13 de fevereiro de 2010

A coragem do presente

Face aos nossos tempos de desorientação, a hipótese comunista continua a ser uma ideia de futuro que os erros do século XX não esgotaram. Qual é a sua moralidade provisória?

Alain Badiou



Tradução / O período atual, em um país como o nosso, tem sido, de quase trinta anos para cá, um período desorientado. Quero dizer: um período que apresenta uma juventude, e particularmente uma classe trabalhadora jovem, sem princípios que orientem sua existência

Que desorientação é essa? Um das suas principais operações consiste em fazer com que o período anterior seja ilegível – o período que era, ao contrário, bem orientado. Essa manobra é característica de todos os retrocessos e períodos contra-revolucionários, como o que estamos vivendo desde o fim dos anos 1970.

Devemos, por agora, remarcar que o caracterizou a reação termidoriana, depois da conspiração do 9º Termidor e a execução sem julgamentos dos principais jacobinos, foi fazer o período anterior ilegível: sua redução à patologia de alguns criminosos sanguinários impediu qualquer compreensão política. Essa visão persistiu por décadas, procurando permanentemente desorientar o povo, que é visto – que é sempre visto – como revolucionário.

Tornar um período ilegível é muito mais do que simplesmente condená-lo. Um dos efeitos da ilegibilidade é impedir que se encontre no período em questão os mesmos princípios que podem prover uma saída para os becos sem saída. Se o período é considerado patológico, então não há nada nele que a orientação possa extrair para si, e a conclusão – cujos efeitos prejudiciais podemos ver no nosso cotidiano – é que devemos nos resignar à desorientação como um mal menor.

Vamos, portanto, postular, em relação ao período anterior, visivelmente próximo à política de emancipação, que ela deve permanecer legível para nós, e isso independentemente do seu julgamento final..

No debate sobre a racionalidade na Revolução Francesa que aconteceu na Terceira República, Clemenceau estabeleceu a famosa formulação: “A Revolução Francesa constitui um bloco unitário”. A formulação é notável em declarar a ilegibilidade integral do processo, quaisquer que tenham sido as trágicas mudanças no seu desenvolvimento.

Nos dias de hoje, está claro que o discurso predominante sobre o comunismo torna o período anterior uma patologia opaca. Portanto, ouso dizer que o período comunista, incluindo todas as nuances dentro desta idéia, tanto no poder como na oposição, também constitui um bloco unitário.

O que pode hoje, então, ser o princípio e o nome de uma verdadeira orientação? Em qualquer caso, proponho chamá-lo – por fidelidade à história da política emancipatória – de hipótese comunista.

Vamos notar que nossos críticos tentam descartar o termo “comunismo” sobre o pretexto de que uma experiência de comunismo de Estado que durou setenta anos falhou tragicamente. Que piada! Quando se trata de inverter a dominação pelos ricos e a natureza hereditária do poder, que tem durado milênios, nós somos reprovados por setenta anos de tentativas, de violência e de becos sem saída. Verdade seja dita, a ideia comunista teve somente um tempo minúsculo para sua verificação, sua implementação.

Qual é essa hipótese? Ela consiste em três axiomas.

Primeiro, a ideia igualitária. A ideia pessimista comum, que mais uma vez domina nossos tempos, é que a natureza humana está condenada à desigualdade, que é uma vergonha, mas que depois de derrubar algumas lágrimas é essencial persuadir-se dessa verdade e aceitá-la. A isso, a ideia comunista não responde exatamente por meio da proposição da igualdade como um programa – vamos trazer a igualdade fundamental que é imanente à natureza humana –, mas declarando que o princípio igualitário torna possível distinguir, em qualquer ação coletiva, o que é homogêneo à hipótese comunista, e portanto, a um valor real e aquilo que o contradiz. Portanto, nos traz de volta a uma visão animal da humanidade.

Logo vem a convicção que a existência de um Estado coercitivo não é necessária. Essa é a tese, comum a anarquistas e comunistas, do declínio do Estado. Existiram sociedades sem Estado, e é racional postular a possibilidade de outros. Mas para além deles, a ação política popular pode ser organizada sem ser sujeita à ideia de poder, de representação no Estado, de eleições, etc.

A restrição libertadora da ação organizada pode ser exercida de fora do Estado. Há muitos exemplos disso, incluindo alguns recentes: o inesperado poder do movimento de dezembro de 1995 atrasou por vários anos as medidas impopulares sobre as pensões na França. A ação militante em favor dos trabalhadores ilegais não impediu uma série de leis maléficas, mas tornou possível que eles fossem largamente reconhecidos como um elemento da nossa vida política e coletiva.

Axioma final: a organização do trabalho não envolve sua divisão, a especialização de tarefas, e particularmente a distinção opressiva entre os trabalhos intelectuais e manuais. Devemos e podemos imaginar uma natureza polimorfa essencial do trabalho humano. Essa é a matéria-prima para a desaparição de classes e de hierarquias sociais.

Esses três princípios não constituem um programa, mas orientam lemas, que qualquer pessoa pode se investir como um operador, para avaliar o que está dizendo e fazendo, pessoalmente ou coletivamente, em sua relação com a hipótese comunista.

A hipótese comunista teve dois estágios principais, e gostaria de apontar que estamos entrando no terceiro.

A hipótese comunista foi estabelecida em grande escala entre a Revolução de 1848 e a Comuna de Paris, em 1871. Seus temas dominantes são aqueles do movimento dos trabalhadores e da insurreição. A ele se seguiu um longo intervalo de quase 40 anos (entre 1871 e 1905), que corresponde ao apogeu do imperialismo europeu e a distribuição de muitas regiões do mundo. O período entre 1905 e 1976 (a revolução cultural na China) é um segundo período da hipótese comunista.

Seu tema dominante é o tema do partido e seu principal (e inquestionável) slogan: disciplina é a única arma para quem não tem nada. Em 1976 começa um segundo período de estabilização reativa que dura até nossos dias — um período em que nos encontramos, durante o qual temos testemunhado o colapso da única ditadura socialista de partido único criado no segundo período.

Minha crença é que um terceiro período histórico da hipótese comunista vai acontecer inevitavelmente – um período diferente dos dois anteriores, mas paradoxalmente mais próximo ao antigo do que ao último. Esse período compartilha com aquele do século 19 o fato de que o que estava em questão era a existência da hipótese comunista, que nos dias de hoje é constantemente negada. Podemos definir o que eu, ao lado de outros, estou tentando fazer, como um trabalho preliminar para a reinstalação dessa hipótese e o desdobramento do seu terceiro período.

Nós temos a necessidade, nesse novo começo do terceiro período na existência da hipótese comunista, de uma moralidade provisória para um período desorientado. O objetivo é manter minimamente uma consistente figura subjetiva, sem, portanto, ter o apoio da hipótese comunista que ainda não foi reinstalada em grande escala. O que é importante é encontrar um real objetivo em que se apoiar – qualquer que seja seu preço –, um objetivo “impossível” que não pode ser inscrito nas leis da situação. Devemos ter um objetivo real desse tipo e organizar suas consequências.

A prova cabal ao fato de que nossas sociedades são obviamente inumanas é, hoje em dia, o alienígena proletário ilegal: ele é a marca, imanente à nossa situação, do fato de que há um único mundo. Tratá-lo como se ele tivesse vindo de outro mundo é tarefa específica do “Ministério da Identidade Nacional”, que tem sua própria força policial (a “Polícia Fronteiriça”). Alegar, contra um dispositivo de Estado, que qualquer trabalhador ilegal vem do mesmo mundo que eu, e projetar as consequências práticas, igualitárias e militantes disso, é um exemplo de uma moralidade provisória, uma orientação local que é homogênea à hipótese comunista, dentro da desorientação global que somente sua reinstalação pode afastar.

A principal virtude que precisamos para isso é a coragem. Não é o caso universal: em outras circunstâncias, outras virtudes podem ser requisitadas como prioridade. Portanto, na época da guerra revolucionária na China, Mao promoveu a paciência como uma virtude essencial. Mas hoje em dia é a coragem. A coragem é a virtude que se manifesta, independentemente das leis do mundo, por meio da resistência do impossível. A coisa a se fazer é manter o objetivo impossível sem explicar a situação com um todo: a coragem, na medida em que é uma questão de tratar o objetivo como tal, é uma virtude local. Ela surge de uma moralidade local, e seu horizonte é a lenta reinstalação da hipótese comunista.

1 de fevereiro de 2010

Presidente da hipocrisia

Das declamações no Cairo ao silêncio sobre Gaza, ocupação do Iraque e escalada no Afeganistão e no Paquistão, Tariq Ali pergunta o que mudou na política externa dos EUA desde a saída de Bush.

Tariq Ali

New Left Review

NLR 61 • JAN/FEB 2010

Um ano depois de a presidência dos EUA ter mudado de mãos, o que mudou no império norte-americano? Durante o governo Bush, a ‘grande’ imprensa e boa parte da sessão amnésica da esquerda repetia, que os EUA estariam sob o poder de um regime aberrante, produto de praticamente um golpe de Estado aplicado por um pequeno grupo de direitistas fanáticos - combinado à corporações ultrarreacionárias -, que teria sequestrado a democracia dos EUA, pondo-a a serviço de agressões jamais vistas contra o Oriente Médio. Resposta a isso, os EUA teriam eleito um mestiço alistado no Partido Democrata, que prometia curar todas as feridas "domésticas" e restaurar a boa reputação dos EUA no mundo. Esse presidente foi recebido numa onda de euforia ideológica jamais vista desde os dias de Kennedy. Outra vez, os EUA mostrariam sua verdadeira face - decididos, mas pacíficos; firmes, mas generosos; humanos, respeitosos, multiculturalistas - ao mundo. Naturalmente, como um Lincoln ou um Roosevelt de nossos tempos, o novo jovem presidente dos EUA teria de fazer concessões, como qualquer estadista. Mas, pelo menos, estaria acabado o vergonhoso interlúdio de bandidagem e criminalidade dos Republicanos. Bush e Cheney haviam interrompido a continuidade de uma liderança norte-americana multilateral que tanto bem fizera ao país durante a Guerra Fria e depois dela. Obama recuperaria esse fio dessa meada.

Raramente a mitologia de autopromoção – ou ingenuidade bem-intencionada – foi tão rapidamente desmascarada. Não houve qualquer rompimento fundamental na política externa, como oposta às cantigas diplomáticas, entre os governos Bush 1, Clinton e Bush 2; tampouco houve qualquer mudança importante entre os governos Bush e Obama. Os objetivos estratégicos e imperativos dos EUA continuam os mesmos; tampouco mudaram os principais teatros e os meios de operação. Desde o colapso da URSS, a Doutrina Carter – a construção de um novo pilar democrático de direitos humanos – definiu o Oriente Médio estendido como campo de batalha central para a imposição do poder norte-americano em todo o mundo. Basta olhar para cada setor, para ver que Obama é produto de Bush, como Bush, de Clinton; e Clinton, de Bush-pai, em ritmo de filiação bíblica.

Continuam a ignorar Gaza

A posição de Obama a favor de Israel já estava manifesta antes da posse. Dia 27/12/2008, o Exército de Israel [ing. Israel Defense Forces, IDF] lançou ataque mortífero, por terra e ar, contra a população de Gaza. Os bombardeiros, incêndios provocados, matança generalizada continuaram sem interrupção por 22 dias, tempo durante o qual o presidente-eleito não enunciou uma sílaba de reprovação. Conforme planos já existentes, Telavive suspendeu os ataques algumas horas antes da posse de Obama, dia 20/1/2009, para não estragar a festa. Àquela altura, Obama já nomeara um doberman ultrassionista de Chicago, Rahm Emanuel, ex-voluntário do Exército de Israel, para trabalhar em sua sala, como principal assessor da presidência. Imediatamente depois da posse, Obama – como todos os presidentes dos EUA – falou a favor da paz entre os dois povos sofredores da Terra Santa e, outra vez como todos os que o antecederam, pediu que os palestinos reconhecessem Israel e que Israel suspendesse as construções nos territórios que invadiu e ocupou em 1967. Uma semana depois do discurso de Obama no Cairo, em que se manifestou contra a criação de novas colônias israelenses na Palestina, a coalizão de Netanyahu já ampliava impunemente o roubo de terra árabe em Jerusalém Leste. No outono, a secretária de Estado Clinton dava parabéns a Netanyahu por ter feito “concessões sem precedentes”. Mark Landler do New York Times, em conferência de imprensa em Jerusalém, perguntou à secretária: “Senhora Secretária, quando esteve aqui, na primeira visita, a senhora falou duramente contra a demolição de casas de árabes em Jerusalém Leste. Mesmo assim, as demolições prosseguiram e, de fato, há alguns dias, o prefeito de Jerusalém assinou nova ordem para demolir mais casas de árabes. O que a senhora teria a comentar hoje, sobre a mesma política?” A secretária ignorou a pergunta.[1]

Um mês antes, uma comissão de investigação da ONU [ing. “UN Fact Finding Mission”] nomeada para examinar denúncias sobre a invasão de Gaza, relatou que o Exército de Israel praticara atos criminosos, que não deixavam de ser criminosos por terem sido ou provocados ou respondidos com foguetes caseiros disparados pelo Hamás. Comandada por um dos mais aplicados e reconhecidos juízes especialistas em ‘direito internacional’, o juiz sul-africano Richard Goldstone, promotor que já trabalhara em sessão pré-orquestrada do Tribunal de Haia sobre a Iugoslávia e sionista conhecido e professo, as acusações contra Israel foram reduzidas ao mínimo necessário para garantir alguma credibilidade ao Relatório. Há impressionantes diferenças entre os testemunhos que a Comissão da ONU realmente ouviu e o que se lê no relatório.[2]  Mas, desabituada de receber críticas de qualquer tipo, Telavive reagiu com fúria; e Washington ordenou a seu cliente e cabeça do complô, Mahmoud Abbas, que se opusesse ao Relatório na ONU.[3] Pareceu demais até para os seguidores de Abbas e Abbas desobedeceu; mas houve reações violentas e Abbas teve de desdizer-se, o que o desacreditou ainda mais. O episódio confirmou que o controle do AIPAC sobre Washington continua tão forte como sempre – ao contrário do que supõem alguns iludidos da esquerda dos EUA, para os quais o lobby israelense estaria envelhecido e sem força, e estaria sendo substituído por algum ramo mais ‘ilustrado’ do sionismo norte-americano.

No teatro palestino do sistema norte-americano, a ausência de novidade significativa não implica ausência de movimento. Considerada de um ponto de vista mais amplo, a política dos EUA tem sido, há algum tempo, estimular a ação de Israel na direção de criar um ou mais bantustões, o que atende perfeitamente bem seus interesses.[4] Para tanto, é claro, é indispensável eliminar qualquer possível liderança palestina legítima, ou Estado palestino real. Os Acordos de Oslo foram um primeiro passo desse processo, destruindo a credibilidade da OLP e instaurando uma ‘Autoridade Palestina’ que não passa de fachada de Potemkin para a única real autoridade nos territórios ocupados, a saber, o Exército de Israel. Incapaz de obter qualquer respeitabilidade ou autoridade, por cerimonial que fosse, a liderança da OLP na Cisjordânia passou a dedicar-se a fazer fortuna, abandonando definitivamente a luta pelos interesses do povo palestino, entregue à pobreza mais absoluta e regularmente exposto à violência dos colonos judeus. Trabalhando na direção oposta, e criando um sistema primitivo mais eficaz de bem-estar social, capaz de distribuir assistência médica, remédios e alimentos nas áreas mais miseravelmente pobres, e com creches e asilos para velhos e doentes, o Hamás conseguiu ganhar apoio popular e venceu as eleições palestinas de 2006. Europa e EUA reagiram imediatamente com o boicote político-econômico, e apoiaram a volta do partido Fatah ao poder na Cisjordânia. Em Gaza, onde o Hamás era mais forte, Israel tentou durante algum tempo inflar Mohammed Dahlan para que liderasse um golpe – Dahlan é o chefe-de-quadrilha favorito de Washington, dentro do aparelho de segurança da OLP. Ben-Eliezer, ministro da Defesa contou, em depoimento à Comissão de Negócios Estrangeiros e Defesa, do Parlamento de Israel, que em 2002, quando o Exército de Israel retirou-se de Gaza, ofereceu a Faixa a Dahlan, que desejava provocar a guerra civil na Palestina que tanto perturbava a vida dos colonos judeus. Quatro anos antes, Dahlan recebera ajuda de Washington para promover golpe militar em Gaza,[5] mas foi vencido pelo Hamás, que assumiu o controle da Faixa em meados de 2007. Depois do bloqueio como castigo político e econômico por os eleitores palestinos terem-se levantado e resistido aos expressos desejos euro-norte-americanos, veio o ataque israelense do final de 2008 –, em relação ao qual Obama "piscou".

Mas o resultado, agora, não é o impasse sempre regular e pontualmente lastimado pelos sonhadores que ainda sonham com “acordos de paz”. Depois de repetidos golpes, e cada vez mais isolada, a resistência palestina está sendo paulatinamente minada e enfraquecida, a ponto de o próprio Hamás – sem conseguir desenvolver qualquer estratégia coerente, nem de romper o compromisso dos Acordos de Oslo, dos quais também o Hamás tornou-se prisioneiro – começar a considerar a possibilidade de aceitar o nada que Israel oferece, paramentado com outros nadas que o ocidente oferece. Não há nenhum tipo significativo de Autoridade Palestina. Deputados eleitos pela Cisjordânia ou Gaza são tratados como enviados de ONGs de mendigos: recebem migalhas se permanecem ajoelhados e seguem o que o ocidente ordene; e castigos, se saem da linha. Racionalmente, os palestinos melhor fariam se dissolvessem a Autoridade e exigissem direitos iguais de cidadania num único Estado, apoiados em campanha internacional a favor do boicote a Israel, desinvestimento e sanções, até que se desmantelem todas as estruturas de apartheid vigentes em Israel. Na prática, há pequena ou nenhuma probabilidade de isso acontecer em futuro próximo. O que se deve prever, muito mais provavelmente, é a convergência – já promovida e elogiada no jornal Haaretz como mais brilhantemente iluminada que a de Rabin [6] – de Obama e Netanyahu, na direção de uma solução final, com várias entidades ‘palestinas’ com as quais Israel poderá conviver e nas quais morrerá a Palestina.

Colhendo Bagdá

No momento, porém, há preocupações mais prementes: as zonas de guerra mais a leste são as que mais chamam a atenção imperial. O Iraque pode ter saído das manchetes, mas não dos briefings diários de segurança no Salão Oval. Em 2002, em sua ascensão política como senador estadual discreto em Illinois, Obama se opôs ao ataque ao Iraque; era politicamente barato fazê-lo. Quando ele foi eleito presidente, as forças americanas ocuparam o país por seis anos, e seu primeiro ato foi manter o secretário de Defesa de Bush, Robert Gates, funcionário de longa data da CIA e veterano do caso Irã-Contras, no Pentágono. Dificilmente se poderia conceber um sinal mais rudimentar e mais demonstrativo de continuidade política. Nos últimos dois anos da administração republicana, os níveis de tropas americanas aumentaram em um quinto, para 150.000, em um 'aumento' que foi saudado por todo o espectro partidário como tendo esmagado a resistência iraquiana, preparando o país para um regime estável. futuro ocidental, esperançosamente até democrático. A nova Administração Democrática não se desviou em nada desse roteiro. O Acordo de Status de Forças de 3 anos assinado por Bush e seus colaboradores em Bagdá estipulava que todas as tropas americanas deixariam o Iraque até dezembro de 2011, embora um acordo subsequente pudesse obviamente estender sua permanência, e as forças de 'combate' dos EUA deixariam as cidades iraquianas. , aldeias e localidades até junho de 2009. Antes de sua eleição, Obama prometeu a retirada de todas as tropas americanas de 'combate' do Iraque dentro de dezesseis meses após sua posse, ou seja, até maio de 2010 - adornado com uma cláusula de segurança de que essa promessa poderia ser 'refinada ' à luz dos acontecimentos. Foi prontamente, com o anúncio de fevereiro de 2009 que as tropas de combate agora deixariam o Iraque em setembro de 2010, enquanto as 50.000 forças “residuais” também poderiam se engajar em operações de combate para “proteger nossos esforços civis e militares em andamento”. [7]

A carnificina e a devastação causadas no Iraque pelos Estados Unidos e seus aliados, principalmente a Grã-Bretanha, são agora bem conhecidas: a destruição do patrimônio cultural do país, o brutal desmembramento de sua infra-estrutura social, o roubo de seus recursos naturais, o estilhaçamento de seus bairros mistos e, sobretudo, a morte ou deslocamento de inúmeros de seus cidadãos - mais de um milhão de mortos; três milhões de refugiados; cinco milhões de órfãos, segundo dados do governo. [8] Sem desperdiçar palavras com nada disso, o Comandante-em-Chefe e seus generais têm outras preocupações. O Iraque pode agora ser considerado um posto avançado toleravelmente seguro do sistema americano no Oriente Médio? Eles têm motivos para exultar e motivos para duvidar. Em comparação com a situação no auge da insurgência em 2006, a maior parte do país hoje está sob o domínio de Bagdá, e as baixas americanas são poucas e raras. Um exército predominantemente xiita - cerca de 250.000 homens - foi treinado e armado até os dentes para lidar com qualquer ressurgimento da resistência. A limpeza sectária da capital, em uma escala da qual o Haganah poderia se orgulhar, eliminou a maioria dos bairros sunitas, dando pela primeira vez ao regime de Maliki, estabelecido por Bush, um controle firme sobre o centro do país. Ao norte, os protetorados curdos permanecem firmes bastiões do poder americano. Ao sul, as milícias de Moqtada al-Sadr foram mandadas embora. O melhor de tudo é que os poços de petróleo estão voltando para quem sabe fazer bom uso deles, já que os leilões distribuem arrendamentos de 25 anos para empresas estrangeiras. Alguns excessos podem estragar a cena em Bagdá, [9] mas o novo Iraque tem a bênção do sorriso do santo Sistani.

No entanto, persiste o pensamento inquieto de que a resistência iraquiana, capaz de infligir tamanho dano à máquina militar americana ainda ontem, pode estar apenas ganhando tempo após pesadas perdas e a deserção de um segmento importante, e ainda pode causar estragos nos colaboradores. amanhã, se os EUA se retirarem completamente. [10] Para garantir contra tal perigo, Washington colocou marcadores nos equivalentes modernos - muito maiores e mais hediondos - das antigas fortalezas dos cruzados. A base militar de Balad, ao alcance dos bombardeiros de Bagdá, é uma pequena cidade-estado americana. Contendo um aeroporto que é supostamente o mais movimentado do mundo depois de Heathrow, ele pode abrigar mais de 30.000 soldados e auxiliares americanos - uma força de trabalho imigrante composta principalmente por trabalhadores do sul da Ásia que limpam casas, cozinham e trabalham nas lanchonetes Subway; traficantes de drogas nunca faltam, enquanto prostitutas móveis do Leste Europeu atendem às outras necessidades de Balad. Quinze linhas de ônibus complementam o aeroporto, mas o deslocamento continua sendo um problema para alguns funcionários. [11] Outras treze bases militares e da força aérea estão espalhadas por todo o país, entre elas Camp Renegade perto de Kirkuk, para proteger os poços de petróleo, Badraj na fronteira iraniana, para espionagem na República Islâmica, e uma base britânica que remonta até a década de 1930 em Nasiriyah, atualizado para atender aos apetites americanos. Na própria Bagdá, entretanto, o procônsul americano já pode usufruir da maior e mais cara embaixada do mundo - é do tamanho da Cidade do Vaticano - no enclave fortificado da Zona Verde.

Depois de tomar o Iraque como presa colonial em 1920 e instalar a dinastia Hachemita como seu instrumento local, a Grã-Bretanha enfrentou uma rebelião em grande escala, que reprimiu apenas com dificuldade e selvageria total. Nos doze anos seguintes, Londres governou o país como uma dependência imperial, antes de finalmente renunciar ao seu 'mandato' - concedido pela Liga das Nações - em 1932. Mas o regime cliente que deixou para trás durou mais um quarto de século, até que finalmente foi derrubado na revolução de 1958. A tomada americana do Iraque provocou uma insurgência em grande escala ainda mais rápida, e que durou mais tempo, contra uma ocupação que gozava desta vez de um mandato das Nações Unidas. O império dos EUA também deixará para trás um regime fantoche para manter o país no futuro próximo. Nesse empreendimento, poderia haver poucos sucessores mais adequados para Ramsay MacDonald - aquela figura anterior bonita e esbelta que nunca perdia palavras edificantes - do que Barack Obama. Mas a história se acelerou desde aqueles dias, e há pelo menos uma chance de que Maliki e seus torturadores encontrem o destino de Nuri al-Said mais rapidamente, em outro levante nacional para erradicar bases militares estrangeiras, embaixadas enormes, empresas petrolíferas e seus colaboradores locais.

Ameaçando Teerã

Para as elites americanas, o Irã há muito representa um enigma: uma 'República Islâmica' cuspindo fogo publicamente contra o Grande Satã enquanto silenciosamente estende assistência a ele sempre que mais necessário, seja conluio com a contra-revolução na Nicarágua, invasão do Afeganistão ou ocupação do Iraque . Os governantes de Israel não recebem nenhum desses benefícios e têm uma visão mais obscura da retórica dos mulás, dirigida com maior ferocidade a eles e ao Pequeno Satã em Londres do que a seus patronos em Washington. Acima de tudo, uma vez que a perspectiva de um programa nuclear iraniano minando o monopólio israelense de armas de destruição em massa no Oriente Médio começou a surgir no horizonte, Tel Aviv galvanizou seus ativos nos Estados Unidos em uma campanha para garantir que Washington se comprometesse a derrubá-lo a todo custo. Não que houvesse muita resistência a superar, dado o grau em que os objetivos israelenses há muito foram internalizados como pouco menos que uma segunda natureza por nós, formuladores de políticas. Desprezando as aberturas do regime de Khatami para um acordo regional abrangente em 2003, a administração republicana procurou, em vez disso, forçar o Irã a cumprir o monopólio israelense, igualando as tiradas oratórias de Teerã e endurecendo as sanções econômicas contra ele.

Sem dizer muito explicitamente, Obama assumiu o cargo deixando claro que não era assim que as coisas deveriam ser feitas. Muito melhor seria iniciar um diálogo de perdão e esquecimento com Teerã, apostando no pragmatismo tradicional do regime e no manifesto pró-americanismo das camadas médias e jovens da população em geral, para chegar a um acordo diplomático amigável no interesse de todas as partes, despojar o Irã de uma capacidade nuclear em troca de um abraço econômico e político. Mas o momento foi azarado e o cálculo foi prejudicado pela polarização política no próprio Irã. As lutas entre facções no establishment clerical se intensificaram durante a eleição presidencial em junho de 2009, quando uma tentativa de sua ala mais abertamente pró-Ocidente de tomar o poder em uma onda de protestos (principalmente) da classe média foi reprimida por um contra-ataque em exercício que combinou fraude eleitoral e violência das milícias. Para Obama, a oportunidade de postura ideológica era grande demais para resistir. Em uma demonstração inigualável de hipocrisia, ele lamentou com os olhos úmidos a morte de um manifestante morto em Teerã no mesmo dia em que seus drones exterminaram sessenta aldeões, a maioria mulheres e crianças, no Paquistão. Com a mídia ocidental em pleno brado de apoio ao presidente, o candidato frustrado na disputa iraniana - historicamente um dos piores carniceiros do regime, responsável por execuções em massa nos anos 80 - foi convertido em mais um ícone do Mundo Livre. Esquemas para uma grande reconciliação entre os dois estados tiveram que ser postos de lado.

Após esta desventura, a Administração Democrática voltou à linha do seu antecessor, tentando encurralar a Rússia e a China - a aquiescência europeia pode ser dada como certa - num bloqueio económico ao Irão, na esperança de estrangular de tal forma o país que o Líder Supremo será derrubado ou obrigado a chegar a um acordo. Se tal pressão falhar, um ataque aéreo de caças-bombardeiros israelenses ou americanos contra as instalações nucleares iranianas continua sendo a ameaça de apoio. Embora ainda improvável, tal blitz não pode ser totalmente descartada, mesmo porque uma vez que o Ocidente em geral - neste caso, não apenas Obama, mas Sarkozy, Brown e Merkel - declarou intolerável qualquer capacidade nuclear iraniana, pouco espaço retórico para recuo é deixado se isso se materializar. [12] No passado, o medo da retaliação iraniana contra as instáveis posições americanas no Iraque provavelmente teria sido suficiente para deter tal ataque. Mas a influência de Teerã em Bagdá não é mais a mesma. Uma vez confiante de que o Iraque se tornaria em breve uma República Islâmica irmã, não pode mais ter certeza de que as relações entre os dois serão melhores do que entre os vários estados sunitas da região. No momento, o regime de Maliki sabe de que lado passa a manteiga no pão - o Irã nunca poderia igualar os dólares e as armas que recebe dos EUA, enquanto as pretensões de Sistani à preeminência sobre vários teólogos do outro lado da fronteira são de longa data. Ainda não está claro se as milícias de Moqtada al-Sadr agora são igualmente viáveis.

Ainda assim, até o momento, o Pentágono se opõe a qualquer aventura que possa arriscar estender suas forças através de uma zona de guerra que se estenderia do Litani ao Oxus, se a Guarda Revolucionária fomentasse operações no Líbano ou no oeste do Afeganistão. A ameaça de Teerã de retaliar com mísseis convencionais contra cidades israelenses também não deve ser descartada. Há também outros aliados de Washington a serem considerados. Israel e seus lobistas podem ser os principais impulsionadores da agitação contínua contra o Irã, mas não estão sozinhos. A monarquia saudita, uma ditadura confessional sui generis, continua temerosa de que uma combinação Teerã-Bagdá possa desestabilizar a Península: os xiitas constituem uma grande maioria no Bahrein e na região produtora de petróleo do próprio estado saudita. Mas os sauditas também estão cientes de que qualquer ataque direto a Teerã pode representar uma ameaça ainda maior ao seu governo, provocando revoltas xiitas que podem engolfá-los. Para Riad, é preferível uma rota alternativa em análise em Washington - inserir a Turquia na equação regional como um destacamento sunita do império, reforçando os petrodólares sauditas oferecidos à Síria para romper com o Irã. Isso serviria como um contra-ataque contra qualquer futuro eixo Teerã-Bagdá e isolaria o Hezbollah de Damasco, suavizando-o para outro ataque das IDF.

Querem reinventar Cabul

Da Palestina passando pelo Iraque até o Irã, Obama agiu como mais um fiel servidor do império norte-americano, perseguindo os mesmos alvos que seus predecessores, pelos mesmos meios, embora com retórica mais emoliente. No Afeganistão, foi mais longe, ampliando a frente de agressão, com escalada na violência tecnológica e territorial. Quando Obama tomou posse, o Afeganistão já estava ocupado pelos EUA e forças satélites, por mais de sete anos. Na campanha eleitoral, Obama – determinado a superar Bush naquela ‘guerra justa’ – pediu mais ataques com os aviões-robôs não tripulados para esmagar a resistência afegã; e mais invasões por terra, além da invasão pelos aviões-robôs no Paquistão para interromper de vez as linhas de apoio que vinham da fronteira. Aí está promessa bem cumprida. Nesse momento, mais 30 mil soldados estão sendo mandados às pressas para o Hindu Kush. Com eles, o exército norte-americano de ocupação chegará aos 100 mil soldados, comandados por um general escolhido por Obama em razão do sucesso de suas brutalidades no Iraque, onde suas unidades formavam uma elite especializada em assassinatos e torturas. Simultaneamente, está a caminho uma massiva intensificação do terror aéreo sobre o Paquistão. No que o New York Times delicadamente designou como “uma estatística que a Casa Branca não divulgou”, o jornal informou aos leitores que “desde a posse do presidente Obama, a CIA moveu mais ataques com aviões-robôs, os drones Predator, contra território paquistanês, do que ao longo dos oito anos de governo do presidente Bush” [13].

Não há mistério algum sobre a razão dessa escalada. Depois de invadir o Afeganistão em 2001, os EUA e seus auxiliares europeus impuseram lá um governo-fantoche inventado por eles mesmos, montado num encontro em Bonn, chefiado por um quadro da CIA e assessorado por um sortimento de senhores-da-guerra tadjiques, com uma coorte de ONGs que os cercam como pajens em corte medieval. Esse constructo-fantoche jamais gozou sequer de alguma mínima legitimidade local, nem aquela estreita mas legítima base com que contava o regime dos Talibã. Instalado em Cabul, os fantoches concentraram-se na exclusiva tarefa de enriquecer. Ajudas desencaminhadas e roubadas, corrupção generalizada, narcóticos – duramente reprimidos pelos Talibãs – corriam soltos. Karzai e companhia acumularam fortuna imensa: mais de 75% de todos os fundos enviados ao Afeganistão pelos países doadores acabaram diretamente dentro dos cofres dos aliados de Karzai, da Aliança do Norte ou de empresários privados usados por eles como intermediários. A construção de um novo hotel 5-estrelas e de um shopping center tornaram-se prioridades, em país que é um dos mais pobres do mundo; e os assassinatos e a tortura converteram em rotina a poucos passos do hotel e do shopping center; a base-prisão de Bagram converteu-se em câmara de horrores ante a qual Guantánamo pareceria civilizada. A produção de ópio alcançou números que jamais alcançara em todos os tempos, crescendo mais de 90% em relação aos níveis de 2001, quando estava confinada às regiões controladas pela Aliança do Norte; espalhou-se para sul e oeste, sob a batuta do clã Karzai. A massa dos afegãos mais pobres recebeu pouco ou nada dos benefícios da nova ordem imposta, exceto maiores perigos e risco de morte muito mais alto, quando as forças reorganizadas dos neo-Talibãs começaram a atacar os exércitos ocupantes, e bombas da OTAN começaram a chover sobre vilas e aldeias. A tal ponto que Karzai viu-se várias vezes obrigado a protestar. [14]

Em junho de 2009, os guerrilheiros afegãos controlavam vastas áreas do país e tinham vários agentes infiltrados na polícia e nas unidades militares oficiais. Adotando táticas de IEDs [ing. Improvised Explosive Device] desenvolvidas no Iraque para ataques em estradas e suicidas-bombas, estavam infligindo pesadas baixas na ocupação ocidental e seus colaboradores. No próprio campo imperial, crescia o desassossego e a confusão. [15] Os funcionários norte-americanos, militares e diplomatas, contradiziam-se publicamente, sem qualquer acordo sobre até que ponto os EUA deveriam servir como avalistas da farsa de democracia que Karzai encenava como se fossem eleições; uns apoiavam, outros rejeitavam. Naquele evento, depois de veementes denúncias de fraude pelo primeiro mandatário dos EUA em Washington, e depois de manifestar-se favorável a um segundo turno de eleições, Obama consumou a farsa ao congratular-se publicamente com Karzai, por uma vitória mais visivelmente fraudada, até, que a de Ahmadinejad, dois meses antes; na ocasião, o presidente Obama não economizou palavras duras. Diferente do regime em Teerã, que tem base social de legitimidade, diminuída hoje, mas ainda existente, o que se faz passar por governo em Cabul é um implante ocidental na região, que se desintegrará da noite para o dia, no instante em que for abandonado pela guarda pretoriana da OTAN que lá está para protegê-lo.

Pendurado em Islamabad, Paquistão

Desesperadamente necessitado de alguma vitória em sua ‘guerra justa’ escolhida, Obama lançou-se no clássico movimento de ‘fuga para adiante’, despachando força expedicionária ainda maior e estendendo a guerra também ao país vizinho, onde se suspeita que o inimigo encontre ‘paraísos seguros’. Desde o início de seu governo, já estava inventada uma nova zona ‘integrada’ de guerra, uma nova entidade formada de Paquistão e Afeganistão, mas rebatizada como “Af-Pak”. Uma torrente de emissários foi despachada para Islamabad para comandar o Estado paquistanês na direção das missões de repressão e violência que passavam a ser atribuição sua. [16] Os 2.460 quilômetros de fronteira entre o Afeganistão e o que é hoje o Paquistão são limite muito poroso desde que o Império Britânico demarcou a Linha Durand, em 1893. 16 milhões de pashtuns vivem no sul do Afeganistão, 28 milhões na Província Fronteira Noroeste, no Paquistão. É impossível policiar aquela fronteira, e praticamente não se vêem os deslocamentos nas duas direções, porque as várias tribos que por ali circulam falam o mesmo dialeto e muitas vezes já estão unidas em famílias comuns por casamentos intertribais, dos dois lados. Os guerrilheiros afegãos buscam e encontram abrigo em praticamente toda a região, o que não é segredo para ninguém. Para que a OTAN ou o Exército Paquistanês conseguissem deter esse fluxo, teriam de mobilizar no mínimo 250 mil soldados em campanhas de aniquilação semelhantes às de Chiang Kai-shek nos anos 30. No governo de Musharraf – e sob as ameaças do Pentágono, de que se o Paquistão não concordar, será bombardeado até ser devolvido à Idade da Pedra –, o Exército Paquistanês converteu-se, de patrão em inimigo de morte dos Talibãs no Afeganistão, mas sempre só nas camadas superficiais. O Exército Paquistanês sabe perfeitamente bem que está sendo obrigado a influenciar Cabul a favor da Índia... Índia a qual, por sua vez, não perdeu tempo e já pôs Karzai sob suas asas. Musharraf fez o máximo que pôde para satisfazer os EUA, permitindo que soldados das Forças Especiais e aviões-robôs teleguiados, os drones Predator, invadam sem qualquer restrição o Paquistão, e delatando todos os agentes da al-Qaeda de que teve notícia. Mas, de fato, Washington jamais engoliu completamente a ideia de que esse tipo de ‘segurança’ bastasse, o que, numa espécie de reação de desconfiança, faz com que, cada dia mais, aumente o desprezo que a maioria dos paquistaneses sente por quem negocie com os EUA.

Quando Obama chegou ao poder, dois desenvolvimentos haviam alterado essa cena. Incessantemente empurrado pelo Pentágono, entre 2004 e 2006 Musharraf mandou o Exército Paquistanês nove vezes para as Áreas Tribais de Administração Federal [ing. Federally Administered Tribal Areas (FATA)], os sete setores montanhosos não incluídos na jurisdição da Província da Fronteira Noroeste – onde a autoridade do governo central sempre foi vestigial –, para deter a infiltração dos Talibãs. Como resultado só conseguiu estimular na população solidariedade cada vez maior e desejo sempre crescente de participar da resistência afegã. Assim chegou-se a dezembro de 2007, com a formação da Tehrik-i-Taliban paquistanesa, guerrilha brutal e nativa dedicada a combater diretamente contra Islamabad e Musharraf. (Ao contrário do que supõe o ocidente, esse grupo não é subsidiário ou fruto dos neo-Talibãs afegãos, como o comprova o levante de Mullah Omar contra o ocidente. Muito claramente, Omar insistia em que o alvo não seria o Exército Paquistanês; que o inimigo real sempre foram EUA e OTAN.)

Em 2008, o próprio Musharraf foi derrubado. Foi substituído na presidência pelo infame viúvo de Benazir Bhutto, Asif Zardari, escroque conhecido e desacreditado, que se ofereceu como espantalho a serviço dos EUA. A embaixadora dos EUA, Anne Patterson – recém desembarcada depois da missão de armar o governo Uribe na Colômbia – em pouco tempo já se servia da boa-vontade de Zardari. E os frutos não tardaram a brotar. Em abril de 2009, Zardari ordenou que o Exército ocupasse o distrito de Swat na Província da Fronteira Noroeste, que dois meses antes havia sido tomada pela brutal milícia Tehrik-i-Taliban Paquistanesa (TTP). Violento assalto com armamento militar pesado empurrou os guerrilheiros TTP de volta às montanhas e criou dois milhões de refugiados expulsos de suas casas e terras. Empolgado por esse impressionante sucesso humanitário, Obama forçou Zardari a mandar o exército para a própria área tribal de administração federal, FATA, em outubro, para empurrar para o ralo os guerrilheiros Talibãs – e já pouco importava que fossem afegãos ou paquistaneses, desde que fossem empurrados para o ralo – do Waziristão Sul e Bajaur. Mais centenas de milhares de homens e mulheres e crianças das tribos daquelas regiões foram expulsos de suas casas e terras, com o ronco dos bombardeiros dos EUA explodindo sobre (literalmente) suas cabeças, enquanto corriam desesperados sem saber para onde ir.[17] Em novembro, o Exército do Paquistão anunciou “o fim da ofensiva”. A guerrilha aparentemente foi varrida da face da terra

Até que ponto pode avançar esse tipo de limpeza étnica doméstica, e a que tipo de resultados levará, ainda não se sabe. O que já se sabe é que, ao forçar o Exército do Paquistão a atirar contra as tribos paquistanesas, com as quais o Exército e todos os militares sempre viveram em bons termos, Obama obra para desestabilizar mais uma sociedade, no interesse do império dos EUA. Hoje, os ataques por homens e mulheres-bombas estão convertidos em tragédias semanais nas grandes cidades do Paquistão – vãos e desesperados atos de vingança contra a repressão na região da fronteira. Zardari e sua trupe cambaleiam, depois que a imunidade que Musharraf lhe garantira, nas acusações de corrupção, foi derrubada na Suprema Corte do Paquistão. Há boa chance de que o PPP [ing. Pakistan Peoples Party], partido já corroído pelos vermes, e desgraça que assola o país desde o segundo mandato de Benazir Bhutto, rache e desapareça depois do fim de Zardari. [18] Washington resistirá ao fim desse escroque e escroqueria, mas pode confiar plenamente nos generais estrelados do Exército para que lhe ofereçam substituto funcional à altura, como sempre aconteceu no passado. O Exército Paquistanês jamais produziu oficialato jovem patriótico capaz de eliminar o alto comando, expulsar as agências estrangeiras e impor reformas, como viu-se algumas vezes na América Latina e no mundo árabe. A subserviência do Exército do Paquistão aos EUA é estrutural, mesmo que nem sempre tenha sido total. Dependente de massivos aportes de dinheiro e equipamento norte-americanos, o Exército do Paquistão não se atreve a desafiar Washington abertamente, mesmo quando obrigado a agir contra seus próprios interesses; muito encobertamente, sempre buscou manter alguma margem de autonomia, enquanto persiste a confrontação com a Índia. Arrasará seus próprios cidadãos, se os EUA assim ordenarem, sim; mas não a ponto de incendiar irremediavelmente as áreas tribais, nem colaborará até o final para extirpar toda a resistência nas áreas de fronteira.

Duplicating Saigon?

With this expansion, what are the prospects for Obama’s ‘just war’? Comparing the American with the Soviet occupation of Afghanistan, two major differences stand out. The regime created by the us is far weaker than that protected by the ussr. The latter had a genuine local basis, however much it abused it: never just an alien graft, the pdpa generated an army and administration capable of surviving the departure of Soviet troops. The Najibullah government was eventually overthrown only thanks to massive outside assistance from the us, Saudi Arabia and Pakistan. But in that assistance lies the second decisive contrast. Unlike the fighters who entered Kabul in 1992, bankrolled and armed to the teeth by foreign powers, the Afghan resistance of today is all but completely isolated: anathema not only to Washington, but to Moscow, Beijing, Dushanbe, Tashkent, Tehran, able at most to count on a sporadic, furtive tolerance from Islamabad.

That is why comparisons with Vietnam, though they are telling in so many other respects—moral, political, ideological—in military terms are less so. At one level Obama’s arrogant escalation of the war in Afghanistan could be said to combine the hubris of Kennedy in 1961 with that of Johnson in 1965, even of Nixon in 1972, whose bombing of Cambodia bears more than one resemblance to current operations in Pakistan. But there is no draft to disaffect American youth; no Soviet or Chinese aid to sustain the guerrilla; no anti-imperialist solidarity to weaken the system in its homelands. On the contrary, as Obama likes to explain, no less than 42 countries are lending a hand to help his embarrassing marionette in Kabul dance a good show. [19] No world-historical spectacle could be more welcome than the American proconsul fleeing once again by helicopter from the roof of the embassy, and the motley expeditionary forces and their assorted civilian lackeys kicked unceremoniously out of the country along with him. But a second Saigon is not in prospect. Monotonous talk of the end of American hegemony, the universal cliché of the period, is mostly a way of avoiding serious opposition to it.

If a textbook illustration were needed of the continuity of American foreign policy across administrations, and the futility of so many soft-headed attempts to treat the Bush–Cheney years as exceptional rather than essentially conventional, Obama’s conduct has provided it. From one end of the Middle East to the other, the only significant material change he has brought is a further escalation of the War on Terror—or ‘Evil’, as he prefers to call it—with Yemen now being sighted as the next target. [20] Beyond, the story is much the same. Renditions—torture by proxy—are upheld as a practice, while their perpetrators continue to lounge at their ease in Florida or elsewhere, ignoring extradition warrants under Obama’s protection. Domestic wire-taps continue. A coup in Central America is underwritten. New military bases are set up in Colombia.

Imitando Wilson

Ainda assim, seria um erro pensar que nada mudou. Nenhum Governo é igual ao outro e cada Presidente deixa a sua marca. Substancialmente, muito pouco do domínio imperial americano mudou sob Obama. [21] Mas propagandisticamente, houve uma atualização significativa. Não é por acaso que um importante colunista - e um dos mais inteligentes - conseguiu, apenas meio ironicamente, listar os cinco eventos mais importantes de 2009 como tantos discursos de Obama. [22] No Cairo, em West Point, em Oslo, o mundo foi presenteado com uma homilia edificante após a outra, cada discurso repleto de todos os eufemismos flagrantes que os redatores de discursos da Casa Branca podem reunir para descrever a brilhante missão da América no mundo, e declaração modesta de admiração e senso de responsabilidade em levá-lo adiante.

"Devemos dizer abertamente uns aos outros as coisas que guardamos em nossos corações" é o tom característico. ‘Nosso país carrega um fardo especial nos assuntos globais. Derramamos sangue americano em muitos países em vários continentes. Gastamos nossa receita para ajudar outros a se reconstruir dos escombros e desenvolver suas próprias economias. Juntamo-nos a outros para desenvolver uma arquitetura de instituições - das Nações Unidas à OTAN e ao Banco Mundial - que proporcionam a segurança comum e a prosperidade dos seres humanos”. 'A luta contra o extremismo violento não terminará rapidamente e se estenderá muito além do Afeganistão e do Paquistão... Nosso esforço envolverá regiões desordenadas, estados falidos, inimigos difusos'. ‘Nossa causa é justa, nossa determinação inabalável. Seguiremos em frente com a confiança de que o certo faz o poder”. No Oriente Médio, há “tensões” (o termo ocorre nove vezes em seu discurso à claque de Mubarak em al-Azhar) e uma “crise humanitária” em Gaza. Mas “os palestinos devem renunciar à violência” e “o povo iraquiano está em situação melhor” com as ações americanas. Em Oslo: ‘Não se engane: o mal existe no mundo’. ‘Dizer que a força às vezes pode ser necessária não é um apelo ao cinismo – é um reconhecimento da história; as imperfeições do homem e os limites da razão.” No Cairo: “Resistir pela violência e matar é errado”. Resumindo: se os EUA ou Israel travam uma guerra, é um dever moral lamentável. Se palestinos, iraquianos ou afegãos resistem a eles, é um beco sem saída imoral. Como Obama gosta de dizer, “Somos todos filhos de Deus” e “Esta é a visão de Deus”. [23]

Se a banalidade sonora e a hipocrisia blindada são as marcas desse estilo presidencial, isso não o torna menos funcional para a tarefa de servir e reparar as instituições imperiais que Obama e Clinton agora presidem. Nada irritava mais a opinião internacional do que a falta de unção necessária com a qual Bush e Cheney muitas vezes cuidavam de seus negócios, expondo aliados e audiências de outra forma favoráveis à liderança americana a verdades inconvenientes que eles prefeririam não ouvir. Historicamente, o modelo para a atual variante da Presidência imperial tem sido Woodrow Wilson, um cristão não menos piedoso, cuja cada segunda palavra era paz, democracia ou autodeterminação, enquanto seus exércitos invadiam o México, ocupavam o Haiti e atacavam a Rússia, e seus tratados entregou uma colônia após a outra para seus parceiros na guerra. Obama é uma versão de segunda mão do mesmo, sem nem mesmo Quatorze Pontos para trair. Mas ainda não pode ir muito longe para satisfazer aqueles que anseiam por isso, como o prêmio a Obama do que García Márquez uma vez chamou de Prêmio Nobel da Guerra mostrou graficamente. Depois de mentir o suficiente para os eleitores - prometendo paz e entregando a guerra - Wilson foi reeleito para um segundo mandato, embora não tenha terminado bem para ele. Em tempos mais combativos, Johnson foi forçado a renunciar em ignomínia por seu belicismo, sem poder enganar os eleitores novamente. Doze anos depois, um desastre em Teerã ajudou a afundar Carter. Se os recentes reveses para os democratas na Virgínia Ocidental e em Nova Jersey - onde os eleitores democratas ficaram em casa - se tornarem um padrão, Obama poderá ser o terceiro presidente de um mandato, abandonado por seus partidários e ridicularizado por aqueles que ele tanto tenta conciliar.

Notas:

[1] ‘Remarks with Israeli Prime Minister Binyamin Netanyahu’, Jerusalém, 31/10/2009, em http://www.state.gov/secretary/rm/2009a/10/131145.htm.

[2] Em entrevista à Rádio do Exército de Israel, em hebraico, a filha do juiz Goldstone, Nicole Goldstone, disse: “Meu pai aceitou esse trabalho, porque acreditava que estaria trabalhando pela paz para todos, também para Israel. (...) Não foi fácil. Meu pai não esperava ver e ouvir o que viu e ouviu”. E disse ao entrevistador que, dependesse de seu pai, o relatório teria sido muito mais duro. Deve-se acrescentar que, não fosse pela participação de uma advogada paquistanesa, Hina Jilani, na mesma missão de investigação, o relatório teria sido muito mais ‘macio’.

[3] Os israelenses impuseram a sanção máxima: se Abbas endossasse o Relatório Goldstone, cancelava-se o negócio de telefonia com uma empresa israelense, e o pessoal da OLP perderia empregos e comissões.

[4] Deve-se registrar que ambos, o Bispo Tutu e Ronnie Kasrils, ex-ministro de Defesa do governo de Mandela, discordam veementemente dessa analogia. Para ambos, as condições nas quais vivem os palestinos nos territórios ocupados é muitas vezes pior do que a dos negros nos bantustões

[5] Ver ROSE, David, ‘The Gaza Bombshell’, Vanity Fair, April 2008.

[6] Por exemplo, ver Ari Shavit, ‘Netanyahu is Positioning Himself to the Left of Rabin’, Haaretz, 6/12/2009.

[7] Obama speech at Camp Lejeune, North Carolina, 27 February 2009.

[8] Cultural Cleansing in Iraq: Why Museums were Looted, Libraries Burned and Academics Murdered, edited by Raymond Baker, Shereen Ismael and Tareq Ismael, London 2009, contains detailed figures and sources, amongst which the fact that from 2003–07, Washington only allowed 463 refugees, mainly professional Iraqis of Christian origin, into the United States. For an illuminating survey of the history of Iraqi oil and the privatized looting now under way, see Kamil Mahdi, ‘Iraq’s Oil Law: Parsing the Fine Print’, World Policy Journal, Summer 2007.

[9] Here is the Economist: ‘Old habits from Saddam Hussein’s era are becoming familiar again. Torture is routine in government detention centres . . . Iraqi police and security people are again pulling out fingernails and beating detainees, even those who have already made confessions. A limping former prison inmate tells how he realized, after a bout of torture in a government ministry that lasted for five days, that he had been relatively lucky. When he was reunited with fellow prisoners, he saw that many had lost limbs and organs. The domestic-security apparatus is at its busiest since Saddam was overthrown six years ago, especially in the capital. In July the Baghdad police reimposed a nightly curfew, making it easier for the police, taking orders from politicians, to arrest people disliked by the Shia-led government.’ See ‘Could a Police State Return?’, 3 September 2009.

[10] General Petraeus recently announced that attacks on us forces in Iraq were down to ‘only’ 15 a day: Financial Times, 2 January 2010. Not Maliki but Muntadhar al-Zaidi, the Baghdad shoe-thrower, represents the sentiments of most Iraqis, regardless of ethnic or confessional origin.

[11] ‘It takes the masseuse, Mila from Kyrgyzstan, an hour to commute to work by bus on this sprawling American base. Her massage parlour is one of three on the base’s 6,300 acres and sits next to a Subway sandwich shop in a trailer, surrounded by blast walls, sand and rock’, writes Marc Santora: ‘Big us Bases Are Part of Iraq, but a World Apart’, New York Times, 8 September 2009.

[12] In Illinois in 2004, I watched Obama interviewed on network television in the run-up to the Senate election he subsequently won. Asked whether he would back Bush if he decided to bomb Iran, the future President did not hesitate for a moment. He put on a warlike look and said that he would.

[13] David Sanger, ‘Obama Outlines a Vision of Might and Right’, New York Times, 11 December 2009.

[14] Most recently on 27 December when a us black-ops unit killed 10 civilians on the same day as Ahmadinejad’s militias killed 5 demonstrators in Tehran.

[15] See the letter from Matthew Hoh, a former Marine captain who served as a political officer in Iraq and subsequently Afghanistan, and resigned in September 2009. ‘The Pashtun insurgency, which is composed of multiple, seemingly infinite, local groups, is fed by what is perceived by the Pashtun people as a continued and sustained assault, going back centuries, on Pashtun land, culture, traditions and religion by internal and external enemies . . . In both rc East and South, I have observed that the bulk of the insurgency fights not for the white banner of the Taliban, but rather against the presence of foreign soldiers and taxes imposed by an unrepresentative government in Kabul . . . If honest, our stated strategy of securing Afghanistan to prevent al-Qaeda resurgence or regrouping would require us to additionally invade and occupy western Pakistan, Somalia, Sudan, Yemen, etc.’ See Ralph Nader, ‘Hoh’s Afghanistan Warning’, CounterPunch, 4 November 2009.

[16] Inter-Risk, the Pakistani subsidiary of us defence contractor DynCorp, was recently raided by local police, who seized ‘illegal and sophisticated weaponry’. The company’s boss, a retired Captain Ali Jaffar Zaidi, informed reporters that us officials in Islamabad had ordered the import of prohibited weapons ‘in Inter-Risk’s name’, promising that payment would be made by the us embassy. Anwar Abbasi, ‘Why the us security company was raided’, The News, 20 September 2009.

[17] For the estimated number of refugees in Swat and fata, see Mark Schneider, ‘fata 101: When the Shooting Stops’, Foreign Policy, 4 November 2009. Schneider is Senior Vice President of the impeccably Establishment International Crisis Group.

[18] The us-brokered deal that allowed Zardari and his late wife to return to the country during the Musharraf period was pushed through via a hurriedly concocted ‘National Reconciliation Ordnance’ pardoning politicians charged with various crimes. Last November, the National Assembly in Pakistan refused to vote in favour of renewing the Ordnance. The re-instated Chief Justice did the rest. On 16 December 2009, a cold, crisp winter afternoon in Islamabad, the full bench of the Supreme Court of Pakistan—sixteen senior judges and the Chief Justice—declared the Ordnance null and void. Few doubt that the Zardari interregnum is almost over. This particular us drone can now be returned safely to base in Dubai or Manhattan.

[19] In Oslo Obama could duly congratulate the Nobel Peace Prize committee on the Norwegian troop contingent in Afghanistan, along with those from Albania, Armenia, Australia, Austria, Azerbaijan, Belgium, Bosnia and Herzegovina, Bulgaria, Canada, Croatia, the Czech Republic, Denmark, Estonia, Finland, France, Georgia, Germany, Greece, Hungary, Iceland, Ireland, Italy, Jordan, Latvia, Lithuania, Luxembourg, Macedonia, the Netherlands, New Zealand, Poland, Portugal, Romania, Singapore, Slovakia, Slovenia, Spain, Sweden, Turkey, Ukraine, the United Arab Emirates and the uk.

[20] On 27 December 2009 Obama announced the doubling of us military expenditure on Yemen. The Economist noted that ‘On his [Obama’s] watch American drones and special forces have been busier than ever, not only in Afghanistan and Pakistan but also, it is reported, in Somalia and Yemen’: 30 December 2009.

[21] Hence in part the disenchantment of many erstwhile Obama partisans, which has surfaced with striking rapidity compared to the relatively long liberal love affair with Bill Clinton. Nonetheless, their explanations have tended to blame structural constraints rather than the incumbent himself: Garry Wills sees the well-meaning president as caught in the cogs of the us imperial state apparatus (‘The Entangled Giant’, New York Review of Books, 8 October 2009), while Frank Rich has angrily attacked lobbyists for undermining Obama’s ‘promise to make Americans trust the government again’ (‘The Rabbit Ragu Democrats’, New York Times, 3 October 2009). For Tom Hayden, the ‘expedient’ decision to boost force levels in Afghanistan is ‘the last in a string of disappointments’, despite the fact that Obama had pledged to do so in his campaign; but though Hayden is removing his bumper sticker, he will still be ‘supporting Obama down the road’ (‘Obama’s Afghanistan Escalation’, Nation, 1 December 2009).

[22] Gideon Rachman, ‘The Grim Theme Linking the Year’s Main Events’, Financial Times, 23 December 2009.

[23] ‘Remarks by the President on a New Beginning’, Cairo, 4 June 2009; ‘Remarks by the President to the Nation on the Way Forward in Afghanistan and Pakistan’, West Point, 1 December 2009; Nobel Peace Prize acceptance speech, Oslo, 11 December 2009; ‘Remarks by the President to the Ghanaian Parliament’, Accra, 11 June 2009. The tropes of ‘imperfect man’ and ‘limited reason’ are borrowed from the vapourings of Reinhold Niebuhr, pastor of Cold War consciences, for whom see Gopal Balakrishnan, ‘Sermons on the Present Age’, below. Niebuhr could, however, on occasion be less of a humbug than his pupil. Rather than pious guff about the ‘two suffering peoples’, he had the honesty to call a Zionist spade a spade: in 1942, observing that ‘the Anglo-Saxon hegemony that is bound to exist in the event of an Axis defeat will be in a position to see to it that Palestine is set aside for the Jews’, he argued that ‘Zionist leaders are unrealistic in insisting that their demands entail no “injustice” to the Arab population’. The latter would have to be ‘otherwise compensated’. (‘Jews after the War—ii’, Nation, 28 February 1942.)

Duas revoluções

Como explicar os resultados opostos para o comunismo na Rússia e na China, depois de 1989? Classes e líderes, anciens régimes e cenários externos, examinados em perspectiva comparativa.

Perry Anderson

New Left Review


Tradução / Se o século 20 foi dominado pela trajetória da Revolução Russa, mais do que por qualquer outro evento singular, o século 21 será configurado pelo resultado final da Revolução Chinesa. O Estado soviético, nascido da Primeira Guerra Mundial, vitorioso na Segunda, derrotado na réplica"fria" de uma Terceira, desintegrou-se após sete décadas quase sem um tiro, tão rapidamente quanto surgira. O que restou foi uma Rússia menor em superfície do que aquela que o Século das Luzes conheceu, com menos da metade da população da antiga União Soviética, restituída a um capitalismo mais dependente da exportação de matérias-primas do que nos últimos dias do tsarismo. Embora não se possam descartar futuras reviravoltas, no momento o que restou do levante de outubro, em qualquer sentido positivo, não parece ser grande coisa. Seu feito mais transcendente, deveras extraordinário, foi negativo: a derrota do nazismo, o que nenhum outro regime europeu teria sido capaz de alcançar. Esse, de qualquer modo, é um juízo consensual hoje em dia.

O desfecho da Revolução Chinesa oferece um impressionante contraste. Ao entrar na sua sétima década, a República Popular é uma força motriz da economia mundial; o maior exportador, seja para a União Europeia, o Japão ou os Estados Unidos; o maior detentor de reservas cambiais do mundo; o país que. durante um quarto de século apresentou o maior e mais rápido crescimento da renda per capita jamais registrado, e para a maior população do mundo. Suas grandes cidades não têm rivais em matéria de ambição comercial e arquitetônica, seus produtos são vendidos em toda parte. Seus empreiteiros, agentes comerciais e diplomatas cruzam o mundo em busca de novas oportunidades de negócios e áreas de influência. Cortejado tanto por antigos inimigos quanto por amigos, pela primeira vez na sua história o Reino do Meio se tornou uma verdadeira potência mundial, estendendo sua presença a todos os continentes. Com a queda da URSS, nenhuma outra fórmula para caracterizar a virada histórica que ela significou se tornou tão sacramentada quanto o "colapso do comunismo". 20 anos depois, ela soa um tanto eurocêntrica. Em certo sentido, o comunismo não apenas sobreviveu como se tornou a história exitosa dos tempos atuais. Naturalmente, o caráter e a escala desse feito encerram mais de uma (amarga) ironia. Já quanto à sorte diversa das revoluções na China e na Rússia, resta pouca dúvida.

Onde estaria a explicação desse contraste? Não obstante o peso histórico-mundial da questão, ela não tem sido muito discutida. O que está em pauta, naturalmente, não é apenas uma comparação entre duas sublevações similares, porém distintas, que não guardam relação entre si quanto ao mais, dados os seus diferentes contextos, a exemplo da analogia antes familiar entre 1789 e 1917. A Revolução Chinesa proveio diretamente da Revolução Russa e permaneceu ligada a ela, como inspiração ou admoestação, até o final dos anos 1980, quando chegou a hora da verdade para ambas. As duas experiências não foram independentes uma da outra, mas formaram conscientemente uma sequência ordinal[2]. Esse vínculo entra em qualquer apreciação de seus diferentes resultados. A explicação destes, por sua vez, requer reflexão sobre certo número de aspectos. Aqui, distinguiremos quatro deles. Primeiro, como se diferenciavam os agentes políticos subjetivos das duas revoluções - isto é, os respectivos partidos em cada país e as estratégias que implementaram? Segundo, quais eram os dados objetivos iniciais - as condições socioeconômicas e outras - com base nos quais cada partido embarcou no seu programa de reformas? Terceiro, quais foram as consequências concretas das políticas que adotaram? Por último, quais legados, na Zangue durée da história de ambas as sociedades; podem ser vistos como fatores subjacentes determinantes do resultado final das revoluções e das reformas? isto que a República Popular da China (RPC) sobreviveu à URSS e seu futuro talvez constitua a principal incógnita da política mundial, o foco organizado r destas anotações será a China, tal como vista no espelho russo - não o único relevante, como ficará claro, mas uma condição iniludível de tudo o mais.

I. Matrizes

A Revolução de Outubro, como é notório, foi uma rápida insurreição urbana que em questão de dias tomou o poder nas grandes cidades da Rússia. A rapidez com que derrubou o governo provisório foi igualada pela cristalização do partido que a realizou. Os bolchevistas, que não somavam mais de 24 mil em janeiro de 1917, às vésperas da abdicação de Nicolau lI, já superavam 200 mil quando, nove meses mais tarde, derrubaram o regime de Kerensky. A sua base social era a jovem classe operária russa, que correspondia a menos de 3% da população. Eles não tinham nenhuma presença no campo, onde vivia mais de 80% da população, jamais tendo cogitado organizar o partido entre os camponeses - o que tampouco ocorreu aos socialistas revolucionários, embora estes tivessem recebido maciço apoio rural em 1917. Essa rápida vitória a partir de uma margem de apoio ainda exígua foi possibilitada pela desintegração do Estado tsarista, diante dos devastadores ataques alemães na Primeira Guerra Mundial- os fracassos militares deflagrando motins que pulverizaram seu aparelho repressivo, visto que a Revolução de Fevereiro produzira um governo sucessor instável e esvaziado de autoridade.

Contudo, se o poder foi facilmente tomado nesse vácuo, seria muito mais difícil conservá-lo. Vastas extensões do território caíram sob o domínio alemão. Quando a própria Alemanha foi derrotada em 1918, dez forças expedicionárias diferentes - norte-americana, britânica, canadense, sérvia, finlandesa, romena, turca, grega, francesa e japonesa - foram despachadas para ajudar os exércitos brancos a esmagar o novo regime, numa cruenta guerra civil que se prolongou até 1920. Quando esta chegou ao fim, completando o quadro de destruição deixado pela Grande Guerra, a Rússia estava em ruínas: escassez crônica de alimentos nas aldeias, fábricas abandonadas nas cidades, a classe operária pulverizada pelos combates e pela desindustrialização do país. O partido de Lênin, com sua base social desintegrada ou absorvida pelas estruturas do novo Estado, emergiu da guerra civil como um aparato de poder isolado, suspenso sobre uma paisagem devastada: seu governo era associado agora às misérias da guerra intestina, mais do que às promessas de paz e de distribuição de terras feitas após outubro.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que o partido criou mediante um supremo esforço, cobria a maior parte do antigo império russo. Mas, primeiro Estado moderno da história a recusar qualquer definição territorial, a emergente URSS não fez qualquer chamamento ao orgulho patriótico ou à construção nacional. Seu apelo era internacional: dirigia-se à solidariedade do movimento trabalhista mundial. Após tomar o poder num país tão vasto quanto atrasado, cuja economia era predominantemente agrária e cuja população era em grande parte analfabeta, os bolchevistas contavam com revoluções nos países europeus mais desenvolvidos e industrializados para resgatá-los da difícil posição de um compromisso radical com o socialismo num país que não apresentava os pré-requisitos de nenhum capitalismo coerente. Uma aposta que os sitiados governantes perderam depressa, desde o início ela nada significou para a massa dos governados. O partido soviético teria de aguentar por suas próprias forças e tentar avançar o mais rapidamente possível para uma nova forma de sociedade, sem contar com muito apoio no plano doméstico e sem nenhuma ajuda externa.

2

A Revolução Chinesa, embora inspirada pela russa, inverteu praticamente todos os seus termos. O Partido Comunista da China (PCC), fundado em I921, ainda não contava mil membros quatro anos mais tarde, quando, pela primeira vez, começou a se tornar uma força política expressiva, nascida da explosão da militância operária nas cidades costeiras suscitada pelo movimento de 30 de maio de I925, e auxiliada pelo papel crucial dos assessores e suprimentos soviéticos no incipiente regime do Guomindang (GMD) liderado por Sun Yat-sen em Cantão. Entre esse momento fundador e a conquista do poder pelos comunistas na China, houve conflitos que se estenderam por um quarto de século. Seus marcos são bastante conhecidos - a expedição ao norte de I926, que uniu nacionalistas e comunistas contra os regimes dos principais senhores guerreiros; o massacre dos comunistas por Chiang Kai-shek em Xangai, em I927; o Terror Branco que se seguiu; o estabelecimento do soviete do liangxi em I93I, e as cinco campanhas de aniquilação movidas contra ele pelo GMD; a Longa Marcha do exército vermelho para Yari'an em I934-I935 e a criação de regiões fronteiriças governadas pelo PCC no noroeste; a Frente Unida com o GMD contra o invasor japonês em I937-I945; e, por fim, a guerra civil de I946-I949, em que o Exército de Libertação Popular (ELP) arrebatou o país.

Mais que a simples temporalidade totalmente diversa dessa experiência a separa da reviravolta na Rússia. A forma pela qual o poder foi conquistado foi inteiramente distinta. Se é possível definir o Estado, segundo a famosa fórmula de Weber, como o exercício do monopólio da violência legítima sobre um determinado território, uma revolução sempre implica na ruptura desse monopólio e na emergência daquilo que Lênin e Trotsky chamaram de poder dual. Logicamente, existem três modos pelos quais isso pode ocorrer, correspondentes aos três termos da fórmula de Weber. Uma revolução pode quebrar o monopólio de poder do Estado, destruindo a base de legitimidade de seu governo, de modo que este se veja impossibilitado de exercer coerção para reprimir o movimento que se lhe opõe. A Revolução Iraniana, na qual não houve conflitos, ficando o exército real paralisado enquanto a monarquia caía, seria um exemplo. Como outra opção, uma revolução pode provocar o confronto de uma violência insurgente com o aparelho repressivo do Estado, dominando-o mediante um golpe rápido e decisivo, sem ter assegurado nenhuma legitimidade expressiva. Esse foi o modelo russo, possível apenas contra um adversário fraco.

Finalmente, uma revolução pode quebrar o monopólio de poder do Estado sem primeiro esvaziar sua legitimidade ou neutralizar rapidamente sua capacidade para a violência, mas subtraindo-lhe território suficiente para erguer um Estado paralelo, capaz de solapar com o tempo o seu controle da força e do consentimento. Esse foi o modelo chinês. Não foi exclusivo da China, tendo caracterizado a trajetória geral das forças guerrilheiras - sejam iugoslavas ou cubanas - rumo ao poder. O excepcional no caso chinês não foi a criação de sucessivos "estados rebeldes" dentro do Estado, mas sua duração combinada. São as condições dessa longevidade que requerem explicação.

Na virada do século, a monarquia Romanov, apesar de suas próprias vulnerabilidades, era incomparavelmente mais forte que a Qing: uma instituição autóctone que contava não somente com bolsões de indústria avançada e abundantes recursos naturais, mas também com um enorme exército e profundas reservas de lealdade patriótica geradas pela vitória sobre Napoleão. Já no Extremo Oriente, foi sobretudo a ação conjunta das potências europeias que causou a desagregação do império chinês. Somente a derrota esmagadora nos campos de batalha, primeiro contra o Japão e depois contra a Alemanha, foi capaz de deflagrar as revoluções de 1905 e 1917. A monarquia Qing, em contraste, já em meados do século 19 era geralmente odiada como uma dinastia adventícia e, logo depois, também como uma possessão corrupta do Ocidente. Após a rebelião Taiping, ela nunca mais recuperou pleno controle da força sobre o país como um todo. O Estado imperial estava tão enfraquecido que caiu em 19II sem ao menos um movimento orquestrado contra ele. Nenhum regime sucessor se mostrou à altura dos critérios de Weber. A República se dissolveu primeiro num tabuleiro de feudos rivais controlados por senhores guerreiros; depois, no regime híbrido baseado em Nanjing, o GMD dominando o centro do país a partir do delta do Yang-tsé e variados caudilhos militares regionais, o resto: Chiang Kai-shek nunca chegou a controlar mais da metade das 18 províncias chinesas tradicionais, não raro menos ainda.

Foi nesse emaranhado de centros de poder conflitantes que o PCC conseguiu se implantar, ocupando as lacunas entre as jurisdições e constituindo um poder paralelo móvel. Mas, embora nunca tivesse enfrentado uma máquina do Estado unificada, como ocorrera com os bolchevistas, seu adversário era paradoxalmente mais formidável e os riscos de derrota, maiores. Embora restrito como estava a seus baluartes estratégicos, o GMD não era um regime absolutista ao concluir seu ciclo de existência, nem um governo provisório espectral. Nacionalismo e comunismo eram antagonistas contemporâneos formados no mesmo molde organizacional: rivais igualmente modernos, cada um a seu modo, pelo domínio do país. Contudo, o GMD dispunha de exércitos muito mais vastos, equipados com blindados pesados e treinados em sucessivas missões de assistência militar - as de Von Seeckt, Von Falkenhausen - pela elite da Wehrmacht; controlava a renda tributária das regiões mais ricas da China. Apesar de todo o heroísmo da Longa Marcha, o GMD teria certamente aniquilado o PCC no final da década de 1930, caso o Japão não tivesse lançado um ataque maciço contra o regime de Nanjing em 1937.

Nessa emergência, Chiang, privado de sua presa, mas ainda obcecado com o comunismo como o perigo maior, mostrou-se incapaz de enfrentar o inimigo estrangeiro com alguma eficácia. Um colaborador de longa data dos militares japoneses - com os quais planejara o massacre de Xangai em 1927, voando para Tóquio pouco depois para selar um pacto com seu estado-maior, e aos quais dera seu consentimento para a anexação da Manchúria -, ele se retirou para o interior do país e, após Pearl Harbour, deixou o tempo passar, esperando que os Estados Unidos saíssem vitoriosos da guerra para, então, cair sobre o PCC com o grosso de suas forças intactas. A campanha final do Japão na China, a ofensiva de Ichigo, em I944, arruinou qualquer chance de o GMD concretizar facilmente esses planos, despedaçando suas melhores divisões de modo irreparável. Não menos danoso foi o descrédito que cercou a ditadura de Chiang, que se recusou a fazer de tudo pela defesa da nação.

Fora do alcance do GMD ou da penetração japonesa, a partir de sua base na remota região fronteiriça de Yan'an, o PCC promoveu no norte da China uma guerra de guerrilhas cada vez mais eficiente contra o invasor. A ampliação de seu poder se deveu à sua capacidade de combinar reforma nas aldeias - redução dos preços de arrendamento, cancelamento de dívidas, redistribuição limitada de terras - com resistência ao invasor estrangeiro. A conjugação desses dois fatores possibilitou ao PCC um grau de penetração social que o partido russo jamais alcançou, ampliando sua base de apoio entre o campesinato, a classe que formava a ampla maioria da população. No intervalo de oito anos entre I937 e I945, o número de militantes do PCC passou de 40 mil para I,2 milhão e o efetivo de seus exércitos, de 90 mil para 900 mil. Após a rendição do Japão, o partido se implantou rapidamente na planície setentrional da China: quando estourou a guerra civil em I947, seus quadros tinham mais que duplicado novamente, somando cerca de 2,7 milhões. Nesse ínterim, nas áreas controladas pelo GMD no centro e no sul, a corrupção e a inflação desenfreadas destruíram a base de apoio urbano ao regime de Chiang, cujos exércitos desmoralizados, embora bem armados e equipados pelos Estados Unidos, não se mostraram em absoluto adversários à altura do ELP. Em número cada vez maior, seus comandantes se renderam ou trocaram de lado, à medida que o ELP marchava para o sul: Beijing, Xangai, Nanjing, Guangzhou - uma após outra, as grandes cidades da China foram caindo quase sem luta.

Na Rússia, a guerra civil veio depois da revolução e, como para castigá-Ia, mergulhou o país numa situação muito pior do que ele se encontrava antes da ascensão dos bolchevistas. Na China, a revolução sucedeu a guerra civil e seus efeitos imediatos foram sentidos como uma redenção daquele transe. Por mais de um século, a China não conhecera um governo central capaz de fazer face à agressão estrangeira e assegurar a manutenção da ordem no país. O comunismo trouxe ambas as coisas: soberania nacional e paz interna. Com a derrota do Guomindang, oficiais americanos, canhoneiras britânicas e retardatários japoneses foram despachados de mala e cuia para fora do país. A vitória do ELP, longe de deixar a economia e a sociedade depauperadas, promoveu a recuperação e a estabilidade. A inflação foi controlada; a corrupção, reprimida; o abastecimento, restabelecido. No campo, o sistema de arrendamento de terras foi abolido. Nas cidades, não foi preciso fazer expropriações radicais, visto que mais de dois terços das indústrias já haviam sido estatizadas durante o período do Guomindang e os compradores haviam transferido seus capitais para Hong Kong e Taiwan. Os últimos anos de governo nacionalista tinham alienado as simpatias da classe média a tal ponto, que boa parte dela recebeu a chegada dos comunistas com alívio, mais que resistência; à medida que a produção se restabelecia, os trabalhadores retornavam ao regime de emprego normal e voltavam a receber salários. A República Popular, encarnando ideais patrióticos e disciplina social, veio ao mundo desfrutando de um grau de consentimento popular que a União Soviética jamais conheceu.

3

Essas diferentes matrizes deixaram sua marca na evolução dos respectivos regimes, cujas proporções de força e consentimento sempre foram distintas. Sob Stálin, o comunismo soviético obteve o apoio ativo da população em duas oportunidades após a guerra civil: entre a nova geração de operários de origem rural mobilizados para o esforço intensivo de industrialização dos primeiros planos quinquenais, numa atmosfera Sturm. und Drang de entusiasmo coletivo autêntico, senão generalizado; e durante a Segunda Guerra Mundial, quando o regime se valeu de um patriotismo russo muito mais disseminado, numa luta de ida ou morte de toda a população contra o invasor nazista. Nem o esforço de industrialização nem o esforço de guerra alteraram a desconfiança dos governantes em relação às massas subalternas. O sistema soviético se aproveitou de episódios de adesão popular quando eles se manifestaram. Contudo, estava baseado na repressão. Durante o período da ditadura de Stálin, a polícia secreta tornou-se uma instituição mais importante e mais poderosa do que o próprio partido. A violência, desencadeada compulsivamente contra inimigos reais ou imaginários, inclusive dentro das próprias fileiras do regime, era onipresente.

Contra um fundo de tensão contínua, seus dois grandes paroxismos foram a coletivização agrária do final dos anos 1920 e os expurgos da década de 1930. Com a primeira, o regime lançou uma guerra total contra a sociedade camponesa, na qual as deportações em massa e a fome fizeram talvez 6 milhões de vítimas, reduzindo o campesinato a uma massa taciturna e alquebrada, situação da qual a agricultura russa jamais se recuperaria. Com os expurgos, não somente a velha guarda bolchevista inteira que fizera a Revolução de Outubro, mas praticamente toda a geração seguinte de quadros em posições de liderança no partido e no Estado, bem como vasto número de outras vítimas foram liquidados - pelo menos, 700 mil ao todo. Os campos de trabalhos forçados, para onde foram despachados aqueles que escaparam de ser sumariamente executados nessas selvagerias, iriam alojar outros 2 milhões naqueles anos, correspondendo a um expressivo setor da economia3. Após a vitória na Segunda Guerra Mundial, na qual a Rússia sofreu enorme destruição, o terror arrefeceu. Contudo, apesar de toda a consagração que alcançou nos campos de batalha, o medo continuou a ser a mola-mestra do poder de Stálin até o fim. 


O partido chinês herdou o modelo soviético, tal como se configurou sob Stálin, desenvolvendo em larga medida a mesma disciplina monolítica, a mesma estrutura e hábitos de comando autoritários. Em termos organizacionais e ideológicos, o Estado que ele criou no início da década de 1950 assemelhava-se bastante ao soviético. E mais: no decorrer do processo, o governo comunista infligiria à China dois grandes desastres similares. Dadas as suas raízes no campo, onde os trabalhadores de modo geral mantiveram sua confiança nos líderes, o PCC foi capaz de promover uma rápida e integral coletivização poucos anos após as primeiras redistribuições de terras, sem provocar o desastre ocorrido na Rússia. Mas, em 1958, decidido a acelerar o ritmo das mudanças, o partido lançou o Grande Salto Adiante, criando comunas populares que deveriam implementar indústrias de fundo de quintal e, ao mesmo tempo, produzir cotas muito mais elevadas de grãos. Com o desvio da mão-de-obra para fornos siderúrgicos caseiros e o baixo rendimento das colheitas provocado pelo mau tempo, o resultado foi a pior fome do século, que causou a morte de pelo menos 15 e talvez 30 milhões de pessoas. Oito anos depois, a Revolução Cultural viria ceifar as fileiras do próprio partido, dizimando seus quadros numa série de expurgos que, como na Rússia, então ultrapassaram seus limites. Ao que tudo indicava, como que arrebatada por uma inexorável dinâmica comum, a RPC tinha reproduzido os dois piores cataclismos da URSS. 

Mas, por mais estranhas que possam parecer as semelhanças, a matriz diversa da Revolução Chinesa acabou se impondo. Se o saldo de vítimas no campo, em termos proporcionais, foi comparável, seus mecanismos e suas consequências foram distintos. A coletivização soviética foi concebida como uma operação para destruir os camponeses "ricos" como um estrato - em geral, os proprietários de alguma criação - e foi executada com níveis militares de violência. Mais de 2 milhões de kulaks foram deportados para as estepes sob a mira das armas da OGPU. A fome de 1932-1933 que se seguiu, embora provocada em parte pelo mau tempo, foi essencialmente um efeito da destruição da sociedade rural que esta segunda guerra civil deixou no seu rastro. Por mais absurdamente voluntarista que tenha sido, o Grande Salto Adiante, em contraste, nunca foi concebido como um ataque contra o campesinato ou qualquer de suas camadas. Não houve deportações, nem se viu tropas do Ministério do Interior arrebanhando camponeses recalcitrantes. A cegueira burocrática, resultado da carência (autoinflingida, naturalmente) de relatórios fidedignos das bases sobre o rendimento real das safras de grãos, mais do que a truculência policial, foi a causa imediata do desastre. Além do mais, não se produziu nenhum desânimo comparável ao que se abateu sobre o campesinato russo. O campo não ficou permanentemente desmoralizado pelo Grande Salto Adiante, e o trem de vida nas aldeias, mesmo nas regiões mais gravemente afetadas, foi retomado com surpreendente rapidez.

O contraste entre as motivações e os resultados finais foi ainda mais acentuado na Revolução Cultural. Na segunda metade da década de 1930, Stálin espalhou o terror de alto a baixo no partido e no Estado soviético, atingindo muitos dos próprios dirigentes que tinham lhe delegado o poder supremo no PCUs, prontamente fuzilados como espiões, traidores ou contrarrevolucionários durante a Yezhovshchina. Embora os verdadeiros motivos por trás dessa insânia permaneçam obscuros, está claro que Stálin, cuja legitimidade como ditador personalista nunca fora totalmente assegurada - ele não desempenhara nenhum papel relevante na Revolução de Outubro e Lênin prevenira expressamente o partido contra ele -, foi tomado por uma mórbida suspeita contra todos os que o cercavam e agiu na certeza de que a única maneira de lidar com potenciais opositores ou dissidentes era matá-los. 

Ao lançar a Revolução Cultural, Mao também visou seus colegas mais próximos, em parte porque fora obrigado a admitir o fracasso do Grande Salto Adiante, quando este não podia mais ser negado, e aceitar a mudança da política agrária que lhe impuseram. Contudo, sua principal motivação foi impedir que se reproduzisse na China a casta de burocratas empedernidos que, a seu ver, estava conduzindo a URSS pós-stalinista a uma sociedade de classes indistinguível do capitalismo. A fim de tolher essa tendência, ele não recorreu aos órgãos de segurança, que na China nunca tiveram a importância que tinham na Rússia, mas à juventude estudantil. Insuflando contra os suspeitos de favorecer a via soviética agitações de massa desde as bases, em vez de decapitá-los desde a cúpula, Mao lançou o país numa década de caos controlado.

As barbaridades que se seguiram formaram uma legião. A violência desregrada - perseguições e altercações; humilhações, surras, fuzilamentos; guerras entre facções - espalhou-se de cidade em cidade; nos condados, execuções organizadas. O número de vítimas, ainda a ser devidamente computado, superou de longe um milhão4. Contudo, as mortes - proporcionalmente, muito menos numerosas que as verificadas durante o pandemônio soviético - não foram ditadas por instruções executivas, mas motivadas por iniciativas localizadas de vingança, conforme as autoridades iam sendo depostas, e as pendências, ajustadas por todo o país. Nenhum Yezhov ou Beria estava no comando. Ao contrário do Grande Terror, a Revolução Cultural não foi simplesmente uma campanha de repressão em escala gigantesca. Foi uma tentativa radical de sacudir as estruturas burocráticas, mobilizando contra elas a revolta de uma geração mais jovem, tendo sido vivida como uma liberação mental - quanto mais não seja, devido ao colapso temporário de tamanha autoridade institucional - por muitos que mais tarde se decepcionariam com seus resultados e mesmo por anticomunistas ferrenhos. A sua meta autoproclamada foi uma transformação igualitária de perspectivas que não mais comportasse as "três grandes diferenças": entre cidade e campo, entre agricultura e indústria, e - acima de tudo - entre trabalho intelectual e manual.

Esses ideais eram utópicos para qualquer sociedade da época, quanto mais para uma tão atrasada como a chinesa. Mas eles não eram mera vitrine. O envio de 17 milhões de jovens das cidades para o campo a fim de realizarem trabalhos agrícolas ao lado dos camponeses, com a consequente paralisação dos colégios e universidades, foi um processo mais característico e de maior alcance do que as perseguições do período. Executado sem violência, frequentemente com entusiasmo, ele atendia a outros objetivos. Estes, por sua vez, pesaram no modo pelo qual a Revolução Cultural promoveu sucessivos expurgos no interior do partido. Não houve nenhuma carnificina generalizada. Humilhação, degradação e embrutecimento era a sina comum da maioria dos visados, mais do que a eliminação. Os rituais da reforma do pensamento, destinados a "curar a doença, não matar o paciente", segundo o preceito de Yan'an, permaneceram na teoria e na prática - esta, um tanto brutal -, o método habitual para lidar com os suspeitos da via capitalista. Quando a Revolução Cultural chegou ao fim, não mais do que 1% dos quadros do partido havia sido definitivamente expulso, sendo que praticamente todo o primeiro escalão - à exceção de Liu Shaoqi -, contra o qual Mao investira em 1966-1969, sobrevivera. Ao contrário de Stálin, Mao tinha conduzido a Revolução Chinesa para a vitória e não ocorreu nenhum massacre da Velha Guarda que combatera a seu lado. Variáveis culturais e políticas interagiram para produzir um desenlace diferente. Mao tinha se tornado um imperador moderno, exercendo poder pessoal absoluto. No entanto, a tradição imperial da China sempre valorizara mais a doutrinação do que a coerção como instrumento de governo, por mais implacável que tenha sido seu exercício da violência quando a necessidade ou o capricho assim o ditaram: o objetivo da Revolução Cultural- transformar as mentes para transformar a realidade, como se as concepções intelectuais determinassem as relações sociais - era tributário de noções mais confucianas do que marxistas da transformação histórica. Contudo, esse ainda era um regime nascido de uma revolução social, em que o poder - contrariamente a um ditado de Mao da época - brotara não apenas do cano de um fuzil, mas também da confiança moral de milhões no partido que o detinha. Se a Revolução Cultural chegou perto de destruir essa herança política, nem por isso ela deixou de ser estranhamente conformada e, afinal, também restringida por ela. 

II. Mutações

Com uma diferença de trinta anos entre suas origens, as duas revoluções tenderam para projetos de reforma que, dada a sua proximidade no tempo, acabaram por se superpor. Os antecedentes de cada um deles foi o fracasso das tentativas prévias de reconstrução. Na URSS, tão logo Stálin morreu, a reação contra sua tirania foi rápida. Sob Khruschev, a máquina do terror foi desmantelada; a censura relaxou; as fazendas coletivas ganharam maior autonomia; os investimentos em consumo aumentaram; e a coexistência pacífica com o capitalismo foi proclamada. A desestalinização prosseguiu com ímpeto considerável por uns cinco anos, do XX ao XXI Congresso do PCUs. Depois disso, os erráticos zigue-zagues de Khruschev na política externa e interna - aposta e recuo no Caribe, reestruturação inócua do partido, planos improvisados para a revitalização da agricultura - provocaram a hostilidade de seus colegas e levaram à sua demissão sumária. Khruschev não chegou a cogitar nenhuma transformação essencial do sistema econômico herdado de Stálin, com ênfase no planejamento altamente centralizado e prioridade para a indústria pesada, que tinha assegurado o triunfo soviético em 1945 e que servira de plataforma para a sua própria carreira. Legitimando tudo o que a Cosplan5 alcançara o prestígio da vitória sobre a potência mais industrializada da Europa comprometeu a flexibilidade do sistema socioeconômico responsável por transformar a URSS numa grande potência, justamente no momento em que isso se fazia mais necessário, no limiar de uma nova era6.

Quando Khruschev foi deposto, o desenvolvimento ainda era considerável e o poder militar da URSS se expandia. O preço de seu fracasso foi o "período de estagnação", como seria chamado longo interregno de meados da década de 1960 até meados da década de 1980. Livre de suas irrequietas iniciativas e agora a salvo de prisões arbitrárias, a burocracia soviética se acomodou numa inércia complacente, contentando-se com um estoque crescente de armamentos e ignorando a queda acentuada de rendimento de suas repisadas fórmulas de investimento industrial. A URSS alcançou paridade nuclear com os EUA e conquistou o estatuto de superpotência. Contudo, 20 anos de brezhnevismo transformaram o partido numa floresta petrificada de funcionários públicos, que geriam uma sociedade na qual a expectativa de vida caía, o crescimento econômico praticamente estagnara e o cinismo era generalizado. Era esse o palco quando Gorbachev entrou em cena, em 1985.

A desordem na China quando Deng Xiaoping chegou ao poder era impressionante. O país ainda estava traumatizado pela turbulência da Revolução Cultural. A educação superior simplesmente deixara de existir durante uma década. Monumentos haviam sido destruídos pelo vandalismo' a vida intelectual havia sido abolida pelo dogmatismo. Vasto número de jovens continuava segregado em exílio rural. As cidades ferviam de insatisfação, e a capital do país fora recentemente palco de tumultos de massa, quando o prédio do Birô de Segurança Pública, nas imediações da praça da Paz Celestial, foi saqueado e incendiado por multidões enfurecidas: baderna inconcebível em Moscou. Mao quisera evitar a espécie de comunismo a que as políticas de Khruschev, no seu entender, tinham conduzido a URSS. Nisso, ele foi bem-sucedido. Agora, a China estaria preservada daquela lenta involução de uma burocracia conservadora, como a que tomou conta da URSS com Brezhnev, imobilizando a economia e a sociedade numa condição degenerativa. Sua meta negativa tinha sido alcançada. Mas sua alternativa positiva fracassara igualmente, e por completo. Por ocasião de sua morte, as políticas que implementara tinham conduzido a China a outro tipo de impasse histórico.

2

Quando embarcaram nos seus programas de reforma, a União Soviética, ao que tudo indicava, era dos dois países o que apresentava condições materiais e culturais muito mais favoráveis para lograr o êxito. Seu PIB era de quatro a cinco vezes maior que o chinês. Sua base industrial era muito mais ampla e empregava mais do dobro da força de trabalho, em termos relativos. Era mais rica em quase todos os recursos naturais - combustíveis fósseis, minérios preciosos, terras abundantes. Era muito mais urbanizada. Sua população era mais bem alimentada e ingeria em média 50% mais calorias que a chinesa. Sua infraestrutura era consideravelmente mais desenvolvida. Por último, mas não menos importante, seu nível de educação era incomparavelmente melhor: totalmente alfabetizada, com um número, em termos relativos, 20 vezes maior de estudantes matriculados em nível superior além de contar com uma comunidade de cientistas bem treinados.

Contudo, o "período de estagnação" veio neutralizar gradualmente e, em certos aspectos cruciais, degradar essas vantagens naturais. Durante 20 anos, nenhuma mudança política sacudiu o marasmo da vida soviética. O planejamento centralizado levado a extremos caricaturais - 60 mil produtos básicos com preços tabelados - tolheu a inovação e propiciou toda espécie de distorções. A produtividade do trabalho estagnou; a relação capital/produto piorou: a maquinaria obsoleta não foi sucateada; as novas tecnologias de informação não foram assimiladas. No entanto, à medida que o desempenho da economia declinava, a pressão da corrida armamentista aumentava. Encalacrada numa rivalidade estratégica com os Estados Unidos, um país mais avançado e muitíssimo mais rico, a liderança soviética desviou uma vultosa fatia do PIB para gastos militares, com pouca ou nenhuma "derivagem" [spin-offJ para o resto da economia, sem ter conseguido afinal emparelhar com o arsenal norte-americano. Seus protetorados no Leste Europeu e no Afeganistão, demandando subsídios e forças expedicionárias, representavam um ônus adicional. Para a URSS, a Guerra Fria não foi apenas um impasse diplomático, ela também congelou as molas do crescimento.

Mas, quando chegou o momento da reforma há muito necessária, o grande déficit nesse sistema emperrado não foi econômico, mas político. Quatro gerações separavam agora o partido dirigente da Revolução. O espírito insurgente do bolchevismo havia muito desaparecera. O rude dinamismo da shturmovshchina stalinista na indústria e na guerra era coisa do passado. A simples lembrança do espalhafatoso jogo de cena de Khruschev, no seu intento de combinar as duas coisas, ainda que brevemente, tinha se apagado. O grosso do PCUs - a nomenklatura soviética propriamente dita - era formada por funcionários administrativos medíocres e apáticos, incapazes de criatividade ou iniciativa. O surgimento de Gorbachev como seu líder, no entanto, provou que o partido ainda não estava totalmente catatônico. Tão logo tomou posse como secretário-geral, ele agiu rapidamente para afastar dos altos cargos remanescentes do período de Brezhnev, consolidando seu poder no partido por meio de uma maioria escolhida a dedo no Politburo. Em seguida, proclamou seus lemas: glasnost e perestroika - a necessidade de maior transparência nos negócios públicos e uma remodelação das instituições do país.

A primeira, acompanhada por um relaxamento geral da censura, foi saudada por uma onda de entusiasmo na sociedade, à medida que energias há muito reprimidas eram liberadas em polêmicas revelações de fatos controversos e debates iconoclastas de toda espécie. Já a segunda deixou sua audiência um tanto perplexa. O que a perestroiha - um termo que Lênin certa vez utilizara de modo incidental- realmente significava na prática? Logo se viu que Gorbachev, por corajoso que fosse nas suas intenções, era vago nas suas ideias: embora moralmente distanciado do PCUs da era Brezhnev no qual ascendera, ele contava com poucos recursos intelectuais independentes do partido e não tinha senão uma ideia demasiado vaga das reformas que pretendia. A maioria de seus delegados na cúpula do partido tinha uma ideia mais vaga ainda e não tardou para que muitos começassem a resistir-lhe. A fim de contornar sua oposição, Gorbachev passou a apelar cada vez mais para uma clientela alternativa, em busca de legitimidade e orientação.

A intelligentsia russa havia muito se incompatibilizara com o regime. O brilhante movimento vanguardista animado por aqueles que não tinham partido para o exílio após a Revolução foi enterrado por Stálin. As esperanças alimentadas pela distensão que se seguiu à sua morte foram rapidamente frustradas, antes mesmo da queda de Khruschev, pela rudeza e pelo espírito filisteu do regime sucessor. Em meados dos anos 1980, o comunismo, sob qualquer forma ou aspecto, era anatematizado por quase todas as correntes desse estrato historicamente influente da sociedade russa. Os eslavófilos e os ocidentalistas, seus dois polos tradicionais, se uniram na recusa da ordem soviética. Aqueles, no entanto - apesar da projeção alcançada por Solzhenitsyn -, eram residuais; estes eram hegemônicos. Liberais, convencidos da superioridade do Ocidente e aspirando a se integrar nele, em breve estavam ditando o compasso na entourage de Gorbachev, propondo mais ideias e objetivos decididos do que ele próprio desenvolvera. Para eles, uma verdadeira reforma só poderia significar duas coisas interrelacionadas: a introdução da democracia, com a realização de eleições livres, e o estabelecimento de uma economia de mercado baseada na propriedade privada dos meios de produção.

Como secretário-geral do PCUS, Gorbachev não estava em posição de apoiar a segunda meta, mesmo se tivesse querido, o que não foi o caso. Mas ele endossou a primeira, desde que as regras fossem tais que lhe assegurassem a legitimação de seu próprio poder por meio de um plebiscito popular, ajudando-o a se libertar da dependência de um partido do qual passara a desconfiar cada vez mais, assim como o partido desconfiava dele. A reforma política, a criação pela primeira vez na história russa de uma democracia representativa, tornou-se a prioridade. A reforma econômica, que originalmente havia sido o principal significado da perestroiha, foi postergada. Essa foi a ordem de batalha transmitida para a intelligentsia liberal, que precisava quebrar o monopólio do poder antes de investir contra os alicerces da economia planejada. Para Gorbachev, no entanto, ela tinha uma outra atração. Abolir a censura e permitir a realização de eleições livres era algo relativamente simples de realizar - no fundo, uma simples questão de suspender restrições. Reorganizar a economia seria muito mais difícil- uma tarefa descomunal, em comparação. Ele preferiu o caminho menos árduo.
Se havia que introduzir a democracia de estilo ocidental no país, que sentido tinha confrontá-Ia no plano externo? Esvaziar gradualmente a Guerra Fria era algo que poderia lhe trazer não somente o aplauso da intelligentsia que, agora bem entrincheirada na mídia, tinha se tornado o principal formador de opinião no país, como também benefícios econômicos concretos, reduzindo o ônus representado pelos gastos militares. E não apenas isso: o prestígio internacional de um governante que se relacionava nos termos mais amistosos com seus interlocutores ocidentais, sobretudo com o presidente dos Estados Unidos da América, e trazia paz e boa-vontade às nações do mundo, só faria realçar a sua imagem interna. A partir de Ig87, Gorbachev se dedicou cada vez mais a viagens internacionais e confabulações, tornando-se o centro das atenções da opinião pública ocidental, visivelmente inebriado pela figura que estava cultivando no cenário mundial. O tempo dedicado à desagradável tarefa de gerir a economia russa era cada vez menor. Então, quando os inconsistentes projetos iniciais para a promoção de cooperativas deram em nada, uma medida inócua após outra foi experimentada para introduzir maior autonomia empresarial, com pouco ou nenhum resultado, enquanto a URSS mergulhava numa profunda crise social, consequência direta da prioridade dada à renovação política do país, em detrimento da econômica. O crescimento era praticamente nulo quando Gorbachev assumiu o poder, e os preços do petróleo - do qual a receita cambial do governo dependia criticamente - já estavam começando a cair, pressionando o orçamento com intensidade crescente e constante, à medida que as rendas do petróleo continuavam caindo. Essas seriam graves dificuldades em quaisquer circunstâncias. O que as transformou numa queda livre catastrófica foi a marginalização do r-cus por Gorbachev, em sua busca de consagração popular. A economia planejada dependia da capacidade do partido de exigir o cumprimento das cotas de produção requeridas pelo governo central. Como o partido fora privado de poder real, sem nenhum substituto efetivo, os gerentes simplesmente deixaram de fornecer seus produtos ao Estado pelos preços fixados e passaram a vendê-los por quanto conseguissem e a quem pudessem. O resultado foi o colapso do sistema de alocação central que mantinha o sistema coeso e o crescente descontrole do comércio, particularmente severo entre as repúblicas.

Enquanto a economia mergulhava no caos, o Estado encontrava dificuldades cada vez maiores para arrecadar impostos das empresas e das repúblicas, apelando para a emissão de moeda a fim de cobrir subsídios de alimentação e encargos sociais. A espiral inflacionária foi agravada pelo aumento do déficit no balanço de pagamentos - visto que o governo tentara conter a queda de sua popularidade com a importação de bens de consumo -, bem como pelo aumento galopante da dívida externa, que duplicaria em cinco anos. Por volta de 1989, o Estado soviético não estava longe da bancarrota. E, o que ainda era mais fatídico, estava à beira da desintegração, e pela mesma razão. A partir do momento em que Gorbachev excluiu o fator PCUs da equação, colocando-se na posição de governante personalista, à parte e acima dele, nada mais conservou as repúblicas unidas7. Sem a estrutura coesiva do partido, a URSS carecia de quaisquer vínculos unionistas [all-UnionJ. Gorbachev, encarnando até o fim seu papel de moderador da Guerra Fria e libertador da Europa do Leste, mostrou -se ainda mais insensível para a questão nacional dentro de seu próprio país, do que para a situação crítica de sua economia. Quando os últimos sobreviventes da velha ordem finalmente se revoltaram contra ele, em 1991, e o derrubaram, vindo abaixo junto com ele, a URSS se dissolveu da noite para o dia. 

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Quando, sete anos antes do PCUs, o PCC se lançou no caminho das reformas, a China era um país muito mais pobre e atrasado do que a Rússia8. Por volta de 1980, o PIB per capita da RPC era 14 vezes menor que o soviético. Mais de 70% de sua força de trabalho estava empregada na agricultura, contra 14% na União Soviética. Cerca de um em cada três chineses ainda não sabia ler ou escrever. Suas universidades não passavam de uma fração das indianas. Pode-se afirmar com segurança que nenhum observador, seja no próprio país ou fora dele, poderia ter previsto a reviravolta da sorte nos dois países três décadas mais tarde. Contudo, já de início a Rússia apresentava uma série de desvantagens que não afetavam a China; esta apresentava antes um conjunto de "vantagens negativas" que lhe proporcionaram condições iniciais - econômicas, sociais e políticas - que a favoreciam, sob certos aspectos menos evidentes.

A primeira delas era o peso menos considerável da maquinaria obsoleta na economia, não porque seu capital fixo superasse o soviético, mas simplesmente por seu nível inferior de industrialização. Aquilo que se tornaria conhecido como o "cinturão da ferrugem" chinês ainda era algo respeitável: quem viu West ofthe Tracks, a trilogia de Wang Bing sobre o destino final do parque industrial de Shenyang e de seus operários - talvez, o maior documentário de todos os tempos -, não poderá esquecê-lo. Ainda assim, em termos relativos, seu peso era menor do que na URSS. Não havia tantas fábricas para sucatear. Mais importante ainda, o planejamento chinês sempre havia sido mais maleável que o seu modelo russo. Bem cedo, Mao compreendeu a impossibilidade de impor as ubíquas diretrizes do Gosplan a uma economia muito menos articulada como a chinesa, com tradições regionais muito mais arraigadas e infraestrutura mais pobre. Desde o início, as autoridades provinciais e distritais haviam desfrutado de maior autonomia do que no sistema soviético, em qualquer momento de sua história. Deliberadamente, a Revolução Cultural enfraquecera ainda mais os poderes do centro, deixando aos governos locais uma margem maior de iniciativa. Assim, as metas de produção industrial eram um tanto modestas e a pressão para seu cumprimento não era irresistível. O resultado foi um sistema muito mais descentralizado, no qual o número de produtos básicos com preços tabelados por Beijing nunca ultrapassou 600, no máximo, um centésimo da pletora soviética9. Menos rígido, esse marco institucional permitia maior flexibilidade e mudanças menos desestabilizadoras.

Socialmente, a China também apresentava uma enorme e decisiva vantagem sobre a Rússia. O campesinato chinês não era um resquício da classe indolente e taciturna que havia sido antigamente, como na Rússia. Não estava exaurido, nem descontente, mas cheio de energias latentes à espera de sua liberação, como os acontecimentos demonstrariam. Historicamente, nunca possuíra instituições coletivas comparáveis ao mir. A sociedade rural, atomizada havia muito no norte e chacoalhada pela rebelião Taiping no sul, conseguiu se recuperar após o Grande Salto Adiante, tendo atrás de si um passado secular de estímulos competitivos. Além do mais, a ausência de descontentamento profundo no campo não se deveu a uma simples diferença entre as duas sociedades rurais. Formando a maioria esmagadora da população, o campesinato chinês era a pedra angular da nação. Seu equivalente mais próximo na URSS, ainda que proporcionalmente não correspondesse a um setor tão amplo da sociedade, seria a classe operária industrial. No entanto, embora não tão desmoralizada quanto os kolkhoz- niki, por volta da década de 1980 ela também era uma força social totalmente desiludida, profundamente cética com relação ao regime, acomodada ao trabalho antieconômico e à baixa produtividade, como uma espécie de compensação para a imensa disparidade entre seu papel nominal como classe condutora do Estado e sua posição real na hierarquia do privilégio. Na China, onde após o Grande Salto Adiante a população rural foi impedida de entrar nas cidades e sempre careceu dos benefícios sociais que assistiam aos trabalhadores urbanos, as desigualdades formais entre cidade e campo eram maiores do que na União Soviética. Antes de mais nada, porém, a ideologia governante nunca proclamou aos camponeses que eles eram a classe na vanguarda da construção do socialismo. O abismo moral entre teoria e realidade era menor, bem como o tempo transcorrido entre as esperanças iniciais e a experiência subsequente. Apesar de tudo o que lhes foi infligido ou concedido, o campo continuou a ser uma reserva do partido no poder.

No plano internacional, a situação da RPC proporcionou-lhe maior margem de manobra. Ela não estava sobrecarregada por nenhuma zona de estados-satélites onerosa, que exigisse soldados e subvenções para ser mantida. Ela não estava em condições de competir com as superpotências na corrida armamentista, nem tentou. Além de estar livre desses entraves, havia a relação radicalmente diferente que a China mantinha com os Estados Unidos. Após uma década de extrema tensão com a URSS, quando se produziram inclusive choques militares ao longo da fronteira, Mao derivou para uma entente com os Estados Unidos ainda durante a Revolução Cultural. A visita de Nixon e seus resultados, por mais espetaculares que tenham sido, permaneceriam uma abertura diplomática sem maiores consequências enquanto ele vivesse. Graças a ela, porém, quando ocorreu o redirecionamento para as reformas internas, a China contava com uma situação propícia na arena internacional. Uma amizade cautelosa, de preferência a um antagonismo calculado, criou as condições para que o centro nervoso do capital mundial e sua pletora de sucursais regionais já estivessem preparados para estender ajuda financeira à China, aos primeiros sinais de abertura para a economia de mercado. A ausência de descontentamento profundo no campo somou-se à inexistência de qualquer ameaça imperialista direta do exterior, pela primeira vez na história moderna do país.

Além do mais, internamente a RPC não corria perigo algum de se desintegrar, como aconteceria com a URSS. Ela não era composta de 15 repúblicas diferentes. Mais homogênea em termos étnicos do que a maioria dos Estados- Nação, ela enfrentava a hostilidade de nacionalidades rebeldes dentro de suas fronteiras - no Tibete e no Uygur -, o que não ocorrera durante meio século na União Soviética. Contudo, o peso delas no conjunto da população era mínimo em comparação com a soma dos povos que provocariam a fragmentação da URSS uma década mais tarde. Um ponto mais prioritário na agenda do PCC do que o problema recorrente de manter essas regiões sob controle era a tarefa ainda pendente de recuperar Taiwan, onde o GMD estabelecera um reduto insular sob proteção dos Estados Unidos, ainda alimentava pretensões de representar a verdadeira República da China e atravessava um período de grande prosperidade econômica. A principal preocupação do partido não era com os riscos de dissolução, mas com problemas de recomposição territorial.
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Contudo, no limiar de suas reformas, a diferença mais decisiva entre a Rússia e a China talvez fosse o caráter de suas lideranças políticas. A RPC não tinha no seu comando um funcionário inexperiente, isolado, cercado de assessores e publicitários imbuídos de um ingênuo Schwiirmerei por tudo o que fosse ocidental, mas veteranos escaldados da Revolução original, líderes que haviam sido companheiros de Mao e sofrido sob seu governo, mas que não tinham perdido nada de sua capacidade estratégica, e de sua autoconfiança. Deng Xiaoping, com efeito, havia sido tão indispensável ao regime que Mao o chamara de volta quando ainda vivo. Após a morte de Mao, sua autoridade era tamanha que ele depressa se sobressaiu como o árbitro inconteste do partido, sem precisar se empenhar pessoalmente para alcançar essa distinção, nem sequer ocupar altos postos hierárquicos. Mas Deng não estava só. Com ele, retornaram Chen Yun, Bo Yibo, Peng Zhen, Yang Shangkun e outros, formando um entrosado grupo de colegas sem papas na língua - os "Oito Imortais" -, os quais, embora não raro discordassem veementemente entre si, asseguraram a continuidade das reformas a seu lado. Coletivamente, eles ocupavam uma posição forte, desfrutando não somente de prestígio pelo-seu desempenho na Guerra Civil e na construção da nação, mas de popularidade por terem dado um fim à Revolução Cultural, o que foi recebido com uma onda de alívio nas cidades.

Ao avaliar a situação do país tal como Mao o deixara, esses dirigentes, com Deng à frente, permaneceram os revolucionários que sempre haviam sido. A sua têmpera era leninista: radicais,
disciplinados, criativos - capazes tanto de paciência tática, quanto de experimentação cautelosa, das iniciativas mais ousadas e das guinadas mais dramáticas. Esse havia sido o espírito que inspirara a Longa Marcha e levara à vitória na guerra civil. E foi com esse espírito que eles enfrentaram o impasse no qual a Revolução Cultural lançara a China. Ao fazê-lo, tinham aguda consciência da transformação da conjuntura chinesa, o que os funcionários do PCUs, dirigindo uma sociedade relativamente mais avançada, não tinham. O Leste Europeu era certamente mais rico e mais desenvolvido do que a Rússia, mas sempre havia sido, e a diferença entre suas respectivas taxas de crescimento - durante as décadas de 1970 e início de 1980, a própria CEE (Comunidade Econômica Europeia) entrou num longo período de baixa - não era tão grande a ponto de forçar os dirigentes soviéticos, nem mesmo nos primeiros tempos de Gorbachev, a repensar os pressupostos básicos sobre os quais assentava o êxito do Estado.

No Extremo Oriente, por outro lado, a partir da década de I950, o Japão quebrara todos os recordes históricos no seu acelerado crescimento - superando de longe não apenas a Europa, mas também os Estados Unidos. Essa recuperação espetacular de uma economia reduzida a cinzas no final da guerra - com a criação de indústrias exportadoras de altíssima competitividade e de uma sociedade de consumo integralmente moderna - contrastava de modo flagrante com a pobreza e a autarquia relativas da China, apesar do substancial desenvolvimento alcançado durante o período de Mao. O Japão, ainda que sobrepujasse seus vizinhos como agora o fazia, tampouco estava sozinho no seu êxito. No final da década de I970, a Coreia do Sul experimentara um vertiginoso processo de industrialização conduzido por Park Chung-Hee e, o que era ainda mais exasperante, o regime do GMD em Taiwan não ficara muito atrás. A pressão desses desenvolvimentos sobre a RPC era iniludível. Deng exprimiu-se com agudeza sobre a situação uma década mais tarde, no auge da crise política de I989. Após observar que, enquanto a China permanecesse isolada, "não haveria nenhum desenvolvimento econômico, nenhum aumento do padrão de vida, nenhum fortalecimento do país", ele continuou: "Hoje em dia, o mundo galopa uma milha por minuto, sobretudo em ciência e tecnologia. Mal conseguimos acompanhar10. A tarefa de superar o descompasso entre o comunismo na China e o capitalismo no Extremo Oriente era uma ordem do dia formidável para qualquer programa de reformas. No entanto, os Imortais não se mostraram intimidados. Atacaram-na, não somente com um vigor derivado do impulso ainda atuante da Revolução que tinham feito, mas também com a milenar auto confiança - posta à prova durante séculos, mas ao fim e ao cabo inquebrantável-, da mais antiga civilização contínua do mundo. O dinamismo de Mao, feliz ou infelizmente, havia sido uma das expressões da restauração dessa confiança. A Era das Reformas impulsionada por Deng seria outra. Essa auto confiança histórica constituía outra das diferenças essenciais entre a Rússia e a China. 

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Ideologicamente, o tsarismo possuíra desde o início um ligeiro traço messiânico, transmitido às elites russas e, no seu devido tempo, à intelligentsia do país - crenças da Rússia como a Terceira Roma, a salvadora dos eslavos, a redentora da humanidade do materialismo ocidental. No século que iria dar na Revolução, manifestações dessa tendência podiam ser detectadas nos Aksakov, Dostoiévsky, Rozanov, Blok. Tratava-se, porém, de um mecanismo de compensação. A Rússia continuou a ser, como sabiam todos os russos, um rincão atrasado da Europa, temível apenas por sua imensidão. A ocidentalização, destituída de idiossincrasias étnicas ou religiosas, tinha sido a visão que impelira seus maiores governantes, Pedro e Catarina, e numa ou noutra variante - liberal ou radical-, veio a dominar suas elites e sua intelligentsia no início do século 20. Contudo, a reivindicação de uma missão especial reservada à Rússia persistiu, produzindo uma esquizofrenia recorrente, visível até hoje. O leninismo superou essa mentalidade cindida combatendo o atraso russo, não em desesperada imitação do Ocidente, mas em revolta contra ele, movido por sua profunda crítica dele. Sob Stálin, a Segunda Guerra Mundial e suas sequelas propiciaram o retorno de um nacionalismo de corte mais tradicional, do tipo "Grande Rússia", com sua cadeia de mecanismos de defesa, embora ele tenha sempre coexistindo com motivos marxistas. Após Stálin, esse chauvinismo perdeu terreno, sem que nenhum substituto viesse a ocupar o seu lugar. Os últimos alentos do internacionalismo, ainda subsistentes sob Khruschev, depressa se extinguiram, deixando apenas o vácuo ideológico do brezhnevismo. Na altura da perestroika, não somente a maioria quase absoluta da intelligentsia, como também elementos da própria elite dirigente, desesperançados diante da estagnação do país, reverteram para o que se poderia considerar em termos históricos a posição ideológica default da ocidentalização radical- desta vez, porém, com espírito de rebaixamento, mais que ambição. As tradições geoculturais da China eram totalmente diversas. O Reino do Meio havia dominado seu mundo conhecido desde a unificação promovida pelo primeiro imperador, ao tempo das Guerras Púnicas no Ocidente; foi por vezes conquistado, mas nunca sofreu a rivalidade de nenhum Estado comparável da região, onde sempre foi de longe a maior, mais rica e mais avançada potência, à qual as outras podiam somente prestar tributos, não esperar igualdade de tratamento. Sob a dinastia Qing, o império tinha se expandido como nunca antes, alcançando os recessos da Ásia Central. A ideologia das sucessivas dinastias variava - os cultos manchús eram dos mais heteróclitos -, mas não a pretensão imperial de absoluta preeminência sobre quaisquer soberanos menores, mais próximos ou mais distantes. A China era o centro da civilização e seu ápice natural.

No século 19, a ingerência ocidental despedaçou essas antiquíssimas pretensões. Quando se tornou claro que a monarquia estava ruindo sob o impacto de golpes internos e externos, o alarme dos literatos - normalmente, a mola-mestra da administração imperial- tornou-se mais e mais estridente; e, com os primeiros reveses da nova República, sua reação tomou uma direção singularmente radical. Diferentes correntes se entrecruzaram na cultura do Movimento de Quatro de Maio, que se cristalizou em torno dos protestos estudantis de 1919 contra as exigências japonesas impostas à China e contra o Tratado de Versalhes que as amparava. Contudo, sua investida se concentrou na demolição completa do cânone confuciano, a doutrina de governo que regera a ordem sociopolítica da China e o arcabouço moral da vida intelectual desde a dinastia Han. Em questão de poucos anos, ele foi reduzido a praticamente nada: um feito que os adversários de qualquer credo ou religião comparável- cristã, muçulmana, hindu ou budista - que ocupasse uma posição equivalente no firmamento ideológico de suas civilizações, jamais rivalizaram11. O assalto contra o passado chinês - um tanto impetuoso já em Liang Qichao, ainda que esporádico - tornou-se abrangente e implacável com Chen Duxiu, o mentor intelectual da Nova Juventude12.

A veemência dessa rejeição das tradições autóctones, que destoava por completo de qualquer corrente de ideias no Japão, não refletiu - isso também destoava do Japão - nenhuma tentação profunda pelo Ocidente. Na China, o retrospecto predatório das potências ocidentais era demasiado flagrante para permitir algum tipo de zapadnichestvo. A carnificina entre as potências europeias na Primeira Guerra Mundial foi o remate das lições sobre a ganância imperialista na Ásia, e seu casamento em Versalhes precipitou o próprio Movimento de Quatro de Maio. A marca distintiva dessa intelligentsia após o colapso do sistema de exames imperiais foi a repulsa ao passado tradicional e a execração do presente capitalista, tal como estes se combinavam na China dos senhores guerreiros. Seu maior espírito, Lu Xun, exprimiu ambos de modo inesquecível. Sem negar que os dois sistemas contivessem algo de positivo - no espírito de um sardônico Montaigne, ele instigou seus compatriotas a tirar o melhor proveito de cada um, numa pilhagem à Ia "haptism" -, ele permaneceu um inimigo irreconciliável de ambos. Contudo, o próprio extremismo de suas posições derivava da força da cultura que ele criticava.

Mao, que admirava Lu Xun, seguiu seu conselho numa escala grandiosa, transformando suas negações na síntese positiva de um marxismo achinesado, a uma só vez mais sistematicamente receptivo à subversão intelectual do Ocidente e mais profundamente apegado às tradições políticas do passado imperial - redigindo "Sobre a contradição" nas cavernas de Yan'an e negligenciando os negócios do Estado no auge de seu poder para reler as crônicas de Sima Guang. Lu Xun era pouco versado em materialismo dialético e não apreciava os anais da autocracia. Contudo, os liberais de hoje, que detestam ambos, não estão equivocados em discernir uma ligação entre o "totalismo" do crítico e o "totalitarismo" do dirigente. A seu modo, ambos encarnaram uma resposta chinesa às crises de seu país, cujo vigor criativo não encontra paralelo na Rússia de meados da década de 1920, resposta tirada dos profundíssimos substratos de uma cultura muito mais antiga e mais ameaça da pela dominação estrangeira. Sob forma produtiva ou pervertida, do Quatro de Maio à Revolução Cultural, correntes de força semelhantes estiveram em ação. De 1919 a 1949, confiança na negação, em seguida na revolta. De 1958 a 1976, excessiva confiança na construção, em seguida na destruição. Finalmente, após 1987, confiança na reforma e na reconstrução.

6

O grau de auto confiança com que o senado de anciãos revolucionários atacou os problemas que enfrentavam se manifestou inicialmente no seu modo de lidar com o passado e o futuro do partido. A desestalinização na Rússia tinha sido o feito espetacular, porém subreptício, de um líder unicamente, Khruschev, que surpreendeu o XX Congresso de seu partido com um discurso de denúncia dos crimes de Stálin, sobre o qual não consultara ninguém. Emocional e anedótico, sem apresentar explicações mais profundas sobre como as repressões que relatava seletivamente tinham sido possíveis, a não ser recorrendo ao vazio eufemismo burocrático "culto da personalidade", essa arenga divagadora nunca foi publica da oficialmente, nem complementada por documentos ou análises mais profundas por parte da liderança daquela época ou das subsequentes, até os dias da perestroiha.

Deng e seus colegas agiram de modo muito diverso. Cerca de 4 mil funcionários e historiadores do partido foram convocados para elaborar um retrospecto da Revolução Cultural; com base nas discussões então mantidas, um grupo de 20-40 redatores, sob a supervisão de Deng, produziu um documento-síntese de 3S mil palavras, formalmente adotado como resolução pelo Comitê Central do PCC em junho de 1981. Embora não fosse certamente um relato completo da Revolução Cultural- a responsabilidade atribuída a Mao era qualificada como "ampla pela escala e prolongada pela duração", mas as vítimas das repressões se restringiam ao partido, mais que à população -, o documento oferecia uma explicação coerente dos acontecimentos que não se limitava aos desmandos de um indivíduo isolado: as tradições peculiares de um partido cujo caminho para o poder o tornara afeito à luta de classes irredutível, como se isso fosse uma missão permanente; o efeito do conflito com a Rússia, alimentando temores de revisionismo; e, por último, mas não menos importante, "a perniciosa influência ideológica e política de séculos de autocracia feudal". Ao contrário do requisitório de Khruschev, a resolução admitia a corresponsabilidade do Comitê Central nas gestões do moderno autocrata e não procurava de modo algum diminuir sua contribuição para a Revolução Chinesa como um todo.

Com vistas ao futuro, a abordagem dos anciãos era igualmente distinta. Na URSS, Khruschev não dera nenhuma atenção à questão sucessória. O grupo que o depôs, com Brezhnev à frente, agarrou-se aos seus cargos até a senilidade. Na gerontocracia paralisada em que se transformara o PCUs, as novas gerações eram vistas não como uma promessa, mas como uma ameaça; somente as mortes poderiam suscitar alguma renovação da liderança. Foi preciso que três secretários-gerais morressem no espaço de três anos, todos na casa dos 70, para que um político mais jovem finalmente ascendesse. No PCC, por outro lado, os anciãos estavam preservados dessa insegurança. Eles não perderam tempo para encontrar um substituto. Dois anos após recuperar o poder, tinham delegado seu exercício diário ao séquito de seus subordinados, promovendo Hu Yaobang a secretário-geral do partido e Zhao Ziyang a presidente do Estado. 


A Era das Reformas começou - se não exatamente no tempo, em termos concretos - com uma transformação das relações fundiárias. Primeiro, os preços de estocagem de grãos foram aumentados. A seguir, em um processo que se estendeu por todo o país após o êxito dos experimentos realizados em Anhui e Sichuan, as comunas do povo foram desativadas de modo ordenado e o usufruto das terras criteriosamente dividido entre as famílias individuais que as formavam, as quais poderiam dispor de suas propriedades para produzir o que quisessem, contanto que as cotas requeridas pelo Estado fossem cumpridas. O "sistema de responsabilidade por unidade familiar" significou uma segunda reforma agrária, tão igualitária quanto a primeira, mas muito mais favorável à produção dos camponeses. Reagindo aos novos incentivos, a produtividade aumentou rapidamente: os insumos de mão-de-obra diminuíram e as safras aumentaram; a produção agrícola aumentou em um terço. Com a redução das horas de trabalho dedicadas à lavoura, a indústria rural- têxteis, tijolos e similares - prosperou rapidamente. O resultado foi um aumento de 30% para 44% da renda dos camponeses na renda nacional em um intervalo de poucos anos, 1978-1984. No setor industrial, o sistema de alocação centralizado, baseado no modelo russo, não sofreu nenhum ajuste radical. Ao contrário, as empresas estatais foram gradualmente autorizadas a cobrar preços de mercado para a produção que excedesse as cotas exigidas pelos planos governamentais, vendidas a preços fixos. Os gerentes receberam incentivos parecidos aos dos agricultores para produzir com rentabilidade por fora do sistema de cotas oficial, sem que fosse preciso desmantelá-Ia. Quando esse sistema de preços dual foi suficientemente testado, o escopo dos planos foi congelado, permitindo que outros empreendimentos industriais se desenvolvessem à sua margem. Na prática, o Estado passou a arrendar empresas aos gerentes em bases contratuais, assim como cedera terras aos camponeses mediante contratos de arrendamento de 30 anos, conservando-as, em última instância, sob sua propriedade.
Durante 15 anos ou mais, no marco desses arranjos, o setor mais dinâmico da economia foi o das "empresas de comunas e aldeias" ou TVES13, com seu peculiar estatuto híbrido. Firmas a meio-caminho entre a propriedade estatal, coletiva e privada, elas se beneficiavam de baixos impostos e crédito fácil dos governos locais, muitas vezes acionistas delas, proliferando com espantosa rapidez e competitividade nos ramos mais simples da indústria. A produção da indústria rural cresceu a uma taxa anual superior a 20%; os postos de trabalho nas TVES aumentaram mais de quatro vezes, passando de 28 para 135 milhões; sua parcela no PIB aumentou de 6% para 26%, entre o lançamento das reformas e meados da década de 199014. Altamente lucrativo, o fenômeno das TVES foi ignorado pelos reforma dores russos de todos os matizes, à medida que a perestroika era implementada. De todos os contrastes entre as transformações nas duas economias, o desempenho das TVES constitui a antítese mais flagrante do mergulho desestabilizador da economia soviética na desindustrialização.

Naturalmente, o crescimento espetacular das TVES estava condicionado à oferta ilimitada de mão-de-obra barata, inexistente na URSS. Com elas, pela primeira vez, a RPC tirou máximo proveito de sua principal dotação, em função da qual seu modelo anterior de industrialização em moldes soviéticos - concentrado em investimentos com elevado coeficiente de capital em indústria pesada -, revelara-se um desajuste, embora necessário à época. Alterando esse padrão mediante investimentos intensivos de mão-de-obra em indústria leve, as TVES ganharam uma enorme vantagem comparativa: no final da década de 1980, a relação mão-de-obra/capital fixo das TVES era nove vezes maior que a das empresas estatais. Contudo, estas últimas também foram beneficiárias do crescimento das TVES, cujos lucros engordaram a poupança dos agricultores, sendo então canalizados através dos bancos estatais para ulteriores investimentos nas grandes empresas nacionalizadas, reequipando-as e modernizando-as.

Os elevados índices de poupança rural, por sua vez, foram outra característica do desenvolvimento chinês arraigada no legado paradoxal da própria Revolução. Pois, o que os determinou foi uma combinação entre a tradicional limitação dos benefícios integrais de bem-estar social aos trabalhadores urbanos, o desmantelamento das comunas que tinham fornecido serviços sociais no campo, mais restritos, mas ainda assim efetivos, e os efeitos da política do filho único, destinada a conter o crescimento populacional. Sem proteção do Estado contra a vicissitude, nem garantias seguras de provimento por parte da geração seguinte, as famílias camponesas não tinham muitas opções, senão investir uma parcela substancial de seus rendimentos em poupança. O Estado se beneficiou duplamente com isso. Ao contrário de sua contraparte soviética, ele não precisou cobrir os gastos com o bem -estar social da maioria de sua população e obteve fácil acesso aos fundos necessários para financiar seu programa de modernização.

Havia capitais disponíveis também de outra fonte. Já em 1979-1980, Zonas Econômicas Especiais tinham sido implantadas nas regiões costeiras para atrair investimentos da chamada "diáspora chinesa", visando os afluentes expatriados de Hong Kong, de Taiwan e do Sudeste Asiático. Após um início moroso, a política de Portas Abertas, voltada para esses empresários estrangeiros, tornou-se um sucesso. Atraídas pelas regalias, pela ausência de tarifas de importação e pela mão-de-obra barata da China Continental, as firmas da "diáspora" chegaram com força total, trazendo tecnologias inacessíveis às ZEES, sobretudo em processamento de exportações. Assim, a China conseguiu pegar carona na experiência e no patrimônio acumulados do capitalismo da diáspora para fazer sua entrada no mercado mundial como centro manufatureiro de baixo custo para linhas de montagem, especializando-se com o tempo em eletrônica e eletrodomésticos de cozinha. Essa também foi uma vantagem regional que a economia soviética, embora eventualmente contasse com outras opções, não tinha chance de igualar.

Por último, mas não menos importante, as reformas chinesas foram decisivamente beneficiadas pela descentralização dos controles sobre a economia, um dos legados mais profícuos do maoísmo. Isso significou não apenas que o império do planejamento a ser remodelado era muito menor, sem uma parafernália desmesurada de cotas e diretrizes, mas também que o país já contava com uma rede de centros autônomos de atividade econômica em suas províncias. Quando estas foram liberadas ainda mais da intervenção de Beijing, seus governos entraram com força total, oferecendo todo tipo de incentivos para aumentar os investimentos e acelerar o crescimento em suas jurisdições. A certa altura, isso acabou provocando uma série de distorções e irracionalidades: duplicação de indústrias, gigantismo na consecução de obras públicas, expansão do protecionismo informal, para não falar do enfraquecimento fiscal do governo central, visto que as autoridades locais passaram a competir entre si por melhores resultados. Contudo, apesar de todas as suas aberrações, a concorrência interprovincial na China, tal como a rivalidade entre as cidades italianas no passado, foi e continua
a ser uma fonte de vitalidade econômica. A Rússia é hoje nominalmente uma federação; no entanto, suas vastas e uniformes planícies nunca favoreceram a criação de fortes identidades regionais e seu governo continua centralizado como nunca. O contraste com a China é notável. Em matéria não de direito constitucional, mas de realidade comercial, a República Popular de hoje é um exemplo tão acabado de federalismo dinâmico quanto os Estados Unidos.

III. Pontos de ruptura

Quando a Era da Reforma completou uma década, no final dos anos 1980, a economia chinesa tinha se transformado substancialmente. Naturalmente, a escala e a rapidez dessas mudanças não deixaram de afetar a sociedade e a cultura. No campo, o crescimento da renda estacionou após 1984, mas as condições de vida do campesinato tinham melhorado tão sensivelmente, em termos relativos, que eles permaneceram uma classe satisfeita. A intelligentsia, historicamente o outro fator-chave da ordem social, também havia sido bastante favorecida pela política de reformas. Contudo, sua atitude diante do regime era mais ambígua. As universidades reabriram, os institutos de pesquisa se expandiram, novas oportunidades de emprego surgiram. A juventude escarmentada pela temporada no campo foi reintegrada à vida urbana e as vítimas das repressões do passado, libertadas. A liberdade de expressão era muito maior do que no período de Mao, o acesso às ideias e à literatura estrangeiras era de modo geral franqueado, motivando uma verdadeira "febre de alta cultura". Numa atmosfera estimulante de crescente emancipação, debatia-se o futuro da nação, com esmagador consenso em favor da ampliação das reformas.

Esse último ponto, aliás, não constituía propriamente uma diferença com o governo, cuja meta oficial também era aprofundar o processo de reformas. Para muitos intelectuais, ambos trabalhavam no mesmo sentido, trocando consultas e orientações, especialmente com Zhao Ziyang e seus assessores. Mas, havia também certa tensão no ar, que foi aumentando à medida que a década avançava. O partido estava imbuído da autoridade que os sucessos na economia lhe conferiram. Ele gozava de legitimidade também por ter resgatado o país da Revolução Cultural. Mas essa liberação não se traduziu pela sugestão de nenhuma ordem política alternativa. A esse respeito, os anciã os, que tinham sentido na própria pele os efeitos da turbulência, não fizeram nenhum aceno, mas tão só advertências quanto à necessidade de prevenir qualquer recaída no caos. Já em 1978, quando começou a Era das Reformas, as vozes que reivindicavam democracia haviam sido rapidamente silenciadas como uma ameaça para a estabilidade. Na época, elas ainda eram relativamente isoladas.

Mas, à medida que as reformas econômicas avançavam, com ênfase crescente na introdução de relações de mercado, não houve nenhum esforço consequente de analisar as suas implicações - nenhuma explicação oficial para o sucesso das ZEES, por exemplo. O resultado foi uma espécie de limbo ideológico, no qual as ideias liberais se disseminaram de modo um tanto natural. Ora, se os princípios da economia de livre empresa estavam na ordem do dia, por que os princípios jurídicos de liberdade política - alguns, consagrados nominalmente na própria constituição da RPC - não poderiam acompanhá-los, tal como sustentavam as doutrinas conceituadas no Ocidente? Historicamente, apesar da projeção alcança da por Hu Shi, seu representante mais destacado na geração do Movimento Quatro de Maio, o liberalismo havia sido uma tendência inexpressiva entre a intelligentsia chinesa. Mas, na década de 1980, sem ter produzido nenhum teórico comparável, sem contornos suficientemente nítidos, ele se tornou, no rastro da Revolução Cultural, algo como uma postura dominante entre os intelectuais. Bastante moderada, na maioria, embora com o tempo viesse a adquirir acentos mais radicais, mais próximos do padrão russo. Por volta de 1988, a popular série de televisão River Elegy propunha um elogio cifrado do Ocidente, em contraste com as austeras tradições chinesas, do qual qualquer zapadnik teria se orgulhado, embora incluísse até mesmo um retrato lisonjeiro de Zhao Ziyang, evocando o futuro grandioso prometido ao país, e fosse amplamente criticada pelos estudiosos como reconstituição histórica.

Nessa altura, o clima entre os estudantes variava. Entre a geração dos que não haviam sido diretamente afetados pela Revolução Cultural, a animação era grande e as ideias, menos rígidas. Poucos não tinham sido tocados pelos ideais originais da Libertação; alguns eram influenciados por professores liberais, outros por mais ortodoxos; a maioria, sintonizada com a cultura e as novidades do estrangeiro - canções de Taiwan, música dos Estados Unidos; greves na Polônia, eleições na Rússia; todos embalados pelo élan de um país em movimento, excitados pela abertura de seus horizontes e frustrados por seu prolongado imobilismo. Cientes do papel histórico que haviam desempenhado na conscientização da nação em 1919 e novamente em 1935, eles formavam a camada da população mais madura para a ação coletiva. Em 1985, eles mostraram sua característica fibra nacionalista em protestos contra o Japão. Então, no inverno de 1986-1987, organizaram demonstrações pela democracia em Hefei e Beijing. Quando Hu Yaobang, o secretário-geral do partido, se recusou a dissolvê-Ias, os anciãos o demitiram. O movimento foi contido, mas os sentimentos que o animavam não desapareceram.

No ano seguinte, a própria reforma da economia - até então, o para-choque contra as reivindicações de reforma política - defrontou -se com sua primeira crise séria, quando os preços dos produtos básicos começaram a subir e os salários dos trabalhadores urbanos estagnaram. Quando Zhao e Deng deram a entender que a liberação geral dos preços seria iminente, seguiu-se a estocagem de produtos básicos provocada pelo pânico e a inflação disparou durante o verão, alcançando uma variação média anual de 50%. Mas, na percepção do povo, esse não foi o único efeito nocivo do sistema de preços dual. A corrupção, desconhecida durante o período de Mao, aumentava, com funcionários se aproveitando de seus cargos para explorar a diferença entre os preços tabelados e os preços de mercado dos mesmos produtos, e era abominada. A combinação entre dificuldades materiais inesperadas e revolta diante da injustiça social era uma mistura explosiva, gerando uma atmosfera de tensão nas cidades.

Em Beijing, os estudantes já estavam preparando demonstrações para coincidir com o aniversário dos 70 anos do Movimento Quatro de Maio, quando, em abril de 1989, a morte de Hu Yaobang - caído em desgraça por tê-los apoiado - proporcionou um catalisador mais imediato para a manifestação de seus sentimentos sobre o fechamento político. Os estudantes marcharam em passeata até a praça da Paz Celestial para homenagear Hu, pegando o governo desprevenido. zhao tinha desempenhado um papel na queda de Hu, a quem substituiu como secretário-geral do PCC, Confrontado com o tumulto, porém, ele agora contemporizou e o Comitê Permanente rachou, deixando as autoridades sem ação. O movimento estudantil, que mostrou um excelente nível de organização, foi capaz de mobilizar todas as universidades da cidade e manter pressão contínua sobre o governo. No início de maio, as passeatas deram lugar à ocupação da praça pelos estudantes, que exigiam mudanças democráticas e eram apoiados por grandes manifestações da população de Beijing, exasperada pelo agravamento de sua situação econômica e solidária com as principais reivindicações políticas dos estudantes. Protestos semelhantes irromperam em todo o país, onde houvesse universidades para deflagrá-los. Milhões de pessoas saíram às ruas, num movimento social sem precedentes na história da República Popular.

As agitações de 1989 na China, por sua escala e intensidade, superaram todas as outras registradas na Europa do Leste, para não falar na Rússia, naquele ano ou posteriormente. A energia rebelde e o idealismo dos estudantes do país, bem como a solidariedade ativa da população urbana, não tiveram paralelo em outros lugares: um testemunho, a seu modo, da vitalidade política de uma sociedade ainda próxima de suas origens revolucionárias. Na China, porém, dois tipos de energia diferentes colidiram. Quando estourou a crise, a liderança pós-revolucionária responsável pelo funcionamento diário do Estado e do partido titubeou e rachou. Mas os anciãos, veteranos de décadas de luta armada para conquistar o poder, não iriam perdê-lo por indecisão. Eles permaneceram os combatentes que sempre haviam sido, não hesitando em contragolpear aquilo que viam como uma ameaça ao poder do partido, tão logo a força necessária para tanto foi mobilizada. Em junho, o ELP recebeu ordens de esvaziar a praça e o movimento foi esmagado em uma noite de violência. 2 A repressão custou caro ao PCC. Ele perdeu mais legitimidade com o Quatro de Junho do que com a Revolução Cultural, que em certo momento não apenas desfrutou de apoio efetivo, mas também deixou uma reserva de líderes respeitáveis para assumir o governo, uma vez superada. Em 1989, nenhum setor da nação apoiou a repressão e nenhuma oposição sobreviveu no partido - Zhao, exonerado por não ter votado em favor da lei marcial, morreria no anonimato 16 anos mais tarde, ainda sob prisão domiciliar. Por outro lado, o regime ainda conservava o trunfo do crescimento econômico. Gastas as antigas credenciais ideológicas, daí em diante seria isso que bancaria todo o resto. Uma dose de austeridade para controlar a inflação vigorou até 1991. O que viria em seguida?

Nesse ponto, Deng se distanciou de seus colegas e de seu próprio passado. Em maio de 1989, ele tinha declarado: "Naturalmente, há os que pensam que 'reforma' significa um movimento rumo ao liberalismo ou capitalismo. O capitalismo é a quintessência da reforma para eles, mas não para nós. O que nós entendemos por reforma é algo diverso, ainda sujeito a discussão15". Em janeiro de 1992, Deng percorreu o sul da China e em Shenzhen, a maior das Zonas Econômicas Especiais, declarou que o principal perigo que a China enfrentava era a oposição, não da direita, mas da esquerda, contra o aprofundamento das reformas, cuja inovação exemplar era a bolsa de valores local. Embora ainda sustentasse que a China precisava mais do socialismo que do capitalismo, ele agora se recusava a "falar de capitalismo com 'c' maiúsculo e socialismo com 's' maiúsculo" como algo fútil, explicando que, como as desigualdades são funcionais para o crescimento, a acumulação individual de riquezas não era algo condenável, mas louvável: "Ficar rico é uma glória". Enterradas as esperanças de liberdade coletiva, a compensação estaria na prosperidade individual. Tudo o que importava era o crescimento, sem especificações anacrônicas, como rezava o lema oficial buzinado aos ouvidos céticos: "O desenvolvimento é o argumento irrefutável".

O desenvolvimento veio, de fato, e a um ritmo espetacular. O crescimento da China nos anos 1990 superou inclusive o dos 1980, conforme a liberalização da economia se intensificava. No final da década, a paisagem industrial tinha se transformado graças a uma reestruturação maciça das empresas estatais. Ainda em 1996, o setor estatal era responsável pelo grosso dos postos de trabalho nas cidades. Mas, a partir de 1997, os funcionários provinciais foram autorizados a dispor da maioria delas como bem entendessem, fechando, remodelando ou privatizando-as. No decorrer do processo, a cada ano cerca de 7 milhões de trabalhadores perderam seus empregos; finalmente, por volta de 2004, os postos de trabalho nas empresas privadas eram quase o dobro dos do setor público. No mesmo período, as Empresas de Comunas e Aldeias (TVES) foram privatizadas numa escala ainda maior, ficando apenas 10% delas sob alguma forma de propriedade coletiva. O mesmo aconteceu com 80% dos imóveis residenciais urbanos. Mas, "conservando o grande e descartando o pequeno", o Estado não abriu mão daquilo que considerava o pináculo estratégico da economia: energia, metalurgia, armas e telecomunicações. Responsáveis por um terço do total de vendas de produtos manufaturados e apresentando altas margens de lucro, suas megaempresas nesses setores-chave correspondem a cerca de três quartos do patrimônio global das empresas estatais16.

Estruturalmente, se o despojamento gradual foi uma das duas mudanças fundamentais do segundo período de reformas PÓS-1989, a outra foi a maximização do comércio exterior. A rapidez e o grau de abertura nesse setor tiveram poucos precedentes. No início do novo século, as tarifas industriais médias eram de menos de 10%, cerca de um terço das da Índia; as tarifas agrícolas não ultrapassavam 15%. Fomentado por investimentos externos - em que capitais não mais da "diáspora", mas norte-americanos, japoneses e europeus, embora minoritários, desempenhavam um importante papel -, as exportações de manufaturados aumentaram vertiginosamente - sobretudo, de tecnologia avançada, embora estes últimos envolvessem basicamente montagem. De fato, no espaço de uma geração, a China tornou-se a nova fábrica do mundo: a fatia correspondente a comércio exterior de manufaturados no seu PIB é de dois terços, cifra sem precedentes para um grande país, duas a três vezes superior à dos Estados Unidos ou do Japão. Mas, tal como ocorreu com a indústria doméstica, o Estado manteve até agora uma alavancagem decisiva no terreno do comércio exterior, controlando a taxa cambial, a conta de ativo fixo e o sistema bancário.

O sucesso material desse modelo de desenvolvimento transformou a RPC na maravilha do mundo contemporâneo. Com uma taxa de investimento superior a 40%, em 15 anos, de 1989 a 2004, seu PIB quadruplicou. Nas cidades, a renda das unidades familiares aumentou a uma taxa anual de 7,7%; no campo, em cerca de 5%17. Do início da Era da Reforma até 2006, o padrão de vida médio dos chineses aumentou oito vezes, expresso em dólar. Numa única década, a população urbana registrou um salto de 200 milhões18. Ela corresponde agora a dois quintos da população do país e alimenta o maior mercado automotivo do mundo. Ultrapassando de longe até as reservas japonesas, os títulos em carteira do comércio exterior somam mais de 1,3 trilhões, superando o PNB do Canadá. A China chegou, e com força total. 

IV. O novum

Mas seria "chegada" o termo correto? Não seria "retorno" talvez o mais apropriado? Afinal, a China havia sido por muitos séculos a civilização mais rica e mais avançada do mundo: com certeza, deve existir alguma relação entre esse passado grandioso e as formidáveis realizações do presente. Essas questões nos levam para um terreno mais abrangente e mais obscuro do que o campo relativamente delimitado das comparações entre duas revoluções modernas. Aqui, poderíamos caracterizar em linhas gerais três correntes de pensamento antagônicas, embora não tenha havido até agora nenhum confronto sistemático entre elas. A primeira, atualmente mais em voga entre os historiadores, atribui o acelerado crescimento da RPC essencialmente aos legados milenares de seu passado imperial - dinamismo comercial baseado na agricultura intensiva; profunda divisão do trabalho; redes urbanas desenvolvidas e expansão do comércio interno; crescimento populacional recorde; uma "revolução industriosa". Sob esse ponto de vista, a economia chinesa, havia muito a maior e mais sofisticada do mundo, exibindo um clássico padrão smithiano de crescimento, era tão ou mais plenamente desenvolvida quanto a da Europa Ocidental, pelo menos, até a Guerra do Ópio. Desviada de seu curso por mais de um século pela penetração estrangeira e pela desordem interna, ela agora retornava à sua posição natural no mundo.

Para uma segunda corrente, predominante entre os economistas, o passado imperial oferece poucas pistas para compreender o presente moderno, quanto mais não seja porque - como enfatizou Smith - a ausência de intercâmbio comercial com o estrangeiro privou a economia tradicional de estímulos competitivos, e a proteção deficiente dos direitos de propriedade inibiu a atividade empresarial, restringindo o desenvolvimento chinês a limites próximos do padrão malthusiano. Segundo essa interpretação, o acelerado crescimento atual é resultado da integração tardia da China à economia capitalista mundial, de cuja formação ela esteve historicamente ausente. Com a abertura de seus mercados aos investimentos externos e o gradual fortalecimento dos direitos de propriedade, os fatores de produção foram finalmente liberados para um novo dinamismo. A combinação de oferta abundante de mão-de-obra barata com fartos capitais e tecnologias estrangeiros construiu uma máquina de exportação sem precedentes no passado da China.

Para uma terceira corrente, encontrada (não apenas) entre os sociólogos, a chave para a ascensão econômica da China estaria, pelo contrário, na Revolução Chinesa. Segundo essa versão, foram as realizações do período de Mao que lançaram os fundamentos para as façanhas da Era da Reforma. Esse legado traz no seu bojo a criação, pela primeira vez na história moderna da China, de um Estado soberano forte, que pôs fim à sujeição semicolonial do país; a formação de uma força de trabalho treinada e disciplinada, com altos índices de alfabetização e de expectativa de vida, numa sociedade sob outros aspectos ainda retardatária; e o estabelecimento de poderosos mecanismos de controle da economia - planejamento, setor público, contas do país com o exterior - dentro de um marco institucional relativamente descentralizado, que deixava uma margem de autonomia para as províncias. O desempenho do período das Portas Abertas só teria sido possível com base nesses fatores de transformação19. Obviamente, nenhuma dessas interpretações é absoluta. Encontram-se tanto misturas, quanto casos puros. Em geral, porém, elas não tentam avaliar o peso relativo das variáveis em jogo. Em termos analíticos, a hierarquia dos fatores determinantes buscada não se cristalizará de uma hora para outra. Nesse ponto, é suficiente indicar um termo de comparação pertinente para as hipóteses conflitantes, o qual pode ser formulado da seguinte maneira. Em que, e como, o acelerado crescimento da RPC se diferenciou ou se assemelhou ao do Japão, Coreia do Sul ou Taiwan? Se a experiência chinesa foi um tanto parecida com a deles, então, as hipóteses, sejam de capitalismo pré-moderno ou de capitalismo tardio, ganham impulso; se diferiu substancialmente deles, a hipótese revolucionária parecerá prima fade mais plausível. O que sugerem as evidências?

Uma olhadela nas estatísticas revela um paradoxo. Apesar de sua impressionante rapidez, o crescimento da RPC não foi tão mais veloz que o de seus vizinhos do Extremo Oriente em etapas comparáveis de seu desenvolvimento, embora fosse mantido por uma década a mais. As suas respectivas bases econômicas tampouco diferiam significativamente: em todos os casos, o modelo de desenvolvimento era essencialmente voltado para a exportação. Nesses dois aspectos, as semelhanças entre os membros da família são fortes. Noutros cinco, porém, o contraste é marcante. A partir da década de 1990, a RPC passou a depender muito mais das exportações do que o Japão, a Coreia do Sul ou Taiwan; a parcela correspondente a consumo no PIB chinês tem sido muito inferior; a dependência do capital estrangeiro tem sido muitíssimo maior; a disparidade de renda - e de investimentos - entre o campo e a cidade, muito mais acentuada20,» Por fim, e não menos importante, a escala e o papel do setor estatal na economia foram e continuam a ser, em termos estruturais, muito maiores. Essas características que distinguem o crescimento chinês no contexto do Extremo Oriente estão interrelacionadas e apresentam uma explicação simples. No Japão, na Coreia e em Taiwan, os Estados emergentes no pós-guerra foram uma criação da ocupação ou da proteção norte-americanas, formando uma das linhas de frente da Guerra Fria. Estrategicamente, eles continuam até hoje sob a tutela de Washington - incrustados de bases militares ou cercados por belonaves norte-americanas-, sem contar com verdadeira autonomia diplomática ou militar. Carentes de soberania política e, no entanto, necessitados de autonomia no plano interno, seus governantes - o partido Liberal Democrata, Park Chung Hee, o Guomindang - buscaram uma compensação implementando políticas de desenvolvimento econômico autossustentado, mantendo o capital estrangeiro à distância, por um lado, e promovendo as corporações nacionais, por outro. De modo análogo, temendo a radicalização no campo, confrontados com o espectro da Revolução Chinesa, eles implementaram políticas de reforma agrária - nisso, os EUA os apoiaram - e cuidaram para que o campo nunca ficasse muito atrás das cidades, à medida que o crescimento acelerava. A configuração contrária prevaleceu na RPC. Nela, o Estado pós-revolucionário era totalmente soberano na arena internacional- a ponto de arrancar um cessar-fogo dos Estados Unidos na Coreia - e bastante forte no plano interno desde o início. Por isso mesmo, quando chegou a Era da Reforma, a RPC foi capaz de assimilar um influxo maciço de capital externo, sem receio de que este pudesse lhe trazer descrédito ou subversão. Como Estado totalmente independente, em pleno comando de seu território, ele podia confiar tanto na sua capacidade de controlar fluxos de capital estrangeiro por meio do poder político - um pouco como Lênin pretendera nos tempos da Nova Política Econômica (NEP) -, quanto na sua capacidade de dominar ou manipular o capital nacional, graças a seu controle contínuo sobre as instâncias estratégicas da economia - financeiras e industriais. Além do mais, o Estado podia conter o consumo no campo, impelindo camponeses destituídos para as cidades como uma força de trabalho migrante, algo inviável para os governos em Tóquio, Seul ou Taipé, cujos agricultores precisavam ser bem tratados como condição de sobrevivência dos regimes locais. Se o PCC foi capaz de conseguir isso sem perder o controle sobre a urbanização - a proliferação de favelas planetárias no sul e no sudeste da Ásia -, foi graças ao sistema de hukou, que segregava as cidades do campo, estabelecido durante o Grande Salto Adiante. Durante o período de Mao, os camponeses também tinham sido vítimas de acumulação primitiva em benefício das cidades. Uma vez que a saúde pública e a educação nas aldeias foram desmanteladas após Mao, e que na gestão de liang Zeming os investimentos foram redirecionados para longe do campo, as disparidades de renda entre as populações urbana e rural aumentaram aos saltos. Os pressupostos históricos tanto dos altos índices de inversões externas diretas, quanto dos baixos índices de investimentos em infraestrutura rural na RPC são os mesmos - um regime originado de uma revolução, num país com população mais de sete vezes maior que a do Japão, Coreia do Sul e Taiwan juntos, capaz de jogar duro seja com os camponeses, seja com os estrangeiros. O preço de ambas as coisas ainda não foi pago. Mas os custos diretos ou indiretos de uma e outra têm aumentado visivelmente - de modo ainda desarticulado, porém espalhando inquietação nas aldeias; de modo ainda administrável, mas gerando crescente dependência do Tesouro dos EUA. 

2

O partido que comandou essa transformação do país foi transformado por ela. Os Imortais já passaram. Mas não as vantagens de ser o segundo, e não o primeiro, a mover as pedras. Tirando as lições necessárias da sorte final reservada ao brezhnevismo, o rcc institucionalizou a renovação de seus quadros dirigentes, impondo limites para o exercício dos cargos e regulando a transferência de poder de uma geração para outra. Sem quaisquer antecedentes revolucionários, os atuais e os próximos detentores do poder possuem uma educação mais formal e, como nunca antes, dispõem - tal como os imperadores dispunham dos letrados - de recursos técnicos e intelectuais mais amplos e diversificados, de painéis de especialistas e consultas informais com peritos ou partes interessadas. O crescimento econômico e o sucesso diplomático restauraram a reputação política: o partido atualmente conta com um grau de legitimidade popular como não contava desde a década de 1950. O mandato que adquiriu é a um só tempo poderoso e frágil. O poder: prosperidade no plano interno e dignidade no plano externo são apelos a que poucos resistem. A fragilidade: desenvolvimento econômico sem justiça social, afirmação no plano doméstico e percalços na arena internacional, são aspectos que dificilmente se enquadram nos ideais da Revolução que o partido reivindica como sua. O nacionalismo de consumo é um constructo ideológico raso, no qual ele não pode se fiar inteiramente. Despolitizado como o discurso dominante do PCC se tornou, expurgá-lo de todo socialismo seria contraproducente. A reivindicação transmitida de uma outra legitimidade, ainda inscrita no seu nome, continua a ser uma reserva necessária. Pois os sentimentos revolucionários diante da injustiça e as demandas por equidade não desapareceram das mentes dos cidadãos. Nem tampouco os riscos de ignorá-los.

Explicação é uma coisa, classificação outra e avaliação, uma terceira. Em termos taxonômicos, a RPC do século 21 é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, é no momento uma economia predominantemente capitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmente um Estado comunista - ambos, em seus respectivos gêneros, os mais dinâmicos jamais vistos21. Politicamente, os efeitos dessa contradição deixam suas marcas por todo o espectro da sociedade, onde eles se fundem ou se mesclam. Nunca tantos saíram tão rapidamente da pobreza absoluta. Nunca indústrias modernas e infra-estruturas ultramodernas foram implantadas em escala tão vasta, em tão pouco tempo, nem nunca uma classe média florescente emergiu tão rapidamente junto com elas. Nunca a hierarquia das potências foi alterada tão dramaticamente, alimentando tão espontaneamente o orgulho popular. Nem, nos mesmos anos, a desigualdade atingiu tão rapidamente tetos tão mirabolantes, a partir de um piso tão baixo. Nem a corrupção se alastrou tanto, ali onde a probidade era algo subentendido. Nem os operários, ao menos em teoria, os senhores do Estado até ontem, foram tratados de modo tão abusivo e impiedoso - extinção de postos de trabalho, não pagamento de salários, afrontas escarnecidas, protestos sufocados22. Nem os camponeses, a espinha dorsal da revolução, foram tão esbulhados de suas terras e meios de subsistência, alijados de uma área equivalente à das regiões montanhosas da Escócia por empreendedores imobiliários e burocratas. Usuários da internet em número superior ao de qualquer outro país, nenhum terror, ampla liberdade em suas vidas privadas; um aparato de vigilância moderno e eficiente, como nunca se viu. Para as minorias, ação afirmativa e repressão política e cultural, de mãos dadas; para os ricos, todos os luxos e privilégios que a exploração pode comprar; para os fracos e desenraizados, migalhas ou menos que isso; para os dissidentes, a mordaça ou a masmorra. Em meio ao conformismo ideológico formal- nem sempre, de todo irreal- energia social e vitalidade humana formidáveis. Emancipação e regressão não raro estiveram associadas no passado; mas não de modo tão vertiginoso como na China que Mao ajudou a criar e tentou evitar.

A apreciação de um processo histórico tão descomunal, ainda no seu estágio inicial, está sujeita à falibilidade. Um tanto complexo para aqueles que o vivem de dentro, abarcá-lo na sua totalidade com firmeza e clareza de vistas e chegar a uma síntese dialética talvez seja uma tarefa simplesmente impossível para os que o observam de fora. No Ocidente, mania e fobia da China têm alternado com regularidade desde o Século das Luzes, o pêndulo ora oscilando desta para aquela, em meio a uma nova onda de chinoiserie popular e erudita, não necessariamente mais esclarecida que a original. Na China, suas contrapartes são climas recorrentes de atração pelo Ocidente e de chauvinismo Han. Um espírito sóbrio de comparação, raramente alcançado, é a única salvaguarda contra tais tentações. Isso também vale para o futuro. As projeções de tendências futuras, otimistas ou pessimistas, ouvidas de tempos em tempos entre seus cidadãos, são frequentemente tiradas de Taiwan ou Cingapura: provável democratização, à medida que o padrão de vida e as expectativas políticas aumentam, ou paternalismo autoritário in perpetuo, com uma fachada eleitoral. Nem um nem outro são particularmente atraentes. Em Taiwan, a democracia resultou não tanto de uma gradual mudança de disposição do GMD, quanto de sua necessidade de um novo tipo de legitimação internacional, uma vez que os Estados Unidos deixaram de reconhecer a ilha. O regime monopartidário de Cingapura está fundado sobre um sistema de bem-estar social que só é tão previdente porque foi construído em função de uma cidade-estado, não de um Estado de proporções imperiais. Beijing não necessita do primeiro, nem é provável que venha a reproduzir o segundo. Rumo a quais paragens o megajunco da RPC está se deslocando, é algo que resiste ao cálculo, pelo menos dos astrolábios ora conhecidos.

Notas:

1.

2. O notável ensaio de Isaac Deutscher, “Maoism – Its Origins and Outlook” (1964), continua a ser o ponto de partida para qualquer exame das relações entre as duas revoluções: Ironies of History, Oxford, 1966, pp.88-120.

3. Para uma estimativa do saldo de vítimas, ver R.W. Davies, “Forced Labor under Stálin: The Archive Revelations”, NLR I/224, nov-dez. 1995, pp.62-80; J. Arch Getty e Oleg Naumov, The Road to Terror, New Haven, CT 1999, pp. 587-594.

4. Ver Andrew Walter e Yang Su, “The Cultural Revolution in the Countryside: Scope, Timing and Human Impact”, China Quarterly, mar. 2003, pp. 82-107.

5. Gosudarstvennyi Komitet Planirovaniya, Comissão de Planejamento Estatal do Governo Comunista da Rússia. [N.doT.]

6. Negativamente, a coletivização agrária e os expurgos tiveram efeitos afins sobre o sistema político: catástrofes cujos êxitos comprometeram irremediavelmente as renovações, enquanto os fracassos do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural possibilitaram-nas.

7. Para o desmantelamento do partido federativo, ver Stephen Kotkin, Armageddon Averted: The Soviet Collapse 1970-2000, Oxford, 2001, pp. 76-81; para o caos monetário, a disseminação do escambo e o desfalque crescente do patrimônio público à medida que a perestroika degringolava, ver David Woodruff, Money Unmade: Barter and the Fate of Russian Capitalism, Ithaca, 1999, pp. 56-78, e Andrew Barnes. Owning Russia: The Struggle over Factories, Farms and Power, Ithaca, 2006, pp. 43-67.

8. As comparações pertinentes são exploradas na obra fundamental de Peter Nolan, China´s Rise, Russia´s Fall: Politics, Economics and Planning in the Transition from Stalinism, Basingstoke, 1995, pp. 110-159, que também contém um dos mais críticos e contundentes relatos da perestroika: pp. 230-301. Para reflexões contritas sobre o fracasso da perestroika em “deflagrar uma revolução capitalista”, comparar Minxin Pei, From reform to Revolution: The Demise of Communism in China and the Soviet Union, Cambridge, 1944, pp. 118-142.

9. Barry Naughton, Growing out of the Plan: Chinese Economic reform, 1978-1993. Nova York, 1995, pp. 41-42

10. The Tiananmen Papers, Nova York, 2001, p. 327.

11. Para um estudo de brilhante virtuosismo, ver Mark Elvin, “The Collapse of Scriptural Confucianism”, in Another History: Essays on China from a European Perspective, Honolulu, 1996, pp. 352-389. 

12 .“Onde estão os babilônios hoje? De que lhes serve a sua cultura agora?”, Indagou ele, Jack Gray, Rebellions and Revolutions China from the 1800s to 2000, Oxford, 2002, p. 195.

13. Em inglês, “Township and Village Enterprises”, ou TVE [N.do T.] 14 Naughton, The Chinese Economy: Transitions and Growth, Cambridge, 2007, p. 274-276.

14.

15. The Tiananmen Papers, p. 325. 16 Naughton, The Chinese Economy, pp. 186, 106, 286, 303-304.

16.

17. As cifras globais dissimulam uma brusca guinada tanto no modelo de crescimento quanto na distribuição de renda após 1989, favorecendo as cidades em detrimento do campo, e as empresas estatais e estrangeiras em detrimento das empresas privadas. Para uma análise dessa mudança, ver Yasheng Huang, Capitalism with Chinese Characteristics: Entrepreneurship and the State, Nova York, 2008, que argumenta ainda que o fator total de produtividade vem declinando na economia chinesa como um todo: pp. 228-290. 

18. Fred Bergsten, Bates Gill, Nicholas Lardy e Derek Mitchel, China: The Balance Sheet, Nova York, 2006, pp. 5 e 31.

19. Para os argumentos da primeira corrente, ver Kenneth Pomeranz, The Great Divergence: Europe, China anad the Making of the Modern World Economy, Princeton, 2000, e Sugihara Kaoru, “The East Asian Path of Economic Development: a Long-Term Perspective”, in Giovanni Arrighi, Hamashita Takeshi e Mark Selden (ed.), The Resurgence of East Asia: 500, 150 and 50 year Perspectives, Londres, 2003, pp. 78-117; para uma ilustração da segunda, ver Jim Rowher, “When China Wakes”, Relatório Especial de The Economist, 28.11.1992; para exemplos da Terceira, ver Chris Bramall, Sources of Chinese Economic Growth 1978-1996, Oxford, 2000, e, especialmente, Lin Chun, The Transformation of Chinese Socialism, Durham, 2006.

20. Ver o surpreendente estudo, com os respectivos gráficos, de Hung Ho-fung, “America´s Head Servant?”, NLR 60, nov-dez. 2009.

21. Para a mais lúcida análise recente da estrutura da economia, ver Joel Andreas, “Changing Colours in China”, NLR 54, nov-dez. 2008, pp. 123-152; sobre o continuísmo no partido, ver David Shambaugh, China´s Communist Party: Atrophy and Adaptation, Bekerley/Los Angeles, 2008, que destaca a sua capacidade de tirar lições das consequências do colapso do PCUs. 22 As vicissitudes da velha e da nova classe operária chinesa são o objeto de uma obra-prima da sociologia: Ching Kwan Lee, Against the Law: Labor Protestes in China´s Rustblet and Sunblet, Bekerley/Los Angeles, 2007.

22. As vicissitudes da velha e da nova classe operária chinesa são o objeto de uma obra-prima da sociologia: Ching Kwan Lee, Against the Law: Labor Protestes in China´s Rustblet and Sunblet, Bekerley/Los Angeles, 2007.

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