, the decision by the ksc—and, initially, its allies—to ‘force the electoral mechanism in such a way as to “preventively construct” an election victory’ was not, at that point, ‘something they were obliged to do’.footnote27 In Italy the Marshall Plan was, of course, used as a political tool to increase the prestige of the Christian Democrats. Recent documents have shown that the Americans were quite prepared to intervene in the event of a Communist victory at the polls in 1948: a cia report detailed contingency plans in which Italy would be partitioned and a guerrilla war unleashed.

The similarities are suggestive. Both countries were under the influence of an imperial power, which presented itself as a liberator. Yet there are fundamental differences between the two that Canfora does not acknowledge openly enough. Unlike the opposition to Gottwald, the pci maintained a massive organizational presence throughout the post-war period, however harried and vilified it was. No organized opposition on this scale was ever permitted in Czechoslovakia, or any other part of state-socialist Eastern Europe—one reason why de-Stalinization took shape not as political pluralism but as reform within existing Communist parties. The second point, obviously, is that the central and eastern European regimes lacked any electoral legitimation. In Italy, regular elections did occur, and Italians could at least express dissatisfaction with their rulers, even if the largest party, the pci, was effectively banned from taking power. To acknowledge this fact is crucial for any understanding of the contrasting political outcomes in Europe’s two Cold War wings. Canfora recognizes this point obliquely, writing that a ‘long-term weakness’ of the people’s democracies was the conviction that popular endorsement, once achieved, ‘was valid for an indefinite period, and that there was no need for the periodic checks and renewals of legitimacy so skilfully carried out in the West’—‘it was believed that social programmes would consolidate regimes. This clearly did not happen’.footnote28 And again, in his analysis of Titoism and the break-up of Yugoslavia:


The bitter, almost suicidal nature of the clash was, among other things, one of the consequences of the vision that sustained the birth of ‘people’s democracies’: that consensus is obtained once and for all, that the consensus that matters is that of the ‘politically active mass’—and that, in any case, it is valid for an entire historical phase.footnote29

He does not comment on the relative scarcity of nationalist mobilizations in Western Europe over the same period, those that did occur being largely confined to the Atlantic and Mediterranean fringe. Yet it is at least plausible to suggest that the transcendence of such conflicts was closely connected to the triumph of electoral democracy in that zone. Thus, while Canfora’s comparison effectively evokes a certain kind of parallel between East and West, his conception of democracy as representing an egalitarian shift in the distribution of class power may prevent him from grasping the political specificity of each experience. The strength of the political orders of the advanced-capitalist West, and the peaceful character of their inter-state relations, is inextricably linked to the fact that, in contrast to the East, elections—however ‘managed’ or ‘manipulated’—legitimate their political elites. No rethinking of democracy, however radical and heterodox, should obscure this basic fact and the fateful consequences that flow from it.

Swindle laws

What of Canfora’s critique of electoral ‘manipulation’—principally focused on majoritarian voting systems—and ‘management’, largely laid at the door of the mass media? The latter charge is familiar enough. Canfora argues that consolidated media ownership distorts the political field and helps to form a de-politicized and easily led electorate, not necessarily through explicit propaganda but through an omnipresent consumerism and the worship of wealth. The ‘genius and irresistibility’ of this new method of ‘opinion forming’, he writes, ‘lie in the fact that it never manifests itself in a directly political way’.footnote30 One does not have to be familiar with television in Berlusconi’s Italy to sympathize with this argument. Turning to electoral ‘manipulation’, Democracy in Europe mounts a sustained attack against the first-past-the-post system, to which Canfora ascribes the ascendancy of the Tories in England, the destruction of the Socialists under the Fascist regime in Italy, and the elimination of the Communists under De Gaulle. Majoritarian electoral rules, he argues, are inherently biased toward the parties of the establishment and easily subject to corruption; first-past-the-post systems have long been linked to powerful landed classes and restricted suffrage; proportional representation was a central demand of European Social Democracy, and right-wing forces abolished it where they could. This is particularly clear in the history of Canfora’s country; many of Italy’s stormiest political conflicts have pitted Right against Left over precisely this issue. One need only recall the importance of the 1924 Acerbo law for consolidating Mussolini’s control, or De Gasperi’s failed attempt to institute a majoritarian system through the legge truffa—‘swindle law’—of the early 1950s. Although one could point to the occasional counter-example—the victory of the Left in Spain in 1936, for instance—there is no doubt that first-past-the-post regimes have historically favoured conservative forces.

For Canfora, majoritarianism not only produces skewed representation but introduces a further, political restriction of suffrage: instead of ‘one man, one vote’, it creates the categories of ‘useful’ versus ‘wasted’ votes, consigning the latter to oblivion. Ultimately, this leads to the atrophy of political forces outside a central, two-party consensus. Canfora scathingly outlines the ways in which the French Communist Party has become ‘an annex’ of the Socialists under the Fifth Republic’s two-round electoral system, condemning pcf voters to ‘servant status’; they would soon choose ‘either to vote directly for the party that would benefit from their votes anyway, or not to vote at all.’footnote31

Yet there is a contradiction between Canfora’s definition of democracy as the ascendancy of the demos, entailing a degree of egalitarian unity, and his argument for pr, which he defends on grounds of pluralism and the quality of political culture. Thus: ‘the “fragmentation” of political groupings is not a disease: it is a natural process, and can be enriching’.footnote32 Canfora’s attack on majoritarian mechanisms implies that political systems should represent, as closely as possible, the real structure of their underlying societies; in that sense, then, democracy would reflect inequalities, rather than—as his concept demands—necessarily transcending them. Indeed, Canfora’s emphasis on electoral processes and the power of the media suggests a further problem at the heart of his critique, at least if we are to take egalitarianism seriously. For the argument that systemic electoral manipulation is the central political ill of advanced capitalist democracies leads to the obvious corollary that effective, undistorted universal suffrage with proportional representation would in itself have revolutionary implications. Indeed this seems to be Canfora’s view when he writes, glossing Marx’s analysis in The Class Struggles in France, of a vision of ‘the intrinsically destructive effects of universal suffrage’, which ‘continually calls into question the state’s “present” power and presents itself as the sole source of authority and power.’footnote33

State forms

The implication is clear. Universal suffrage, if only allowed effectively and freely to operate, would eliminate the state. Pace Althusser, in this respect at least, the very youthful Marx is a better guide than the middle-aged one. For Marx, with great prescience and precision, had already identified the central problem of parliamentary democracy in On the Jewish Question as the separation of ‘bourgeois and citoyen’—‘the member of civil society and his political lion skin’: in other words, the structural separation of political life from social life in general.footnote34 Only from this perspective does it become clear that the act of voting itself, as an isolated individual expression of preference, far from ‘questioning’ state power, re-affirms the very separation between the political and economic spheres that is at its base. To recognize this leads beyond the question of electoral manipulation.

What explains Canfora’s tendency to elide the difference between East and West, and the related limitation of his critique of Western parliamentary institutions? Two main reasons suggest themselves: one intellectual and cultural, and the other political. Canfora’s conception of democracy as the ascendancy of the poorer classes is based on an elision of the difference between political and social power that is deeply rooted in Italian political culture. Indeed one might argue that a characteristic feature of the Italian tradition of social theory is its lack of a robust conception of social structure, or of political economy, as distinct from political rule. The historical reasons for this are obvious enough, since wealth and political power are probably more closely fused in Italy than in any other advanced capitalist society. In this context the problem of democracy appears inseparable from broader questions of inequality. But there are also more specifically political reasons for the shortcomings of Canfora’s analysis. For Democracy in Europe exemplifies an impasse that the left has never been able adequately to overcome. The problem could be put like this. Any society beyond capitalism would have to build upon the historic achievement of parliamentary democracy in Western Europe, and yet would require a fundamental institutional break with pre-existing state forms that could not take an exclusively electoral form.

Canfora’s approach obscures this painful dilemma in what would once have been called Eurocommunist fashion. For by defining the struggle for democracy as a struggle for social equality, he avoids directly confronting the question of their relationship. From this point of view, the main task of socialism is to fulfill and extend democracy: to create, in Togliatti’s phrase, a ‘progressive democracy’.footnote35 (Indeed Canfora has warm praise for Togliatti’s restraining influence on the Italian Resistance, at the behest of the Allied coalition; analogously he blames mir ‘extremism’ in Chile for Allende’s overthrow.footnote36) Of course, the creation of a new and better type of democracy in contemporary Italy, and the rest of the world, would be a laudable enterprise. But for this also to be an egalitarian system would require a new state form, not just a parliamentary regime pruned of corruption and provided with a fair electoral system. The struggle for basic legality is a necessary one, but it should not define the strategic horizon of political transformation. ‘Democracy’ itself is an empty signifier, and has progressive (or conservative) meaning only if linked to a coherent social and economic project. To define it solely in terms of the ‘endless struggle for equality’footnote37 is to obscure its intrinsic political polyvalence. ‘Democracy Now’ is a slogan that should be treated with great caution.
1 Luciano Canfora, Democracy in Europe: A History of an Ideology, Oxford 2006. Henceforth, de.
2 de, pp. 228, 250.
3 de, p. 250.
4 de, p. 216.
5 de, p. 188.
6 The absence of the United States may also be a consequence of the European focus of the series.
7 Quoted in Canfora, L’occhio di Zeus: Disavventure della ‘Democrazia’, Bari 2006, p. 15.
8 de, p. 227.
9 Respectively, de, pp. 5, 8, 22.
10 de, p. 8.
11 de, p. 228.
12 de, p. 250.
13 Thus for Canfora democracy is a form of rule, or dominion, ‘not a form of government [Regierungsform] or a type of constitution [Verfassungstyp]’. Interview with Ulrich Gutmair, Tageszeitung, 15 December 2007.
14 de, p. 228.
15 de, p. 228.
16 de, p. 20.
17 de, p. 67.
18 de, pp. 81–2.
19 de, p. 101.
20 de, p. 157.
21 de, p. 158.
22 de, p. 174.
23 de, p. 227.
24 de, p. 251.
25 de, pp. 251–2.
26 de, p. 187.
27 de, pp. 195–6.
28 de, p. 188.
29 de, p. 197.
30 de, pp. 225–6.
31 de, p. 216.
32 de, p. 219.
33 de, p. 92.
34 Karl Marx, Early Writings, London 1974, p. 221.
35 Togliatti never gave more than a vague definition of this concept. A typical formulation was the one offered in a 1944 speech in Rome: ‘Progressive democracy is that which looks not toward the past but towards the future.’ See the discussion of Aldo Agosti in Togliatti: Un uomo di frontiera, Rome 2003, pp. 287–9.
36 de, pp. 191, 165.37 de, p. 228.

O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história

O feminismo e o neoliberalismo compartilham uma afinidade secreta? Nancy Fraser sobre a cooptação da política de gênero pelo “novo espírito” do capitalismo pós-fordista e a subordinação de sua crítica radical a uma agenda do Banco Mundial. Uma mudança neokeynesiana pode oferecer perspectivas para a renovação feminista socialista?

Nancy Fraser

New Left Review


Tradução / Gostaria de voltar o olhar para a segunda onda do feminismo. Não a uma ou outra corrente ativista, nem a esta ou aquela tendência de teorização feminista; tampouco a uma ou outra fatia geográfica do movimento, nem a um determinado estrato sociológico de mulheres. Quero, ao contrário, tentar analisar a segunda onda do feminismo no seu conjunto, como um monumental fenômeno social que marcou uma época. Recordando quase quarenta anos de ativismo feminista, quero arriscar uma avaliação geral da trajetória e da importância histórica do movimento. Espero também que olhar para trás nos ajude a olhar para o futuro. Reconstruindo o caminho percorrido, espero lançar luz sobre os desafios que enfrentamos hoje – em uma época de forte crise econômica, incerteza social e realinhamento político[3].

Vou, portanto, falar sobre os amplos contornos e o significado geral da segunda onda do feminismo. Narrativa histórica e análise sócio-teórica em partes iguais, meu relato gira em torno de três pontos sucessivos, cada um dos quais situa a segunda onda do feminismo em relação a um momento específico da história do capitalismo. O primeiro ponto se refere aos primórdios do movimento no contexto que denominarei “capitalismo organizado pelo Estado”. Neste artigo, me proponho a rastrear o surgimento da segunda onda do feminismo a partir da nova esquerda antiimperialista, como um questionamento radical ao androcentrismo que permeia as sociedades capitalistas lideradas pelo Estado no pós-guerra. Conceituando esta fase, identificarei a promessa emancipatória fundamental do movimento com seu sentimento expandido de injustiça e sua crítica estrutural da sociedade. O segundo ponto se refere ao processo da evolução do feminismo no contexto social drasticamente mudado do crescente neoliberalismo. A este respeito, proponho não apenas traçar os sucessos extraordinários do movimento, mas também a perturbadora convergência de alguns de seus ideais com as exigências de uma nova forma emergente do capitalismo: pós-fordista, “desorganizada”, transnacional. Ao conceituar esta fase, perguntarei se a segunda onda do feminismo forneceu inconscientemente um ingrediente fundamental do que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005) chamam de “o novo espírito do capitalismo”. O terceiro ponto faz referência a uma possível reorientação do feminismo no atual contexto de crise capitalista e realinhamento político estadunidense, que poderia marcar os primórdios do neoliberalismo a uma nova forma de organização social. A este respeito, proponho examinar as perspectivas para reativar a promessa emancipatória do feminismo em um mundo que foi golpeado pelas crises gêmeas do capital financeiro e da hegemonia dos Estados Unidos, e que agora espera o desdobramento da presidência de Barack Obama.

Em geral, portanto, proponho situar a trajetória da segunda onda feminista em relação à recente história do capitalismo. Deste modo, espero ajudar a recuperar a teorização feminista socialista que me inspirou pela primeira vez há décadas e que ainda parece oferecer nossa melhor esperança para esclarecer as perspectivas de justiça de gênero na atualidade. Entretanto, meu objetivo não é reciclar teorias de sistemas duais obsoletos, mas, ao contrário, integrar o melhor das recentes teorias feministas com o melhor das recentes teorias críticas do capitalismo.

Para esclarecer a lógica atrás desta abordagem, deixe-me explicar meu descontentamento com o que talvez seja a visão mais amplamente mantida da segunda onda do feminismo. É dito frequentemente que o sucesso relativo do movimento em transformar cultura permanece em nítido contraste com seu relativo fracasso para transformar instituições. Esta avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais feministas de igualdade de gênero, tão controversos nas décadas anteriores, agora se acomodam diretamente no mainstream social; por outro lado, eles ainda têm que ser compreendidos na prática. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas. E, assim, frequentemente se argumenta: a segunda onda do feminismo tem provocado uma notável revolução cultural, mas a vasta mudança nas mentalités (contudo) não tem se transformado em mudança estrutural, institucional.

Há algo a ser dito a respeito desta visão, que acertadamente registra a ampla aceitação de hoje das ideias feministas. Mas a tese de “falha institucional com sucesso cultural” não ajuda muito a iluminar a significação histórica e as futuras perspectivas da segunda onda do feminismo. Postular que as instituições ficaram defasadas em relação à cultura, como se uma pudesse mudar enquanto a outra não, sugere que apenas precisamos fazer a primeira alcançar a última a fim de tornar reais as esperanças feministas. O efeito é obscurecer uma possibilidade mais complexa, perturbadora: que a difusão de atitudes culturais nascidas da segunda onda foi parte integrante de outra transformação social, inesperada e não intencional pelas ativistas feministas – uma transformação na organização social do capitalismo do pós-guerra. Esta possibilidade pode ser formulada mais nitidamente: as mudanças culturais impulsionadas pela segunda onda, saudáveis em si próprias, serviram para legitimar uma transformação estrutural da sociedade capitalista que avança diretamente contra as visões feministas de uma sociedade justa.

Neste ensaio, meu objetivo é explorar esta possibilidade perturbadora. Minha hipótese pode ser declarada assim: o que foi verdadeiramente novo sobre a segunda onda foi o modo pelo qual ela entrelaçou, em uma crítica ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado, três dimensões analiticamente distintas de injustiça de gênero: econômica, cultural e política. Sujeitando o capitalismo organizado pelo Estado a um exame multifacetado e abrangente no qual essas três perspectivas se misturaram livremente, as feministas geraram uma crítica que foi simultaneamente ramificada e sistemática. Porém, nas décadas seguintes, as três dimensões de injustiça tornaram-se separadas, tanto entre si, quanto da crítica ao capitalismo. Com a fragmentação da crítica feminista vieram a incorporação seletiva e a recuperação parcial de algumas de suas tendências. Separadas umas das outras e da crítica social que as tinha integrado, as esperanças da segunda onda foram recrutadas a serviço de um projeto que estava profundamente em conflito com a nossa ampla visão holística de uma sociedade justa. Em um bom exemplo da perspicácia da história, desejos utópicos acharam uma segunda vida como correntes de sentimento que legitimaram a transição para uma nova forma de capitalismo: pós-fordista, transnacional, neoliberal.

No que se segue, proponho elaborar esta hipótese em três etapas, as quais correspondem aos três pontos do esquema mencionado anteriormente. Em uma primeira etapa, reconstruirei a crítica da segunda onda feminista ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado em relação à integração com as três perspectivas sobre justiça – redistribuição, reconhecimento e representação. Em uma segunda etapa, esboçarei a desintegração desta constelação e o recrutamento seletivo de algumas de suas tendências para legitimar o capitalismo neoliberal. Em uma terceira etapa, esboçarei as perspectivas para recuperar a promessa emancipatória do feminismo no presente momento de crise econômica e abertura política.

O feminismo e o capitalismo organizado pelo Estado

Permitam-me começar situando o surgimento da segunda onda do feminismo no contexto do capitalismo organizado pelo Estado. Por “capitalismo organizado pelo Estado”, quero dizer a formação social hegemônica na era do pós-guerra, uma formação social na qual os estados exerceram um papel ativo em conduzir as suas economias nacionais4. Estamos mais familiarizados com a forma tomada pelo capitalismo organizado pelo Estado nos Estados de Bem-estar Social do que foi então chamado de Primeiro Mundo, que usou ferramentas Keynesianas para suavizar os ciclos de crescimento e queda endêmicos ao capitalismo. Baseando-se nas experiências da Depressão e planejamento de tempos de guerra, estes Estados implementaram várias formas de dirigismo, incluindo investimento infra-estrutural, política industrial, tributação redistributiva, provisão social, regulamento empresarial, nacionalização de algumas indústrias-chave e desmercantilização de bens públicos. Embora fossem os mais ricos e poderosos Estados da OCDE5 que eram capazes de “organizar” o capitalismo com mais êxito nas décadas posteriores a 1945, uma variante do capitalismo organizado pelo Estado poderia também ser encontrada no que foi então denominado o Terceiro Mundo. Em ex-colônias empobrecidas, os “Estados desenvolvimentistas” recém independentes buscaram usar suas capacidades mais limitadas para iniciar o crescimento econômico nacional por meio de políticas de substituição de importação, investimento infra-estrutural, nacionalização de indústrias-chave e gastos públicos em educação.6

Em geral, então, utilizo esta expressão para referir aos Estados de Bem-estar Social da OCDE e aos Estados desenvolvimentistas ex-coloniais do período pós-guerra. Afinal das contas, foi nestes países que a segunda onda do feminismo primeiramente irrompeu no início da década de 1970. Para explicar o que exatamente provocou a explosão, deixe-me observar quatro características definidoras da cultura política do capitalismo organizado pelo Estado:

Economicismo. Por definição, o capitalismo organizado pelo Estado envolveu o uso do poder político público para regular (e em alguns casos, substituir) os mercados econômicos. Esta foi em grande parte uma questão de gestão da crise no interesse do capital. Todavia, os Estados em questão derivaram muito de sua legitimidade política de suas pretensões em promover inclusão, igualdade social e solidariedade entre classes. No entanto, estes ideais foram interpretados de um modo economicista e classecêntrico. Na cultura política do capitalismo organizado pelo Estado, as questões sociais foram estruturadas principalmente em termos distributivos, como assuntos relativos à distribuição equitativa de bens divisíveis, especialmente renda e empregos, enquanto as divisões sociais foram vistas principalmente pelo prisma de classe. Assim, a injustiça social perfeita era a distribuição econômica injusta, e sua expressão paradigmática era a desigualdade de classes. O efeito deste imaginário classecêntrico e economicista era marginalizar, se não completamente obscurecer, outras dimensões, locais e eixos de injustiça.

Androcentrismo. Seguiu-se que a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado visualizava o cidadão de tipo ideal como um trabalhador masculino pertencente à maioria étnica – chefe e homem de família. Foi amplamente suposto, também, que o salário deste trabalhador deveria ser o principal, se não o exclusivo, sustento econômico de sua família, enquanto quaisquer salários ganhos pela sua esposa deveriam ser meramente suplementares. Profundamente marcada pelo gênero, esta construção “salário família” serviu tanto como um ideal social, conotando modernidade e mobilidade ascendente, quanto à base para política estatal em matéria de emprego, bem-estar social e desenvolvimento. Certamente, o ideal iludiu a maioria das famílias, pois o salário de um homem raramente era por si só suficiente para sustentar os filhos e uma esposa sem emprego. E dado como certo também, a indústria fordista para a qual o ideal estava ligado logo seria tolhida por um florescente setor de serviços de baixos-salários. Mas nas décadas de 1950 e 1960, o ideal de salário família serviu ainda para definir normas de gênero e para disciplinar aqueles que as infringiriam, reforçando a autoridade dos homens em assuntos domésticos e canalizando aspirações ao consumo doméstico privatizado. Igualmente importante, por valorizar o trabalho assalariado, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado obscureceu a importância social do trabalho não-assalariado de atenção à família e do trabalho reprodutivo. Institucionalizando compreensões androcêntricas de família e trabalho, naturalizou injustiças de gênero e as removeu da contestação política.

Estatismo. O capitalismo organizado pelo Estado, também foi estatista, difundido com um ethos tecnocrático, gerencial. Confiando em peritos profissionais para planejar políticas, e em organizações burocráticas para implementá-las, os Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas trataram aqueles a cujo serviço supostamente estavam mais como clientes, consumidores e contribuintes do que como cidadãos ativos. O resultado foi uma cultura despolitizada, que tratava questões de justiça como assuntos técnicos, que deviam ser solucionados mediante o calculo de experts ou de negociação corporativa. Longe de empoderados (empowered) para interpretar suas necessidades democraticamente, por deliberação política e contestação, os cidadãos comuns foram posicionados (na melhor das hipóteses) como recipientes passivos de satisfações definidas e dispensadas de cima.

Westfalianismo. Finalmente, o capitalismo organizado pelo Estado foi, por definição, uma formação nacional, destinada a mobilizar as capacidades de Estados-nações para apoiar o desenvolvimento econômico nacional em nome – se nem sempre no interesse – da cidadania nacional. Possibilitada pela estrutura regulatória de Bretton Woods, esta formação se baseava em uma divisão de espaço político em unidades territorialmente limitadas. Como resultado, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado institucionalizou a visão “Westfaliana” de que comprometimentos compulsórios da justiça só se aplicam entre concidadãos. Subtendendo a maior parte da luta social na era do pós-guerra, esta visão canalizava reivindicações de justiça nas arenas políticas internas de Estados territoriais. O efeito, apesar do simulacro de apoio para os direitos humanos internacionais e a solidariedade antiimperialista, era truncar o alcance da justiça, marginalizando, se não obscurecendo completamente, as injustiças trans-fronteiriças.7

Em geral, então, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado era economicista, androcêntrica, estatista e Westfaliana – características todas que foram objeto de ataque no final das décadas de 1960 e 1970. Naqueles anos de radicalismo explosivo, as feministas da segunda onda se juntaram às suas companheiras da Nova Esquerda e antiimperialistas desafiando o economicismo, o estatismo, e (em um menor grau) o Westfalianismo do capitalismo organizado pelo Estado, ao mesmo tempo contestando o androcentrismo deste – e com isto, o sexismo de seus camaradas e aliados. Vamos considerar estes pontos um por um.

Segunda onda do feminismo contra o economicismo. Rejeitando a identificação exclusiva de injustiça com má distribuição entre classes, as feministas da segunda onda se uniram a outros movimentos emancipatórios para romper o imaginário restritivo e economicista do capitalismo organizado pelo Estado. Politizando “o pessoal”, elas expandiram o significado de justiça, reinterpretando como injustiças desigualdades sociais que tinham sido negligenciadas, toleradas ou racionalizadas desde tempos imemoráveis. Rejeitando tanto o foco exclusivo do Marxismo na economia política quanto o foco exclusivo do liberalismo na lei, elas desvendaram injustiças localizadas em outros lugares – na família e em tradições culturais, na sociedade civil e na vida cotidiana. Ainda, as feministas da segunda onda ampliaram o número de eixos que poderiam abrigar a injustiça. Rejeitando a primazia das classes, as feministas socialistas, as feministas negras e as feministas antiimperialistas também se opuseram aos esforços de feministas radicais em situar o gênero naquela mesma posição de privilégio categorial. Focando não apenas no gênero, mas também na classe, na raça, na sexualidade e na nacionalidade, elas foram precursoras de uma alternativa “interseccionista” que é amplamente aceita hoje. Finalmente, as feministas da segunda onda ampliaram o campo de ação da justiça para incluir assuntos anteriormente privados como sexualidade, serviço doméstico, reprodução e violência contra mulheres. Fazendo assim, elas ampliaram efetivamente o conceito de injustiça para abranger não apenas as desigualdades econômicas, mas também as hierarquias de status e assimetrias do poder político. Com o benefício da visão retrospectiva, podemos dizer que elas substituíram uma visão de justiça monista, economicista por uma compreensão tridimensional mais ampla, abrangendo economia, cultura e política.

O resultado não foi uma mera lista de questões isoladas. Pelo contrário, o que relacionou a pletora de injustiças recém descobertas era a noção de que a subordinação das mulheres era sistêmica, fundamentada nas estruturas profundas da sociedade. As feministas da segunda onda discutiram, é claro, sobre como melhor caracterizar a totalidade social: se conforme o “patriarcado”, como uma amálgama de “sistemas duais” do capitalismo e patriarcado, como um sistema imperialista mundial, ou, em minha própria visão preferida, como uma forma historicamente específica, a sociedade capitalista organizada pelo Estado de forma androcêntrica, estruturada por três ordens inter-relacionadas de subordinação: (má) distribuição, (falta de) reconhecimento e (falta de) representação. Mas apesar de tais diferenças, a maior parte das feministas da segunda onda – com a exceção notável das feministas liberais – concordou que superar a subordinação das mulheres requeria transformar radicalmente as estruturas profundas da totalidade social. Este compromisso comum para a transformação sistêmica denotava as origens do movimento no mais geral fermento emancipatório dos tempos.

Segunda onda do feminismo contra o androcentrismo. Ainda que a segunda onda do feminismo participasse da atmosfera geral do radicalismo dos anos 1960, mesmo assim permaneceria em uma relação tensa com outros movimentos emancipatórios. Afinal de contas, seu objetivo principal era a injustiça de gênero do capitalismo organizado pelo Estado, o que estava longe de ser uma prioridade para os antiimperialistas não-feministas e os Novos Esquerdistas. Além de intensificar a crítica ao androcentrismo do capitalismo organizado pelo Estado, as feministas da segunda onda tinham também que confrontar o sexismo dentro da Esquerda. Para as feministas liberais e radicais, isto não colocou qualquer problema especial; elas poderiam simplesmente se tornar separatistas e abandonarem a Esquerda. Para as feministas socialistas, as feministas antiimperialistas e as feministas de cor, ao contrário, a dificuldade era confrontar o sexismo dentro da Esquerda e permanecer parte dela.

Durante um tempo, pelo menos, as feministas socialistas tiveram sucesso em manter esse difícil equilíbrio. Elas localizaram a essência do androcentrismo em uma divisão sexista do trabalho que sistematicamente desvalorizava atividades, remuneradas e não remuneradas, que eram executadas por ou associada com mulheres. Aplicando esta análise ao capitalismo organizado pelo Estado, descobriram as conexões profundamente estruturais entre a responsabilidade das mulheres à maior parte dos cuidados não remunerados, a subordinação no matrimônio e na vida pessoal, a segmentação de gênero dos mercados de trabalho, a dominação do sistema político pelos homens, e o androcentrismo da provisão do bem-estar social, a política industrial e os esquemas de desenvolvimento. De fato, elas expuseram o salário familiar como o ponto no qual convergiam a má distribuição de gênero, a falta de reconhecimento e a falta de representação. O resultado foi uma crítica que integrava economia, cultura e política em uma análise sistemática da subordinação das mulheres no capitalismo organizado pelo Estado. Longe de ter como objetivo simplesmente promover a incorporação completa das mulheres como assalariadas na sociedade capitalista, as feministas da segunda onda buscavam transformar as estruturas profundas do sistema e os valores que o estimulam – em parte descentralizando o trabalho assalariado e valorizando as atividades não assalariadas, especialmente o trabalho de assistência socialmente necessário executado por mulheres.

Segunda onda do feminismo contra o estatismo. Mas as objeções das feministas ao capitalismo organizado pelo Estado se referiam tanto ao processo quanto ao conteúdo. Como os seus aliados da Nova Esquerda, elas rejeitaram o ethos burocrático-gerencial do capitalismo organizado pelo Estado. À crítica da organização fordista amplamente difundida nos anos de 1960, elas acrescentaram uma análise de gênero, interpretando que a cultura de instituições de larga escala e hierarquizadas expressava a masculinidade modernizada do estrato profissional-gerencial do capitalismo organizado pelo Estado. Desenvolvendo um contra-ethos horizontal de conexão fraternal, as feministas da segunda onda criaram uma prática organizacional completamente nova de aumento da conscientização. Buscando um caminho para cobrir a profunda divisão estatista entre teoria e prática, elas se intitularam como um movimento contracultural democratizante – anti-hierárquico participativo e popular. Em uma época em que o acrônimo “ONG” ainda não existia, acadêmicas feministas, advogadas e assistentes sociais se identificaram mais com as bases do que com o ethos profissional reinante de especialistas despolitizados.

Mas, diferentemente de algumas das suas companheiras de contracultura, a maioria das feministas não rejeitou as instituições estatais simpliciter. Buscando, pelo contrário, infundir nestas instituições valores feministas, elas vislumbraram um Estado democrático e participativo que empoderasse a seus cidadãos. Re-imaginando efetivamente a relação entre Estado e sociedade, elas buscaram transformar aqueles objetos vistos como passivos da política desenvolvimentista e de bem-estar social em sujeitos ativos, empoderandos-os para participarem em processos democráticos de interpretação da necessidade. O objetivo, portanto, era menos desmontar as instituições estatais do que transformá-las em agências que promoveriam, e de fato expressariam, justiça de gênero.

Segunda onda do feminismo contra e a favor do Westfalianismo. Mais ambivalente, talvez, tenha sido a relação do feminismo com a dimensão Westfaliana do capitalismo organizado pelo Estado. Dadas suas origens na agitação global da época contra a Guerra do Vietnã, o movimento estava claramente disposto a ser sensível a injustiças trans-fronteiriças. Este era o caso especialmente das feministas no mundo em desenvolvimento, cuja crítica de gênero foi entrelaçada com uma crítica ao imperialismo. Mas lá, como em outro lugar, a maioria das feministas viu os seus respectivos Estados como os principais destinatários de suas exigências. Assim, as feministas da segunda onda tendiam a re-escrever a estrutura Westfaliana ao nível da prática, até mesmo quando elas a criticavam em nível teórico. Aquela estrutura, que dividiu o mundo em políticas territoriais delimitadas, permanecia como a opção padrão em uma época em que os Estados ainda pareciam possuir as capacidades necessárias para a direção social e na qual a tecnologia que permite a formação de redes transnacionais em tempo real ainda não estava disponível. No contexto do capitalismo organizado pelo Estado, então, o slogan “a irmandade é global” (ele mesmo já contestado como imperialista) funcionou mais como um gesto abstrato do que como um projeto político pós-Westfaliano que poderia ser colocado em prática.

Em geral, a segunda onda do feminismo permaneceu Westfaliana de forma ambivalente, até mesmo porque rejeitava o economicismo, o androcentrismo e o estatismo do capitalismo organizado pelo Estado. Em todas essas questões, entretanto, manifestou consideráveis nuanças. Ao rejeitar o economicismo, as feministas deste período nunca duvidaram da centralidade da justiça distributiva e da crítica da economia política no projeto da emancipação das mulheres. Longe de querer minimizar a dimensão econômica da injustiça de gênero, elas buscaram, pelo contrário, aprofundá-la, esclarecendo-se sua relação com as duas dimensões adicionais de cultura e da política. Da mesma forma, ao rejeitar o androcentrismo do salário familiar, as feministas da segunda onda nunca buscaram simplesmente substituí-lo pela família com dois assalariados. Para elas, superar a injustiça de gênero significava acabar com a desvalorização sistemática de provisão de cuidados e a divisão sexista do trabalho, tanto remunerado quanto não remunerado. Finalmente, ao rejeitar o estatismo do capitalismo organizado pelo Estado, as feministas da segunda onda nunca duvidaram da necessidade de fortes instituições políticas capazes de organizar a vida econômica a serviço da justiça. Longe de querer libertar os mercados do controle do Estado, elas buscavam, pelo contrário, democratizar o poder estatal, maximizar a participação do cidadão, fortalecer a prestação de contas (accountability) e aumentar os fluxos comunicativos entre o Estado e a sociedade.

Em suma, a segunda onda do feminismo aderiu a um projeto político transformador, baseado em um entendimento expandido de injustiça e na crítica sistêmica da sociedade capitalista. As correntes mais avançadas do movimento viram as suas lutas como multidimensionais, voltadas simultaneamente contra a exploração econômica, hierarquia de status e sujeição política. Para elas, ademais, o feminismo surgiu como parte de um projeto emancipatório mais amplo, no qual as lutas contra injustiças de gênero estavam necessariamente ligadas a lutas contra o racismo, o imperialismo, a homofobia e a dominação de classes, todas as quais exigiam uma transformação das estruturas profundas da sociedade capitalista.

O feminismo e o “novo espírito do capitalismo”

Como se constatou mais tarde, aquele projeto permaneceu basicamente fadado ao fracasso desde o início, vítima de forças históricas mais profundas, que não foram bem entendidas na ocasião. Com o benefício da visão retrospectiva, podemos ver agora que o surgimento da segunda onda do feminismo coincidiu com uma mudança histórica no caráter do capitalismo, da variante organizada pelo Estado, que acabou de ser analisada, para o neoliberalismo. Invertendo a fórmula anterior, que buscava “usar a política para domesticar mercados”, os proponentes desta nova forma de capitalismo propuseram usar mercados para domesticar a política. Desmontando elementos-chave da estrutura de Bretton Woods, eles eliminaram os controles de capital que tinham permitido a direção Keynesiana de economias nacionais. No lugar do dirigismo8, eles promoveram a privatização e a desregulamentação; em lugar de provisão pública e cidadania social, “trickle-down”9 e “responsabilização pessoal”; em lugar dos Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas, um Estado competitivo enxuto e mesquinho. Testada na América Latina, esta abordagem serviu para guiar muito da transição para o capitalismo na Europa Oriental/Central. Embora publicamente patrocinada por Thatcher e Reagan, era aplicada apenas gradual e desigualmente no Primeiro Mundo. No Terceiro, por contraste, a neoliberalização foi imposta usando a dívida como ameaça, como um programa forçado de “ajuste estrutural” o qual subverteu todos os princípios centrais do “desenvolvimentismo” e compeliu os Estados pós-coloniais a despojar-se de seus ativos, abrirem os seus mercados e cortar gastos sociais.

Curiosamente, a segunda onda do feminismo prosperou nestas novas condições. O que tinha começado como um movimento contracultural radical estava agora a caminho de se tornar um fenômeno social de massa de base ampla. Atraindo partidários de todas as classes, etnias, nacionalidades e ideologias políticas, as ideias feministas penetraram em todos os cantos escondidos da vida social e transformaram a ideia que todos os afetados tinham de si mesmos. O efeito não foi apenas ampliar imensamente as fileiras de ativistas, mas também transformar as visões de senso comum de família, trabalho e dignidade.

Foi mera coincidência que a segunda onda do feminismo e o neoliberalismo prosperaram em conjunto? Ou havia uma afinidade eletiva perversa, subterrânea entre eles? Esta segunda possibilidade pode ser uma heresia, por certo, mas seria perigoso não investigá-la. Certamente, o surgimento do neoliberalismo mudou dramaticamente o terreno no qual a segunda onda do feminismo operava. O efeito, eu discutirei aqui, foi “ressignificar” os ideais feministas.10 As aspirações que tiveram um claro impulso emancipatório no contexto do capitalismo organizado pelo Estado assumiram um significado muito mais ambíguo na era neoliberal. Com os Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas sob ataque dos “marqueteiros do livre-mercado” (free-marketeers), as críticas feministas do economicismo, androcentrismo, estatismo e Westfalianismo assumiram uma nova valência. Deixe-me esclarecer esta dinâmica de “ressignificação” contemplando novamente os quatro focos da crítica feminista.

Antieconomicismo feminista ressignificado. A ascensão do neoliberalismo coincidiu com uma maior alteração na cultura política das sociedades capitalistas. Neste período, as reivindicações por justiça foram progressivamente expressadas como reivindicações pelo reconhecimento da identidade e da diferença.11 Com esta mudança “da redistribuição para o reconhecimento” vieram pressões poderosas para transformar a segunda onda do feminismo em uma variante da política de identidade. Uma variante progressista, de fato, mas uma que tendia, contudo, a estender em excesso a crítica da cultura, enquanto subestimava a crítica da economia política. Na prática, a tendência era subordinar as lutas sócio-econômicas a lutas para o reconhecimento, enquanto na academia, a teoria cultural feminista começou a obscurecer a teoria social feminista. O que tinha começado como um corretivo necessário para o economicismo recaiu com o tempo em um culturalismo igualmente unilateral. Assim, em vez de chegar a um paradigma mais amplo, mais rico, que poderia abranger tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, as feministas da segunda onda trocaram um paradigma incompleto por outro.

Além disso, o momento não poderia ter sido pior. A volta para o reconhecimento se encaixou muito nitidamente com um neoliberalismo em ascensão que não queria nada mais do que reprimir toda a memória de igualitarismo social. Assim, as feministas tornaram absoluta a crítica da cultura precisamente no momento em que as circunstâncias requeriam atenção redobrada à crítica da economia política. Conforme a crítica se fragmentava, além do mais, a tendência cultural se tornava separada não apenas da tendência econômica, mas também da crítica do capitalismo que as integrara anteriormente. Separada da crítica do capitalismo e disponibilizada para articulações alternativas, estas tendências poderiam ser reduzidas no que Hester Eisenstein chamou de “uma conexão perigosa” com o neoliberalismo (EISENTEIN, 2005).

Antiandrocentrismo feminista ressignificado. Era só uma questão de tempo, portanto, antes que o neoliberalismo ressignificasse a crítica feminista ao androcentrismo. Para explicar como, proponho adaptar um argumento feito por Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005). No seu importante livro, The New Spirit of Capitalism (O novo espírito do capitalismo), eles argumentam que o capitalismo se refaz periodicamente em momentos de ruptura histórica, em parte recuperando as tendências de crítica dirigidas contra ele. Em tais momentos, elementos de crítica anticapitalista são ressignificados para legitimar uma forma nova e emergente de capitalismo, que assim se torna dotada da mais alta significação moral necessária para motivar novas gerações a arcar com o trabalho inerentemente sem sentido de acumulação infinita. Para Boltanski e Chiapello, o novo “espírito” que serviu para legitimar o capitalismo neoliberal flexível de nosso tempo foi adaptado da crítica “artística” da Nova Esquerda ao capitalismo organizado pelo Estado, que denunciou o conformismo cinzento da cultura corporativa. Foi no auge de Maio de 68, afirmam, que os teóricos de gestão neoliberais propuseram um novo capitalismo “conexionista”, “de projeto”, no qual as hierarquias organizacionais rígidas dariam lugar a equipes horizontais e a redes flexíveis, liberando, assim, a criatividade individual. O resultado foi uma nova narrativa do capitalismo com efeitos no mundo real – uma narrativa que envolveu os impulsos tecnológicos do Silicon Valley e que hoje acha sua mais pura expressão no ethos do Google.

O argumento de Boltanski e Chiapello é original e profundo. Contudo, ao não enxergar as questões de gênero, ele deixa de compreender o caráter completo do espírito do capitalismo neoliberal. De fato, aquele espírito inclui uma narrativa masculinista do indivíduo livre, desimpedido, auto modelado, que eles descrevem apropriadamente. Mas o capitalismo neoliberal tem tanto a ver com Walmart, maquiladoras e microcrédito quanto com o Silicon Valley e o Google. E seus trabalhadores indispensáveis são desproporcionalmente mulheres, não apenas jovens mulheres solteiras, mas também mulheres casadas e mulheres com filhos; não só as mulheres racializadas, mas virtualmente mulheres de todas as nacionalidades e etnias. Como tais, as mulheres despejaram-se em mercados de trabalho ao redor do globo; o efeito foi cortar na raiz de uma vez por todas o ideal do salário familiar do capitalismo organizado pelo Estado. No capitalismo neoliberal “desorganizado”, este ideal foi substituído pela norma da família de dois assalariados. Não importa que a realidade que subjaz o novo ideal sejam os níveis salariais decrescidos, diminuição da segurança no emprego, padrões de vida em declínio, um aumento abrupto no número de horas trabalhadas em troca de salários por família, exacerbação do turno dobrado – agora frequentemente um turno triplo ou quádruplo – e um aumento de lares chefiados por mulheres. O capitalismo desorganizado vende gato por lebre12 ao elaborar uma nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero.

Por mais inquietante que possa parecer, estou sugerindo que a segunda onda do feminismo tem involuntariamente fornecido um ingrediente-chave do novo espírito do neoliberalismo.

Nossa crítica do salário familiar agora fornece uma boa parte da narrativa que reveste o capitalismo flexível de um significado mais elevado e de um argumento moral. Dotando as suas lutas diárias de um significado ético, a narrativa feminista atrai as mulheres nos dois extremos do espectro social: em um extremo, os quadros femininos das classes médias profissionais, determinadas a rachar o teto de vidro; no outro extremo, as trabalhadoras temporárias, de trabalho parcial, prestadoras de serviço de baixa remuneração, domésticas, trabalhadoras do sexo, migrantes, trabalhadores de Zonas de Processamento de Exportação (EPZ)13 e aquelas que utilizam microcrédito, buscando não apenas renda e segurança material, mas também dignidade, auto-aperfeiçoamento e liberação em relação à autoridade tradicional. Nos dois extremos, o sonho de emancipação das mulheres está subordinado à máquina de acúmulo capitalista. Assim, a crítica da segunda onda do feminismo ao salário familiar desfrutou de uma continuação perversa. Se foi, em um tempo, peça central de uma análise radical do androcentrismo do capitalismo, serve hoje para intensificar a valorização do trabalho assalariado do capitalismo.

Antiestatismo feminista ressignificado. O neoliberalismo também ressignificou o antiestatismo do período anterior, tornando-o útil para os esquemas destinados a reduzir a ação estatal tout court. No novo clima, parecia haver um pequeno passo entre a crítica ao paternalismo do Estado de Bem-estar Social da segunda onda do feminismo para a crítica de Thatcher ao Estado protecionista. Certamente, esta foi a experiência nos Estados Unidos, onde as feministas assistiam impotentes como Bill Clinton triangulava as críticas sutis que elas faziam a um sistema de assistência sexista, estigmatizante e precário em um plano para “terminar o bem-estar social como o conhecemos” que aboliu o direito federal a um subsídio para a renda. Nas pós-colônias, enquanto isso, a crítica ao androcentrismo do Estado desenvolvimentista se transformou em entusiasmo pelas ONGs, que emergiram em todos os lugares para preencher os vazios deixados pelos Estados cada vez mais encolhidos. Certamente, as melhores destas organizações forneceram a populações destituídas de serviços públicos a ajuda material que com urgência necessitavam. Contudo, o efeito era frequentemente despolitizar os grupos locais e distorcer suas agendas em direções favorecidas pelos financiadores do Primeiro-Mundo. Pela sua própria natureza de preencher lacunas, além do mais, a ação das ONGs fez pouco para desafiar a maré em retrocesso da provisão pública ou para construir apoio político para a ação estatal reativa (ALVAREZ, 1999; BARTON, 2004).

A explosão do microcrédito ilustra o dilema. Contrapropondo os valores feministas de empoderamento e participação desde baixo à burocracia indutora de passividade do estatismo hierárquico, os arquitetos destes projetos fizeram uma síntese inovadora de auto-ajuda individual e formação de redes comunitárias, a supervisão por parte das ONGs e os mecanismos de mercado: tudo isso com o objetivo de combater a pobreza das mulheres e a sujeição de gênero. Os resultados até aqui incluem um registro impressionante de devoluções de empréstimo e evidências anedóticas de vidas transformadas. Porém, o que tem sido ocultado no alvoroço feminista que cerca estes projetos é uma coincidência perturbadora: o microcrédito se desenvolveu exatamente quando os Estados abandonaram os esforços macroestruturais para combater a pobreza, esforços que os empréstimos em pequena escala podem sequer substituir (NARAYAN, 2005; EISENSTEIN, 2005). Neste caso também, a crítica feminista do paternalismo burocrático foi recuperada pelo neoliberalismo. A perspectiva que visava originalmente transformar o poder estatal em um veículo de empoderamento dos cidadãos e da justiça social é agora usada para legitimar a mercantilização e a redução de despesas do Estado.

Feministas contra e a favor do Westfalianismo ressignificado. Finalmente, o neoliberalismo alterou para melhor e para pior a relação ambivalente da segunda onda do feminismo para com a estrutura Westfaliana. No novo contexto de “globalização”, já não mais se diz que o Estado territorial delimitado é o único receptáculo legítimo das obrigações de justiça e das lutas a favor desta. As feministas se uniram aos ambientalistas, aos ativistas de direitos humanos e aos críticos da Organização Mundial de Comércio (OMC) para desafiar essa visão. Mobilizando as intuições pós-Westfalianas que tinham permanecido impraticáveis no capitalismo organizado pelo Estado, elas visavam atingir as injustiças trans-fronteiriças que tinham sido marginalizadas ou negligenciadas na época anterior. Utilizando novas tecnologias de comunicação para estabelecer redes transnacionais, as feministas foram precursoras em estratégias inovadoras tais como o “efeito bumerangue”, que mobiliza a opinião pública global dirigindo a atenção para abusos locais e para envergonhar os Estados que fecham os olhos para eles (KECK & SIKKINK, 1998). O resultado foi uma nova forma promissora de ativismo feminista: transnacional, de múltipla escala, pós-Westfaliana.

No entanto, a virada transnacional trouxe dificuldades também. Frequentemente impedidas no plano estatal, muitas feministas direcionaram suas energias para a arena “internacional”, especialmente para uma sucessão de conferências relacionadas com as Nações Unidas, de Nairóbi a Viena até Pequim e assim por diante. Fazendo-se presentes na “sociedade civil global” em que pudessem empreender novos regimes de governança global, elas foram envolvidas em alguns dos problemas que já mencionei. Por exemplo, campanhas para os direitos humanos das mulheres que focalizaram esmagadoramente as questões da violência e da reprodução, subjugaram as questões relacionadas à pobreza. Ratificando a divisão própria da Guerra Fria entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e econômicos, por outro, estes esforços, também, privilegiaram o reconhecimento sobre a redistribuição. Além disso, estas campanhas intensificaram a “onguização” da política feminista, alargando o vazio entre os profissionais e os grupos locais, enquanto davam voz desproporcional para as elites que falam a língua Inglesa. Dinâmicas análogas têm operado na participação feminista com o aparato político da União Europeia – especialmente dada a ausência de movimentos de mulheres genuinamente transnacionais em toda a Europa. Assim, a crítica feminista do Westfalianismo se mostrou ambivalente na era do neoliberalismo. O que começou como uma tentativa saudável para ampliar o escopo de justiça além do Estado-nação acabou se encaixando em certos aspectos com as necessidades administrativas de uma nova forma de capitEm geral, então, o destino do feminismo na era neoliberal apresenta um paradoxo. Por um lado, o movimento contracultural relativamente pequeno do período anterior se expandiu exponencialmente, disseminando com sucesso suas ideias pelo mundo. Por outro lado, as ideias feministas se submeteram a uma mudança sutil de validade no contexto alterado. Claramente emancipatórias no período do capitalismo organizado pelo Estado, as críticas ao economicismo, ao androcentrismo, ao estatismo e ao Westfalianismo agora aparecem cheia de ambiguidades, suscetíveis a servir as necessidades de legitimação de uma nova forma de capitalismo. Afinal de contas, este capitalismo preferiria confrontar mais as reivindicações para o reconhecimento e não as reivindicações para a redistribuição, na medida em que constrói um novo regime de acumulação sobre a pedra angular do trabalho assalariado das mulheres, e busca separar os mercados de uma regulamentação social a fim de operar ainda mais livremente em uma escala global.

Um futuro em aberto?

Hoje, entretanto, este capitalismo está ele próprio em uma encruzilhada crítica. Certamente, a crise financeira global e a resposta decididamente pós-neoliberal por parte dos principais Estados – todos keynesianos agora – marcam o começo do fim do neoliberalismo como um regime econômico. A eleição de Barack Obama pode sinalizar o repúdio decisivo, inclusive “nas entranhas do monstro”, do neoliberalismo como um projeto político. Podemos estar vendo as primeiras agitações de uma nova onda de mobilização destinada a articular uma alternativa. Talvez, consequentemente, nós estejamos à beira de outra “grande transformação”, tão volumosa e profunda quanto a que há pouco descrevi.

Nesse caso, então, a forma da sociedade sucessora será objeto de intensa contestação no próximo período. E o feminismo destacar-se-á com importância em tal contestação, em dois níveis diferentes: o primeiro, como movimento social cujas propriedades eu delineei aqui, que procurará garantir que o regime sucessor institucionalize um compromisso em relação à justiça de gênero. Mas também, em segundo lugar, como uma construção discursiva geral que as feministas no primeiro sentido não possuem mais e já não controlam – um significante vazio do bem (semelhante, talvez, à “democracia”) que pode e será invocada para legitimar uma variedade de diferentes cenários, nem todos os quais promotores de justiça de gênero. Fruto do feminismo no primeiro sentido, o de movimento social, este segundo sentido discursivo do “feminismo” se tornou traiçoeiro. Como o discurso se torna independente do movimento, ele é progressivamente confrontado com uma estranha versão sombria de si mesma, um cópia sinistra que nem se pode simplesmente abraçar, nem negar completamente.14

Neste artigo, tracei a dança desconcertante destes dois feminismos na mudança do capitalismo organizado pelo Estado para o neoliberalismo. O que devemos concluir disto? Certamente, não que a segunda onda do feminismo fracassou simpliciter, nem que se deve culpar pelo triunfo do neoliberalismo. Certamente, não se trata de os ideais feministas serem inerentemente problemáticos; nem que eles sempre já estejam condenados a ser ressignificados para os propósitos capitalistas. Concluo, pelo contrário, que nós, para quem o feminismo é acima de tudo um movimento para a justiça de gênero, precisamos ampliar nossa consciência histórica na medida em que operamos em um terreno que também está povoado pela nossa estranha cópia.

Para este fim, permitam-nos voltar à pergunta: o que explica, se é que se pode explicar, nosso “vínculo perigoso” com o neoliberalismo? Somos as vítimas de uma coincidência infeliz, e aconteceu de estarmos no lugar errado no momento errado e assim caímos como presas do mais sedutor dos oportunistas, um capitalismo tão indiscriminado que instrumentalizaria qualquer perspectiva que seja até mesmo uma inerentemente estranha a ele? Ou, como sugeri anteriormente, há alguma afinidade eletiva e subterrânea entre o feminismo e o neoliberalismo?

Se tal afinidade existe de fato, ela se encontra na crítica da autoridade tradicional.15 Tal autoridade é um alvo do ativismo feminista existente há muito tempo, que buscou, pelo menos desde Mary Wollstonecraft, emancipar as mulheres da sujeição personalizada aos homens, sejam eles os pais, irmãos, padres, anciões ou maridos. Mas a autoridade tradicional também aparece em alguns períodos como um obstáculo à expansão capitalista, parte do conteúdo social circundante em que os mercados historicamente foram incorporados e que serviu para delimitar a racionalidade econômica dentro de uma esfera limitada.16 No momento atual, estas duas críticas à autoridade tradicional, a feminista e a outra neoliberal, parecem convergir.

Onde o feminismo e neoliberalismo divergem, em contraste, é sobre as formas pós-tradicionais de subordinação de gênero – coações na vida das mulheres que não adotam a forma de sujeição personalizada, mas surgem de processos estruturais ou sistêmicos nos quais as ações de muitas pessoas são mediadas de forma abstrata ou impessoal. Um caso paradigmático é o que Susan Okin caracterizou como “um ciclo de vulnerabilidade claramente assimétrica e socialmente provocada pelo casamento”. Em que a responsabilidade tradicional das mulheres para o processo de criar e educar os filhos ajuda a moldar os mercados de trabalho que as desfavorecem, resultando em poder desigual no mercado econômico, o que, por sua vez, reforça e exacerba o poder desigual na família. (OKIN, 1989, p. 138). Tais processos de subordinação mediados pelo mercado são a própria essência do capitalismo neoliberal. Hoje, consequentemente, eles devem se tornar no foco principal da crítica feminista, conforme buscamos nos distinguir do neoliberalismo e evitar a ressignificação feita por ele. O objetivo, certamente, não é largar a luta contra a autoridade masculina tradicional, a qual permanece um momento necessário da crítica feminista. É, pelo contrário, romper a passagem fácil de tal crítica para seu duplo neoliberal – sobretudo reconectando as lutas contra a sujeição personalizada à crítica a um sistema capitalista, o qual, ainda que prometa liberação, de fato substitui um modo de dominação por outro. Na esperança de adiantar esta agenda, gostaria de concluir revisitando uma última vez meus quatro focos da crítica feminista.

Antieconomicismo pós-neoliberal. O possível abandono do neoliberalismo oferece a oportunidade de reativar a promessa emancipatória da segunda onda do feminismo. Adotando uma análise plenamente tridimensional de injustiça, poderíamos agora integrar de um modo mais equilibrado as dimensões de redistribuição, reconhecimento e representação que se fragmentaram no período anterior. Fundamentando esses aspectos indispensáveis da crítica feminista em um sentido robusto e atualizado da totalidade social, devemos reconectar a crítica feminista à crítica do capitalismo – e assim re-posicionar o feminismo diretamente na Esquerda.

Antiandrocentrismo pós-neoliberal. Da mesma forma, a possível mudança para uma sociedade pós-neoliberal oferece a chance de romper a ligação espúria entre nossa crítica do salário familiar e o capitalismo flexível. Reivindicando nossa crítica ao androcentrismo, as feministas poderiam militar por uma forma de vida que descentralize o trabalho assalariado e valorize as atividades desmercantilizadas, como o trabalho de cuidar. Agora executadas amplamente por mulheres, tais atividades devem se tornar componentes valiosos de uma vida boa para todos.

Antiestatismo pós-neoliberal. A crise do neoliberalismo também oferece a chance de romper a ligação entre nossa crítica ao estatismo e à mercadorização. Reivindicando o manto da democracia participativa, as feministas poderiam agora militar por uma nova organização de poder político, que subordine o gerencialismo burocrático pelo aumento do poder dos cidadãos. Porém, o objetivo não é dissipar, mas fortalecer o poder público. Assim, a democracia participativa que buscamos hoje é uma que usa a política para domesticar os mercados e guiar a sociedade no interesse da justiça.

Anti Westfalianismo pós-neoliberal. Finalmente, a crise do neoliberalismo oferece a chance de solucionar, de um modo produtivo, nossa ambivalência há muito existente sobre a estrutura Westfaliana. Dado o alcance transnacional do capital, as capacidades públicas necessárias hoje não podem ser alojadas exclusivamente no Estado territorial. Aqui, consequentemente, a tarefa é romper a identificação exclusiva da democracia com a comunidade política delimitada. Juntando outras forças progressistas, as feministas poderiam militar por uma nova ordem política pós-Westfaliana – uma ordem escalar múltipla que é democrática em todos os níveis. Combinando subsidiariedade com participação, a nova constelação de poderes democráticos deve ser capaz de retificar as injustiças em todas as dimensões, ao longo de todos os eixos e em todas as escalas, incluindo injustiças trans-fronteiriças. Estou sugerindo, então, que este é um momento em que as feministas devem pensar grande. Tendo observado como o violento ataque neoliberal instrumentalizou nossas melhores ideias, temos uma abertura agora para reivindicá-las. Agarrando este momento, poderíamos simplesmente dobrar o arco da transformação iminente na direção da justiça – e não apenas no que diz respeito a gênero.

Notas:

[1] Versão original publicada na New Left Review, n. 56, março-abril de 2009, sob o título “Feminism, capitalism and the cunning of history”. A Comissão Editorial da revista Mediações agradece aos editores e à autora por autorizarem esta publicação. Traduzido do inglês por Anselmo da Costa Filho e Sávio Cavalcante. Revisão de Renata Gonçalves.

[2] Professora do Departamento de Filosofia e Política da New School for Social Research, Nova Iorque. End. eletrônico: frasern@earthlink.net

[3] Este ensaio origina-se da conferência principal apresentada no Colóquio de Cartona sobre “Gênero e Cidadania: novos e velhos dilemas, entre a igualdade e a diferença”, realizado em novembro de 2008. Pelos comentários prestimosos, agradeço aos participantes de Cortona, especialmente Bianca Beccalli, Jane Mansbridge, Ruth Milkman e Eli Zaretsky, e aos participantes em um seminário na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) no Groupe de sociologie politique et morale, especialmente Luc Boltanski, Estelle Ferrarese, Sandra Laugier, Patricia Paperman e Laurent Thévenot.

[4] Para uma discussão nestes termos, ver Pollock (1982).

[5] N. T. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

[6] Então, também, a vida econômica no bloco comunista foi notoriamente organizada pelo Estado, e há aqueles que ainda insistiriam em chamá-la de capitalismo organizado pelo estado. Embora possa haver alguma verdade nesta visão, seguirei o caminho mais convencional de excluir a região deste primeiro momento do meu estudo, em parte porque até 1989 não emergiu a segunda onda do feminismo como uma força política no que foi até então países ex-comunistas.

[7] Para uma análise mais ampla do “imaginário político Westfaliano”, ver Fraser (2005).

[8] N. T. Dirigisme, no original em francês, que indica o controle forte da economia e outros setores pelos governos.

[9] N. T. Teoria trickle-down em economia (algo como “economia em cascata”) é aquela em que se supõe que os ganhos e as rendas obtidos pelos mais ricos acabam por “escorrer” para toda a base da pirâmide social, por isso, o corte de taxas e impostos e aumento de benefícios aos negócios contribuem para aumentar os ganhos de toda a população.

[10] Tomo emprestado o termo “ressignificação” de Butler (1994). Para esta mudança na gramática de reivindicações políticas, ver Fraser (1995).

[12] N. T. No original, “turns a sow’s ear into a silk purse”, literalmente, “tenta fazer com que uma orelha de porco vire uma bolsa de seda”. A expressão “tentar tirar leite de pedra” também seria um equivalente possível em português, pois a forma original comporta o sentido de impossibilidade de se fazer algo. Contudo, adotamos “vender gato por lebre” para dar conta do sentido do argumento exposto no parágrafo, e ao longo do texto, segundo o qual o novo espírito do capitalismo apresenta um projeto de aumento de autonomia e liberdade, mas assim o faz em um contexto de degradação das condições de trabalho, principalmente para as mulheres. Assim, optamos pelo sentido, também presente na expressão original, de que “se pretende fazer algo bom a partir de algo de baixa qualidade”.

[13] N. T. Como as trabalhadoras das maquiladoras mexicanas.

[14] Esta fórmula de “feminismo e suas cópias” poderia ser elaborada em bom termo a respeito da eleição Presidencial Americana de 2008, onde as sinistras cópias incluíam tanto Hillary Clinton como Sarah Palin.

[15] Devo este ponto a Eli Zaretsky (comunicação pessoal). Cf. Eisenstein (2005).

[16] Em alguns períodos, mas nem sempre. Em muitos contextos, o capitalismo está mais inclinado a se adaptar do que a desafiar autoridade tradicional. Sobre a criação dos mercados, veja Polanyi (2001).

Referências

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