Podemos aprender mais sobre globalização, desigualdade e modernidade a partir do Manifesto Comunista do que com qualquer outro livro já escrito.
Marshall Berman
Image: Marx statue at Chemnitz (Wolfgang Thieme/Wiki. Com./1971) |
O ensaio a seguir é a introdução da Penguin Classics Deluxe Edition do Manifesto Comunista, publicada em março deste ano.
Hoje, no princípio do século XXI, o Manifesto é bem menos lido do que já foi. Governos comunistas dominaram porção considerável do mundo por boa parte do século XX. No mundo todo, a educação comunista foi poderosa e bem-sucedida em muitos aspectos, mas foi também distorcida no modo pelo qual canonizou Marx como uma espécie de santo padroeiro oficial. Para quem nasceu no Ocidente, é difícil compreender essa ideia. Mas, ao longo da maior parte do século XX, em boa parte do mundo, esperava-se de todo candidato a ascensão numa organização comunista que soubesse de cor e fosse capaz de citar certas passagens e certos temas presentes nos escritos de Marx. Esperava-se também que não soubesse de muitas outras ideias de Marx — ideias como as de trabalho alienado, dominação por parte do Estado e liberdade.
Depois da queda do muro de Berlim, em 1989, esse sistema desmoronou com grande rapidez. Por todo o Leste europeu, estátuas de Marx foram postas abaixo. Fotografias de pessoas derrubando estátuas ofereceram por algum tempo material de primeira página para os jornais. Àqueles leitores que gostam de Marx, essa perda de santidade só pode ser encantadora. Sua canonização pós-1917 foi um desastre. Beatificação é coisa que faz tão bem a um pensador quanto a peste! No mundo todo, só podemos saudar esse desastre de fim de século como uma queda das mais afortunadas. Um de meus velhos chefes no City College de Nova York, alguém que havia crescido sob governos comunistas da Europa do Leste, disse-me que, após a queda do muro, não deviam permitir que eu seguisse ensinando Marx, porque “1989 é prova de que cursos de marxismo são coisa obsoleta”. Respondi a ele que, ironicamente, as universidades norte-americanas funcionavam sob um regime de mercado e ensinavam o que fosse que os estudantes quisessem aprender, mesmo que autoridades acadêmicas julgassem que as matérias por eles escolhidas não devessem ser ensinadas. Disse-lhe também que o Marx que os estudantes queriam ler hoje era muito mais interessante que o santo padroeiro de ontem: estavam à procura de um pensador que pudesse conduzi-los através da dinâmica e das contradições do capitalismo.
Na verdade, podemos aprender mais sobre esse assunto no Manifesto do que em qualquer outro livro jamais escrito. Muito do encanto desse texto decorre da ideia de que há uma conexão a vincular toda uma enorme gama de fenômenos modernos. Algumas vezes, Marx tenta explicar essas conexões; outras vezes, limita-se apenas a pôr coisas lado a lado e deixa que nós estabeleçamos a conexão.
Que conexões Marx estabeleceu? Em primeiro lugar — e de modo surpreendente, se não se está preparado para tanto —, encontramos no Manifesto um louvor tão extravagante ao capitalismo que beira a admiração pura e simples. Logo de início, em “Burgueses e proletários”, Marx descreve os processos de construção material perpetrados pelo capitalismo e as emoções daí decorrentes. Marx é único na vinculação que estabelece entre processos históricos e emoções. Ele sublinha uma sensação que é a de quem se vê no meio de algo mágico, misterioso:
Ou, um pouco antes, falando de um dinamismo inato que é tanto espiritual quanto material:
Essa primeira parte do texto, “Burgueses e proletários”, tem muitas passagens como essas, escritas em acordes maiores. Mas alguns dos colegas radicais de Marx, como Proudhon e Bakunin, viram nessa apreciação do capitalismo uma traição às vítimas desse mesmo capitalismo. É uma acusação que ainda hoje se ouve e que merece resposta séria. Marx odeia o capitalismo, mas acha também que ele trouxe imensos benefícios reais, tanto espirituais como materiais, e quer que esses benefícios sejam distribuídos e desfrutados por todos, em vez de constituírem monopólio de uma pequena classe governante. Isso é muito diferente da fúria totalitária típica daqueles que querem acabar com tudo. Às vezes, como acontece com Proudhon, o ódio é dirigido simplesmente contra os tempos modernos: são pessoas que sonham com uma época de ouro de aldeias camponesas, em que cada um era feliz e tinha seu lugar (o das mulheres, atrás do dos homens). Outros radicais — que vão desde o autor do “Apocalipse” até o Unabomber, passando por Thomas Münster e Verloc — ultrapassam os limites e revelam algo como uma ira contra a realidade, contra o próprio ser humano. Iras apocalípticas oferecem emoções imediatas e sensacionais, mas baratas. A visão de Marx é mais complexa e nuançada, difícil de suportar se não se é adulto o bastante. Por outro lado, para o adulto de fato, sintonizado com um mundo repleto de complexidade e ambiguidade, Marx pode ser mais indicado do que se pensa.
Ele não foi o primeiro comunista a admirar a criatividade do capitalismo. Essa postura pode ser encontrada em alguns dos grandes “socialistas utópicos” da geração que o precedeu, como Robert Owen, Saint-Simon e seus brilhantes seguidores. Marx foi, no entanto, o primeiro escritor a inventar um estilo capaz de iluminar essa criatividade antes do início do século xx. (Na França, que tinha Baudelaire e Rimbaud, a linguagem poética estava algumas décadas à frente.) Para leitores que cresceram com T. S. Eliot, Ezra Pound e seus sucessores, não há de ser difícil enxergar no Manifesto um grande texto poético. Ele junta num só lugar toda uma enorme gama de coisas e ideias que ninguém antes havia pensado em juntar. Se conseguimos desenvolver uma sensibilidade para o que Marx enxerga no horizonte, isso nos ajudará a ver sentido no mundo moderno.
Nós poderíamos caracterizar o estilo do Manifesto como possuidor de uma espécie de lirismo expressionista. Os parágrafos rebentam diante de nós como ondas que nos fazem tremer ao impacto e nos encharcam de pensamentos. É uma prosa de tirar o fôlego, que mergulha adiante sem o auxílio de guias ou mapas, ultrapassando limites, empilhando e dispondo em camadas coisas, ideias e experiências. Catalogar é um procedimento que desempenha papel muito importante para Marx, assim como para seus contemporâneos Dickens e Whitman. Parte do encanto desse estilo advém da sensação de que as listas nunca se esgotam, de que o catálogo se abre para o presente e para o futuro. Somos convidados a empilhar nossas próprias coisas, ideias e experiências, a nos empilhar, se encontrarmos um jeito de fazer isso. Mas, com frequência, os componentes dessa pilha parecem colidir e, às vezes, é como se todo o conjunto pudesse desmoronar. De um parágrafo a outro, Marx dá a seus leitores a sensação de estar no trem mais rápido e grandioso do século xix, avançando pelo terreno mais acidentado e perigoso do século. Embora a luz seja esplêndida, avançamos rumo ao ponto onde os trilhos acabam.
Depois da queda do muro de Berlim, em 1989, esse sistema desmoronou com grande rapidez. Por todo o Leste europeu, estátuas de Marx foram postas abaixo. Fotografias de pessoas derrubando estátuas ofereceram por algum tempo material de primeira página para os jornais. Àqueles leitores que gostam de Marx, essa perda de santidade só pode ser encantadora. Sua canonização pós-1917 foi um desastre. Beatificação é coisa que faz tão bem a um pensador quanto a peste! No mundo todo, só podemos saudar esse desastre de fim de século como uma queda das mais afortunadas. Um de meus velhos chefes no City College de Nova York, alguém que havia crescido sob governos comunistas da Europa do Leste, disse-me que, após a queda do muro, não deviam permitir que eu seguisse ensinando Marx, porque “1989 é prova de que cursos de marxismo são coisa obsoleta”. Respondi a ele que, ironicamente, as universidades norte-americanas funcionavam sob um regime de mercado e ensinavam o que fosse que os estudantes quisessem aprender, mesmo que autoridades acadêmicas julgassem que as matérias por eles escolhidas não devessem ser ensinadas. Disse-lhe também que o Marx que os estudantes queriam ler hoje era muito mais interessante que o santo padroeiro de ontem: estavam à procura de um pensador que pudesse conduzi-los através da dinâmica e das contradições do capitalismo.
Na verdade, podemos aprender mais sobre esse assunto no Manifesto do que em qualquer outro livro jamais escrito. Muito do encanto desse texto decorre da ideia de que há uma conexão a vincular toda uma enorme gama de fenômenos modernos. Algumas vezes, Marx tenta explicar essas conexões; outras vezes, limita-se apenas a pôr coisas lado a lado e deixa que nós estabeleçamos a conexão.
Que conexões Marx estabeleceu? Em primeiro lugar — e de modo surpreendente, se não se está preparado para tanto —, encontramos no Manifesto um louvor tão extravagante ao capitalismo que beira a admiração pura e simples. Logo de início, em “Burgueses e proletários”, Marx descreve os processos de construção material perpetrados pelo capitalismo e as emoções daí decorrentes. Marx é único na vinculação que estabelece entre processos históricos e emoções. Ele sublinha uma sensação que é a de quem se vê no meio de algo mágico, misterioso:
[...] a burguesia criou forças produtivas mais numerosas e colossais do que todas as gerações anteriores somadas. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, ferrovias [...], expansão das áreas de cultivo em continentes inteiros e da navegação fluvial, populações inteiras brotadas do solo — que século anterior anteviu semelhantes forças produtivas adormecidas no regaço do trabalho social?
Ou, um pouco antes, falando de um dinamismo inato que é tanto espiritual quanto material:
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção — ou seja, as relações de produção —, isto é, o conjunto das relações sociais. [...] A transformação contínua da produção, o abalo ininterrupto de todas as condições sociais, incerteza e movimento eternos, eis aí as características que distinguem a época burguesa de todas as demais. Todas as relações sólidas e enferrujadas, com seu séquito de venerandas e antigas concepções e visões, se dissolvem; todas as novas envelhecem antes mesmo que possam se solidificar. Evapora-se toda estratificação, todo o estabelecido; profana-se tudo que é sagrado, e as pessoas se veem enfim obrigadas a enxergar com olhos sóbrios seu posicionamento na vida, suas relações umas com as outras.
Essa primeira parte do texto, “Burgueses e proletários”, tem muitas passagens como essas, escritas em acordes maiores. Mas alguns dos colegas radicais de Marx, como Proudhon e Bakunin, viram nessa apreciação do capitalismo uma traição às vítimas desse mesmo capitalismo. É uma acusação que ainda hoje se ouve e que merece resposta séria. Marx odeia o capitalismo, mas acha também que ele trouxe imensos benefícios reais, tanto espirituais como materiais, e quer que esses benefícios sejam distribuídos e desfrutados por todos, em vez de constituírem monopólio de uma pequena classe governante. Isso é muito diferente da fúria totalitária típica daqueles que querem acabar com tudo. Às vezes, como acontece com Proudhon, o ódio é dirigido simplesmente contra os tempos modernos: são pessoas que sonham com uma época de ouro de aldeias camponesas, em que cada um era feliz e tinha seu lugar (o das mulheres, atrás do dos homens). Outros radicais — que vão desde o autor do “Apocalipse” até o Unabomber, passando por Thomas Münster e Verloc — ultrapassam os limites e revelam algo como uma ira contra a realidade, contra o próprio ser humano. Iras apocalípticas oferecem emoções imediatas e sensacionais, mas baratas. A visão de Marx é mais complexa e nuançada, difícil de suportar se não se é adulto o bastante. Por outro lado, para o adulto de fato, sintonizado com um mundo repleto de complexidade e ambiguidade, Marx pode ser mais indicado do que se pensa.
Ele não foi o primeiro comunista a admirar a criatividade do capitalismo. Essa postura pode ser encontrada em alguns dos grandes “socialistas utópicos” da geração que o precedeu, como Robert Owen, Saint-Simon e seus brilhantes seguidores. Marx foi, no entanto, o primeiro escritor a inventar um estilo capaz de iluminar essa criatividade antes do início do século xx. (Na França, que tinha Baudelaire e Rimbaud, a linguagem poética estava algumas décadas à frente.) Para leitores que cresceram com T. S. Eliot, Ezra Pound e seus sucessores, não há de ser difícil enxergar no Manifesto um grande texto poético. Ele junta num só lugar toda uma enorme gama de coisas e ideias que ninguém antes havia pensado em juntar. Se conseguimos desenvolver uma sensibilidade para o que Marx enxerga no horizonte, isso nos ajudará a ver sentido no mundo moderno.
Nós poderíamos caracterizar o estilo do Manifesto como possuidor de uma espécie de lirismo expressionista. Os parágrafos rebentam diante de nós como ondas que nos fazem tremer ao impacto e nos encharcam de pensamentos. É uma prosa de tirar o fôlego, que mergulha adiante sem o auxílio de guias ou mapas, ultrapassando limites, empilhando e dispondo em camadas coisas, ideias e experiências. Catalogar é um procedimento que desempenha papel muito importante para Marx, assim como para seus contemporâneos Dickens e Whitman. Parte do encanto desse estilo advém da sensação de que as listas nunca se esgotam, de que o catálogo se abre para o presente e para o futuro. Somos convidados a empilhar nossas próprias coisas, ideias e experiências, a nos empilhar, se encontrarmos um jeito de fazer isso. Mas, com frequência, os componentes dessa pilha parecem colidir e, às vezes, é como se todo o conjunto pudesse desmoronar. De um parágrafo a outro, Marx dá a seus leitores a sensação de estar no trem mais rápido e grandioso do século xix, avançando pelo terreno mais acidentado e perigoso do século. Embora a luz seja esplêndida, avançamos rumo ao ponto onde os trilhos acabam.
Uma das características que Marx mais admira no capitalismo moderno é seu horizonte global, sua textura cosmopolita. Muitos falam hoje em dia de uma economia global como se ela tivesse acabado de nascer. Marx nos ajuda a ver como ela está em operação há muito tempo:
Essa expansão global, Marx acreditava, oferecia um panorama espetacular das ironias da história. Em geral, a burguesia moderna tinha desejos banais, mas sua busca incansável de lucro lhe impunha a mesma estrutura pulsional insaciável, o mesmo horizonte infinito de qualquer um dos grandes heróis românticos, como Don Giovanni, Childe Harold ou o Fausto de Goethe. Embora movida por um só pensamento, o foco estreito dessa burguesia promove integrações as mais amplas; a superficialidade da perspectiva desencadeia as mais profundas transformações; sua pacífica atividade econômica devasta como uma bomba toda sociedade humana, das tribos mais primitivas à poderosa União Soviética. Marx estarreceu-se com os custos humanos do desenvolvimento capitalista, mas sempre acreditou que o horizonte de mundo criado por ele era um grande feito da humanidade, algo que cabia aos movimentos socialista e comunista levar adiante. Basta lembrar que o grande apelo à união com que o Manifesto termina é dirigido aos “proletários de todos os países”.
Um dos acontecimentos cruciais dos tempos modernos tem sido o desenvolvimento, pela primeira vez, de uma cultura universal. Marx escreveu num momento histórico em que os meios de comunicação de massa começavam a se desenvolver. Trabalhou na linha de Goethe, que, em conversa com Eckermann em seu último ano de vida, falava em literatura universal (Weltliteratur). Marx escreveu 150 anos mais tarde, e creio ser legítimo chamar aquilo a que ele se refere de “cultura universal”. O Manifesto mostra como essa cultura se desenvolve espontaneamente a partir do mercado mundial:
Marx acreditava que Shakespeare, que escreveu bem no início da Idade Moderna, foi o primeiro escritor inteiramente moderno. Quando estudante, aprendera de cor muitas de suas peças. Na década de 1840, ainda não sabia do envolvimento profundo que iria ter com a língua inglesa. Depois do fracasso das revoluções de 1848 na Alemanha, passou cerca de metade da vida no exílio londrino. Ao longo dos anos, escreveu centenas de artigos, de início traduzidos por Engels; depois, começou a escrevê-los cada vez mais em inglês, sobretudo para o New York Daily Tribune, como “nosso correspondente na Europa”. E nunca parou de trabalhar em O capital, um livro recheado de notas provenientes de diferentes línguas e culturas a cada página. Em Londres, sua mulher, Jenny, se tornou crítica de teatro e escrevia sobre os palcos ingleses para jornais alemães. A filha de Marx, Eleanor — a primeira tradutora para o inglês da Madame Bovary de Flaubert e de Um inimigo do povo, de Ibsen, além de uma das inventoras da “organização comunitária” —, lembra-se de que a família inteira ia a Hampstead Heath aos domingos e representava Shakespeare. Estavam falidos, desesperados, eram despejados de apartamentos e não podiam sair no inverno porque haviam penhorado muitas de suas roupas. Mas seguiam reinventando o mundo.
A visão de Marx de cultura universal reúne várias ideias complexas. Em primeiro lugar, a da expansão das necessidades humanas: o mercado mundial, cada vez mais complexo, a um só tempo molda e expande os desejos de todos. Marx quer que imaginemos o que isso significa em termos de comida, roupas, religião, amor, tanto em nossas fantasias mais íntimas como em nossas aparições públicas. Em seguida vem a ideia de cultura como “bem comum”: tudo que é criado por quem quer que seja, em qualquer lugar, está aberto e disponível para todo o mundo, em todo lugar. Empreendedores publicam livros (e e-books), produzem peças e concertos, promovem exposições de arte e, nos séculos pós-Marx, criam hardware e software para filmes, rádio, tv e computadores com o propósito de fazer dinheiro. Ainda assim, nessas e em outras empreitadas, a história escapa por entre os dedos dos proprietários, e as pessoas têm acesso à cultura — uma ideia, uma imagem poética, um som musical, Platão, Shakespeare, um spiritual (toda a família de Marx aprendeu spirituals na década de 1860) —, mesmo sem possuí-la. Se somos capazes de pensar na cultura moderna como “bem comum”, e no modo pelo qual a música popular, o cinema, a literatura e a televisão podem nos fazer sentir mais à vontade no mundo, isso nos ajuda a imaginar de que forma, um dia, as pessoas no mundo todo poderiam compartilhar dos recursos mundiais.
Trata-se de uma visão de cultura que raramente é discutida, mas é uma das coisas mais amplas e esperançosas que Marx escreveu. No último século, o desenvolvimento do cinema, da televisão, do vídeo e dos computadores criou uma linguagem visual global que torna a ideia de cultura universal mais familiar do que nunca; a pulsação do mundo ressoa no melhor de nossa música e de nossos livros. Essa é a boa notícia. A má notícia é em que grande medida a maior parte dos escritos de esquerda sobre cultura se tornou azeda e amarga. Às vezes, é como se a cultura fosse apenas mais um “Departamento de Exploração e Opressão”, sem conter em si nada de luminoso ou valioso. Outras vezes, a impressão que dá é que a cabeça das pessoas é um recipiente vazio, sem nada dentro que não seja o que o capital pôs ali. Basta ler, ou tentar ler, uns poucos artigos sobre “discurso hegemônico” ou “contra-hegemônico”.
Por todo o globo terrestre, a burguesia busca satisfazer a necessidade de um escoamento cada vez mais amplo para seus produtos. Ela precisa se implantar e se expandir por toda parte, estabelecer vínculos onde quer que seja.
Graças a sua exploração do mercado mundial, ela conformou de modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. [...] As antiquíssimas indústrias nacionais, ela as aniquilou e segue aniquilando dia após dia. Expulsam-nas novas indústrias, cujo surgimento torna-se questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não processam matéria-prima nativa, mas aquela proveniente de áreas as mais remotas, e cujos produtos são consumidos não apenas em seu próprio país, mas também, e simultaneamente, em todos os continentes.
Essa expansão global, Marx acreditava, oferecia um panorama espetacular das ironias da história. Em geral, a burguesia moderna tinha desejos banais, mas sua busca incansável de lucro lhe impunha a mesma estrutura pulsional insaciável, o mesmo horizonte infinito de qualquer um dos grandes heróis românticos, como Don Giovanni, Childe Harold ou o Fausto de Goethe. Embora movida por um só pensamento, o foco estreito dessa burguesia promove integrações as mais amplas; a superficialidade da perspectiva desencadeia as mais profundas transformações; sua pacífica atividade econômica devasta como uma bomba toda sociedade humana, das tribos mais primitivas à poderosa União Soviética. Marx estarreceu-se com os custos humanos do desenvolvimento capitalista, mas sempre acreditou que o horizonte de mundo criado por ele era um grande feito da humanidade, algo que cabia aos movimentos socialista e comunista levar adiante. Basta lembrar que o grande apelo à união com que o Manifesto termina é dirigido aos “proletários de todos os países”.
Um dos acontecimentos cruciais dos tempos modernos tem sido o desenvolvimento, pela primeira vez, de uma cultura universal. Marx escreveu num momento histórico em que os meios de comunicação de massa começavam a se desenvolver. Trabalhou na linha de Goethe, que, em conversa com Eckermann em seu último ano de vida, falava em literatura universal (Weltliteratur). Marx escreveu 150 anos mais tarde, e creio ser legítimo chamar aquilo a que ele se refere de “cultura universal”. O Manifesto mostra como essa cultura se desenvolve espontaneamente a partir do mercado mundial:
No lugar das antigas necessidades, antes atendidas por produtos nacionais, surgem outras, cuja satisfação demanda produtos de países e climas longínquos. Em lugar da velha autossatisfação e do velho isolamento local e nacional, surgem relações abrangentes, uma abrangente interdependência entre as nações. E isso tanto no que se refere à produção material quanto à intelectual. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se bens comuns [...] e a partir das muitas literaturas locais, nacionais, forma-se uma literatura universal.
Marx acreditava que Shakespeare, que escreveu bem no início da Idade Moderna, foi o primeiro escritor inteiramente moderno. Quando estudante, aprendera de cor muitas de suas peças. Na década de 1840, ainda não sabia do envolvimento profundo que iria ter com a língua inglesa. Depois do fracasso das revoluções de 1848 na Alemanha, passou cerca de metade da vida no exílio londrino. Ao longo dos anos, escreveu centenas de artigos, de início traduzidos por Engels; depois, começou a escrevê-los cada vez mais em inglês, sobretudo para o New York Daily Tribune, como “nosso correspondente na Europa”. E nunca parou de trabalhar em O capital, um livro recheado de notas provenientes de diferentes línguas e culturas a cada página. Em Londres, sua mulher, Jenny, se tornou crítica de teatro e escrevia sobre os palcos ingleses para jornais alemães. A filha de Marx, Eleanor — a primeira tradutora para o inglês da Madame Bovary de Flaubert e de Um inimigo do povo, de Ibsen, além de uma das inventoras da “organização comunitária” —, lembra-se de que a família inteira ia a Hampstead Heath aos domingos e representava Shakespeare. Estavam falidos, desesperados, eram despejados de apartamentos e não podiam sair no inverno porque haviam penhorado muitas de suas roupas. Mas seguiam reinventando o mundo.
A visão de Marx de cultura universal reúne várias ideias complexas. Em primeiro lugar, a da expansão das necessidades humanas: o mercado mundial, cada vez mais complexo, a um só tempo molda e expande os desejos de todos. Marx quer que imaginemos o que isso significa em termos de comida, roupas, religião, amor, tanto em nossas fantasias mais íntimas como em nossas aparições públicas. Em seguida vem a ideia de cultura como “bem comum”: tudo que é criado por quem quer que seja, em qualquer lugar, está aberto e disponível para todo o mundo, em todo lugar. Empreendedores publicam livros (e e-books), produzem peças e concertos, promovem exposições de arte e, nos séculos pós-Marx, criam hardware e software para filmes, rádio, tv e computadores com o propósito de fazer dinheiro. Ainda assim, nessas e em outras empreitadas, a história escapa por entre os dedos dos proprietários, e as pessoas têm acesso à cultura — uma ideia, uma imagem poética, um som musical, Platão, Shakespeare, um spiritual (toda a família de Marx aprendeu spirituals na década de 1860) —, mesmo sem possuí-la. Se somos capazes de pensar na cultura moderna como “bem comum”, e no modo pelo qual a música popular, o cinema, a literatura e a televisão podem nos fazer sentir mais à vontade no mundo, isso nos ajuda a imaginar de que forma, um dia, as pessoas no mundo todo poderiam compartilhar dos recursos mundiais.
Trata-se de uma visão de cultura que raramente é discutida, mas é uma das coisas mais amplas e esperançosas que Marx escreveu. No último século, o desenvolvimento do cinema, da televisão, do vídeo e dos computadores criou uma linguagem visual global que torna a ideia de cultura universal mais familiar do que nunca; a pulsação do mundo ressoa no melhor de nossa música e de nossos livros. Essa é a boa notícia. A má notícia é em que grande medida a maior parte dos escritos de esquerda sobre cultura se tornou azeda e amarga. Às vezes, é como se a cultura fosse apenas mais um “Departamento de Exploração e Opressão”, sem conter em si nada de luminoso ou valioso. Outras vezes, a impressão que dá é que a cabeça das pessoas é um recipiente vazio, sem nada dentro que não seja o que o capital pôs ali. Basta ler, ou tentar ler, uns poucos artigos sobre “discurso hegemônico” ou “contra-hegemônico”.
Se, contudo, o capitalismo triunfa em tantos aspectos, o que há de errado nele? O que faz valer a pena passar a vida inteira tentando combatê-lo, como fez Marx? No século xx, os movimentos marxistas do mundo todo se concentraram no argumento, defendido da forma mais elaborada em O capital, de que, na sociedade burguesa, os trabalhadores se tornaram e têm se tornado cada vez mais pobres. Por certo, existiram momentos em que negar essa afirmação era absurdo (durante a Grande Depressão, por exemplo). Em outros momentos e em outros lugares (a América do Norte e a Europa Ocidental durante as décadas de 1950 e 1960, aquelas durante as quais eu cresci), esse argumento revelou certa fragilidade. Muitos economistas marxistas fizeram contorcionismos dialéticos para produzir seus números. Mas o problema com toda essa discussão era que ela convertia em números questões que são da experiência humana, levando o Marxismo a pensar e falar exatamente como o capitalismo.
Aqui e ali, o Manifesto postula coisa parecida. Mas ele oferece o que, a mim, parece acusação bem mais aguda, uma acusação que se sustenta até mesmo no auge do ciclo de negócios, quando a burguesia e seus apologistas se afogam em complacência. Essa acusação se traduz na visão de Marx sobre o que a burguesia moderna obriga as pessoas a ser: elas têm de congelar seus sentimentos mútuos a fim de encontrar um lugar num mundo gélido. A sociedade burguesa não deixou “outro vínculo a ligar seres humanos que não o puro interesse, o insensível ‘pagamento em dinheiro’”. Ela “afogou os sagrados calafrios do êxtase devoto, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, nas águas gélidas do cálculo egoísta”. Ela “dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca” e reduziu toda e qualquer ideia de liberdade a uma única: “a inescrupulosa liberdade de comércio”. Além disso, a sociedade burguesa “removeu das relações familiares seu véu emotivo-sentimental, reduzindo-as a mera relação monetária” e “transformou o médico, o jurista, o sacerdote, o poeta e o homem das ciências em assalariados a seu serviço”. Em resumo, ela “trocou a exploração envolta em ilusões religiosas e políticas pela exploração pura e simples, aberta, desavergonhada e direta”. Ela força, portanto, as pessoas a se degradar, a fim de que possam sobreviver.
Obras do século XX escritas dentro da tradição marxista tendem a imaginar uma burguesia dotada de poderes supercontroladores: tudo que acontece ocorre apenas para que a burguesia possa acumular mais capital. Vale a pena notar que a visão que Marx tem dela é bem mais volátil. Ele compara a burguesia a “um feiticeiro já incapaz de dominar os poderes subterrâneos que ele próprio conjurou”. Marx nos lembra aqui o Fausto de Goethe, é claro, mas também veneráveis tradições da magia capazes de transformar seus portadores em homens espetacularmente ricos. A magia, é evidente, nunca funcionou. Em vez disso, o que aconteceu, nas palavras de Marx, foram “crises mais abrangentes e violentas” e a redução dos “meios capazes de preveni-las”. Sobreviventes das crises fiscais de 2008 hão de se lembrar da sensação de poder mágico a seduzir milhões de pessoas a abrir mão de mais do que elas possuíam. Será interessante ver se vão aprender alguma coisa de todas as práticas bisonhas que nomes como Madoff passaram a significar. Marx temia que esse aprendizado não aconteceria: no capitalismo moderno, as mentes mais sofisticadas podem se tornar primitivas da noite para o dia; pessoas que têm o poder de reconstruir o mundo ainda parecem fadadas a se desconstruir. Se grandes esperanças o animavam, sérias preocupações o inquietavam também.
Há mais de 150 anos temos visto uma gigantesca literatura atacar a brutalidade de uma classe na qual os que se sentem mais à vontade para cometer atos brutais são também os que têm maior chance de sucesso. Mas as mesmas forças sociais exercem pressão também sobre os membros daquele grupo imenso que Marx chama “o proletariado moderno”. Trata-se de uma classe que sempre sofreu de um problema de falsa identidade. Muitos dos leitores de Marx sempre pensaram que “proletariado moderno” significava apenas homens calçando botas — nas fábricas, na indústria, de macacão, mãos calejadas, esguios e famintos. Esses leitores notam, então, a natureza cambiante da força de trabalho: cada vez mais educada, de colarinho branco, trabalhando no setor de serviços (em vez de plantar comida ou fabricar coisas), gente de classe média (ou próxima dela). Inferem daí a Morte do Sujeito, concluem que o proletariado está desaparecendo e que já não há para ele nenhuma esperança. Marx não achava que a classe trabalhadora estava encolhendo: em todos os países industriais, ela já havia se tornado (ou estava em vias de se tornar) “a imensa maioria”. Seu número crescente, Marx pensava, permitiria a ela “conquistar a democracia”. A base para essa aritmética política era um conceito a um só tempo simples e altamente inclusivo:
Para Marx, o fator crucial não é trabalhar numa fábrica, com as próprias mãos, ou ser pobre. Tudo isso pode mudar com as ofertas e demandas flutuantes na tecnologia e na política. A realidade fundamental é a necessidade de vender o próprio trabalho para poder sobreviver, de modelar a própria personalidade com o intuito de fazer-se vendável, olhar no espelho e dizer: “Pois bem, o que eu tenho que posso vender?” — tudo isso acompanhado do pavor e da ansiedade de, amanhã, não encontrarmos ninguém que queira comprar o que temos ou o que somos, ainda que hoje estejamos bem; do medo de que o mercado em mutação nos declare (como já declarou tantos) sem valor nenhum; de nos vermos física e metafisicamente excluídos. A morte de um caixeiro-viajante (1949), a peça de Henry Miller que é um dos grandes textos do teatro norte-americano, dá vida a esse pavor desgastante que pode ser a condição da maioria da classe trabalhadora em tempos modernos. Escritos existencialistas — aqueles que eu cresci lendo, meio século atrás — dramatizam essa tradição com grande profundidade e beleza, embora suas visões tendam a ser estranhamente desencarnadas. Os visionários do existencialismo poderiam aprender com o Manifesto, que dá um endereço à angústia moderna.
Marx compreende que muita gente da classe trabalhadora desconheça o próprio endereço. Muitos vestem roupas elegantes e moram em belas casas porque, no momento, há grande demanda por seu trabalho, o que significa que eles vão muito bem. Podem identificar-se alegremente com os proprietários do capital, sem ter ideia de como os benefícios de que gozam agora são fugazes e circunstanciais. Talvez não descubram quem são e qual é seu lugar até que sejam dispensados ou demitidos — ou terceirizados, ou tornados desnecessários em sua especialização, ou downsized. Outros trabalhadores, desprovidos de tantas credenciais e vestindo roupas não tão boas, podem não entender que muitos daqueles que os jogam de um lado para outro pertencem, na realidade, a sua própria classe e, a despeito da pretensão, compartilham da mesma vulnerabilidade. Como comunicar essa realidade àqueles que não a compreendem ou aceitam? A complexidade dessas ideias ajudou a criar uma nova vocação, central à sociedade moderna: a do organizador.
Um grupo cuja identidade como trabalhadores era crucial para Marx era sua própria classe: os intelectuais.
Aqui e ali, o Manifesto postula coisa parecida. Mas ele oferece o que, a mim, parece acusação bem mais aguda, uma acusação que se sustenta até mesmo no auge do ciclo de negócios, quando a burguesia e seus apologistas se afogam em complacência. Essa acusação se traduz na visão de Marx sobre o que a burguesia moderna obriga as pessoas a ser: elas têm de congelar seus sentimentos mútuos a fim de encontrar um lugar num mundo gélido. A sociedade burguesa não deixou “outro vínculo a ligar seres humanos que não o puro interesse, o insensível ‘pagamento em dinheiro’”. Ela “afogou os sagrados calafrios do êxtase devoto, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, nas águas gélidas do cálculo egoísta”. Ela “dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca” e reduziu toda e qualquer ideia de liberdade a uma única: “a inescrupulosa liberdade de comércio”. Além disso, a sociedade burguesa “removeu das relações familiares seu véu emotivo-sentimental, reduzindo-as a mera relação monetária” e “transformou o médico, o jurista, o sacerdote, o poeta e o homem das ciências em assalariados a seu serviço”. Em resumo, ela “trocou a exploração envolta em ilusões religiosas e políticas pela exploração pura e simples, aberta, desavergonhada e direta”. Ela força, portanto, as pessoas a se degradar, a fim de que possam sobreviver.
Obras do século XX escritas dentro da tradição marxista tendem a imaginar uma burguesia dotada de poderes supercontroladores: tudo que acontece ocorre apenas para que a burguesia possa acumular mais capital. Vale a pena notar que a visão que Marx tem dela é bem mais volátil. Ele compara a burguesia a “um feiticeiro já incapaz de dominar os poderes subterrâneos que ele próprio conjurou”. Marx nos lembra aqui o Fausto de Goethe, é claro, mas também veneráveis tradições da magia capazes de transformar seus portadores em homens espetacularmente ricos. A magia, é evidente, nunca funcionou. Em vez disso, o que aconteceu, nas palavras de Marx, foram “crises mais abrangentes e violentas” e a redução dos “meios capazes de preveni-las”. Sobreviventes das crises fiscais de 2008 hão de se lembrar da sensação de poder mágico a seduzir milhões de pessoas a abrir mão de mais do que elas possuíam. Será interessante ver se vão aprender alguma coisa de todas as práticas bisonhas que nomes como Madoff passaram a significar. Marx temia que esse aprendizado não aconteceria: no capitalismo moderno, as mentes mais sofisticadas podem se tornar primitivas da noite para o dia; pessoas que têm o poder de reconstruir o mundo ainda parecem fadadas a se desconstruir. Se grandes esperanças o animavam, sérias preocupações o inquietavam também.
Há mais de 150 anos temos visto uma gigantesca literatura atacar a brutalidade de uma classe na qual os que se sentem mais à vontade para cometer atos brutais são também os que têm maior chance de sucesso. Mas as mesmas forças sociais exercem pressão também sobre os membros daquele grupo imenso que Marx chama “o proletariado moderno”. Trata-se de uma classe que sempre sofreu de um problema de falsa identidade. Muitos dos leitores de Marx sempre pensaram que “proletariado moderno” significava apenas homens calçando botas — nas fábricas, na indústria, de macacão, mãos calejadas, esguios e famintos. Esses leitores notam, então, a natureza cambiante da força de trabalho: cada vez mais educada, de colarinho branco, trabalhando no setor de serviços (em vez de plantar comida ou fabricar coisas), gente de classe média (ou próxima dela). Inferem daí a Morte do Sujeito, concluem que o proletariado está desaparecendo e que já não há para ele nenhuma esperança. Marx não achava que a classe trabalhadora estava encolhendo: em todos os países industriais, ela já havia se tornado (ou estava em vias de se tornar) “a imensa maioria”. Seu número crescente, Marx pensava, permitiria a ela “conquistar a democracia”. A base para essa aritmética política era um conceito a um só tempo simples e altamente inclusivo:
Na mesma medida em que se desenvolve a burguesia — isto é, o capital — desenvolve-se também o proletariado, a classe dos trabalhadores modernos, que só sobrevivem à medida que encontram trabalho, e só encontram trabalho à medida que seu próprio trabalho multiplica o capital. Esses trabalhadores, que precisam se vender a varejo, são uma mercadoria como qualquer outro artigo vendido no comércio, sujeita, portanto, a todas as vicissitudes da concorrência e a todas as oscilações do mercado.
Para Marx, o fator crucial não é trabalhar numa fábrica, com as próprias mãos, ou ser pobre. Tudo isso pode mudar com as ofertas e demandas flutuantes na tecnologia e na política. A realidade fundamental é a necessidade de vender o próprio trabalho para poder sobreviver, de modelar a própria personalidade com o intuito de fazer-se vendável, olhar no espelho e dizer: “Pois bem, o que eu tenho que posso vender?” — tudo isso acompanhado do pavor e da ansiedade de, amanhã, não encontrarmos ninguém que queira comprar o que temos ou o que somos, ainda que hoje estejamos bem; do medo de que o mercado em mutação nos declare (como já declarou tantos) sem valor nenhum; de nos vermos física e metafisicamente excluídos. A morte de um caixeiro-viajante (1949), a peça de Henry Miller que é um dos grandes textos do teatro norte-americano, dá vida a esse pavor desgastante que pode ser a condição da maioria da classe trabalhadora em tempos modernos. Escritos existencialistas — aqueles que eu cresci lendo, meio século atrás — dramatizam essa tradição com grande profundidade e beleza, embora suas visões tendam a ser estranhamente desencarnadas. Os visionários do existencialismo poderiam aprender com o Manifesto, que dá um endereço à angústia moderna.
Marx compreende que muita gente da classe trabalhadora desconheça o próprio endereço. Muitos vestem roupas elegantes e moram em belas casas porque, no momento, há grande demanda por seu trabalho, o que significa que eles vão muito bem. Podem identificar-se alegremente com os proprietários do capital, sem ter ideia de como os benefícios de que gozam agora são fugazes e circunstanciais. Talvez não descubram quem são e qual é seu lugar até que sejam dispensados ou demitidos — ou terceirizados, ou tornados desnecessários em sua especialização, ou downsized. Outros trabalhadores, desprovidos de tantas credenciais e vestindo roupas não tão boas, podem não entender que muitos daqueles que os jogam de um lado para outro pertencem, na realidade, a sua própria classe e, a despeito da pretensão, compartilham da mesma vulnerabilidade. Como comunicar essa realidade àqueles que não a compreendem ou aceitam? A complexidade dessas ideias ajudou a criar uma nova vocação, central à sociedade moderna: a do organizador.
Um grupo cuja identidade como trabalhadores era crucial para Marx era sua própria classe: os intelectuais.
Todas aquelas atividades desde sempre encaradas com temor respeitoso e devoto, a burguesia as despiu de sua auréola. Ela transformou o médico, o jurista, o sacerdote, o poeta e o homem das ciências em assalariados a seu serviço.
Isso não quer dizer que essas atividades perdem significado ou valor. Na verdade, seu significado até ganha em urgência. Mas o único modo de as pessoas adquirirem a liberdade para fazer o que podem fazer é trabalhar para o capital. O próprio Marx teve de viver assim. Ao longo de quarenta anos, ele produziu um jornalismo brilhante para muitos órgãos da imprensa, em especial para o New York Daily Tribune. Às vezes, era pago; com frequência, não era. Marx foi brilhante ao imaginar como os trabalhadores podiam se organizar e como sua capacidade de organização podia tornar a vida no século xix muito mais humana do que ela havia sido na década de 1840 — a época do Manifesto, quando ele estava apenas começando. Mas ninguém à época tinha imaginado de que forma os criadores de cultura podiam se organizar. Quando Marx, assim como todo escritor ou artista daquele tempo, enfrentava o capital, ele o fazia sozinho.
A escala da cultura se expandiu imensamente nos séculos XX e XXI. Intelectuais precisam trabalhar para companhias farmacêuticas, estúdios de cinema, conglomerados de mídia, seguradoras de saúde, conselhos de educação, políticos etc., sempre utilizando sua criatividade para ajudar o capital a acumular mais capital. Isso faz com que eles estejam sujeitos não apenas às tensões que afligem todos os trabalhadores modernos, mas também a uma zona de pavor que é só deles. Quanto mais se importam com seu trabalho, desejosos de que ele signifique alguma coisa, tanto mais se veem em conflito com os guardiões de planilhas. No século XX, os criadores de cultura começaram a entender o problema e a se organizar. Mas, como aconteceu repetidas vezes ao longo da história do capitalismo, a tecnologia aprendeu a se organizar numa escala muito mais ampla. No século xxi, a internet descortinou toda uma nova dimensão de conflito. Editoras de livros, jornais e revistas começaram a desmoronar. Hoje em dia, os intelectuais são forçados a combater numa “batalha pela democracia” que, vemos bem agora, será permanente: eles lutam para manter viva a cultura. Não sabemos no que dará essa luta. Muitos intelectuais começaram a enxergar as conexões e a se reconhecer como trabalhadores. Muitos, porém, ainda não. A maioria de nós pode perfeitamente conceber outras coisas que preferiria estar fazendo. Marx argumenta que, a não ser que aprendamos a nos organizar — e a permanecer organizados —, a não ser que aprendamos a lutar essa luta, grande é a chance de que nem nós nem ninguém jamais vai poder voltar a fazer essas coisas de que gosta.
Marx via um amplo horizonte. Ele era capaz de imaginar como a vida se desdobraria a milhares de quilômetros de qualquer lugar onde tivesse estado. Tendo vivido metade de sua vida em Londres, naquela que era à época a economia mais dinâmica do mundo, ele tinha especial sensibilidade para as ambiguidades do crescimento. Ao longo dos últimos vinte anos, a economia mais dinâmica do mundo tem sido a chinesa. Boa parte do poder da China emana de uma classe trabalhadora dotada de imensa energia e, no entanto, até muito recentemente, da mais completa passividade. Passei um mês lá, em 2005, perplexo. Participei de uma conferência em Hangzhou, na Universidade de Zhejiang, caminhei pelas ruas de várias cidades grandes, encontrei-me com intelectuais de diversas idades. Em minha palestra estavam presentes cerca de trinta chineses e três americanos. Os americanos eram os únicos dispostos a dar à Revolução Chinesa o crédito por ter feito coisas. A conversa dos chineses sobre a história de seu próprio país parecia ter regredido ao nível daquelas que se tinha nos Estados Unidos da década de 1950. As pessoas falavam como se os “comunistas chineses” fossem marcianos, em vez de seus pais, avós ou, em alguns casos, delas mesmas. Fiquei sabendo também que cursos escolares e universitários sobre o pensamento ocidental estavam proibidos de mencionar o nome de Marx. Falei sobre a vida e o trabalho na Inglaterra do final do século XIX e comparei a Inglaterra à China de hoje. Conversei sobre as metamorfoses da classe trabalhadora britânica e argumentei que, numa sociedade moderna dinâmica, era improvável que a passividade de classe durasse muito tempo. Argumentei também que um momento como o presente na China era exatamente o tipo de momento em que as passagens explosivas do Manifesto podiam se tornar proféticas. A maioria das pessoas com quem conversei me disse que a China não possuía um sistema de classes, que não havia ali uma estratificação e que, portanto, as categorias de Marx nada significavam no contexto chinês. Uns poucos sugeriram que ninguém acreditava naquilo, mas que hoje, como no passado, os chineses sabiam bem o que tinham de dizer.
Estudantes me contaram que, infelizmente, minha palestra tinha sido excluída das atas da conferência. Alguns me disseram que adorariam ler Marx, se pudessem. Disse-lhes que a ideia central era a de que eles também eram parte da classe trabalhadora, e que a classe trabalhadora tinha a capacidade de se organizar. Indiquei-lhes alguma bibliografia, o endereço de alguns sites na internet e desejei-lhes tudo de bom. Mais recentemente, em 2010, publicaram uma coletânea de textos mais elaborada, da qual constam não apenas eu, mas Marx também. Vi nisso um sinal de que os trabalhadores chineses tinham provavelmente começado a se organizar e a agir em larga escala. Quem é que sabe qual será o resultado? É possível, porém, que uma nova frente de batalha tenha sido aberta naquilo que Marx chamou de “a conquista da democracia”.
Marx vê a classe trabalhadora moderna como uma imensa comunidade mundial à espera de realizar-se. Possibilidades dessa envergadura dão à história das organizações gravidade e grandeza permanentes. O processo da criação de sindicatos não constitui apenas um item na política de grupos de interesse, mas é também parte vital do que Lessing chamou de “a educação da raça humana”. À medida que os trabalhadores começarem pouco a pouco a aprender quem são, Marx acredita que eles verão que precisam uns dos outros para ser quem são. Mais cedo ou mais tarde, os trabalhadores vão compreender isso, porque a sociedade burguesa os obriga a ficarem espertos, se quiserem sobreviver às constantes turbulências dessa mesma sociedade. Aprender a se dar a outros trabalhadores, que podem parecer e falar de um modo muito diferente do nosso, mas que, no fundo, são como nós, liberta a alma do pavor e dá a homens e mulheres um endereço permanente no mundo.
Isso é porção vital da visão moral subjacente ao Manifesto. Mas há outra dimensão moral, exposta em outro tom, mas tão urgente quanto essa, do ponto de vista humano. A começar com Platão, muitos movimentos comunistas ao longo da história procuraram promover ordens sociais nas quais o eu individual é esmagado por alguma forma de todo comunal. O mundo radical da década de 1840, aquele em que Marx cresceu, estava cheio de gente que pensava dessa maneira. Seus primeiros escritos estão repletos de imprecações contra o que ele chamou de comunismo “tosco”, de “parca elaboração”. Marx sempre insistiu que o comunismo significava a libertação do eu. E isso queria dizer que a revolução do futuro vai pôr fim às classes e à luta de classes, vai tornar possível desfrutar de um mundo em que “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Marx imagina o comunismo como um modo de fazer as pessoas felizes. Para ele, o primeiro aspecto da felicidade é o “desenvolvimento” — isto é, não uma experiência que se repete infinitamente, mas que passa por infinitos estágios de mudança e crescimento. Essa forma de felicidade é singularmente moderna, moldada pela economia burguesa em desenvolvimento incessante. Contudo, a moderna sociedade burguesa obriga as pessoas a se desenvolver de acordo com as demandas do mercado: o que vende é passível de desenvolvimento; o que não vende ou é reprimido ou jamais ganha vida. Contra esse desenvolvimento distorcido imposto pelo mercado, Marx luta pelo “livre desenvolvimento”, um tipo de desenvolvimento que o eu é capaz de controlar.
A insistência nesse livre desenvolvimento, em lugar daquele imposto pelo mercado, é um tema que Marx compartilha com o mais inteligente e nobre dos liberais do século xix: John Stuart Mill. Como Marx, Mill acabou por ver o “livre desenvolvimento” como um valor humano básico. Ao envelhecer, porém, ele se convenceu de que a forma capitalista de modernização — estrelada pela competição voraz, pela conformidade social e pela crueldade com os perdedores — bloqueava as melhores potencialidades. Na velhice, pois, o maior liberal do mundo se declarou socialista.
Ironicamente, esse terreno que liberalismo e socialismo compartilham pode ser um problema para os dois. Afinal, e se Mistah Kurtz não morreu? E se o autêntico “livre desenvolvimento” expuser profundezas horríveis da alma humana? Dostoiévski, Nietzsche e Freud nos fizeram encarar os horrores. Marx e Mill poderiam dizer que, enquanto não superarmos a dominação social, não há como saber quão fundo vai nossa degradação interior. O processo até chegarmos a esse ponto — em que Raskólnikovs não apodrecem na rua da amargura e em que Svidrigailovs não são possuidores de milhares de corpos e almas — há de bastar para garantir emprego fixo a todos nós. E, ainda que atinjamos esse ponto e cheguemos à conclusão de que nossos demônios interiores jamais vão nos deixar, teremos ao menos aprendido como colaborar uns com os outros para nossa defesa mútua. Trótski, na década de 1920, passou a acreditar que a psicoterapia era um direito revolucionário: o de nos protegermos de nós mesmos. O século XX terminou com a destruição em massa das efígies de Marx. Chamaram-no a “era pós-moderna”. Não precisávamos mais de narrativas grandiosas ou de grandes ideias.
A escala da cultura se expandiu imensamente nos séculos XX e XXI. Intelectuais precisam trabalhar para companhias farmacêuticas, estúdios de cinema, conglomerados de mídia, seguradoras de saúde, conselhos de educação, políticos etc., sempre utilizando sua criatividade para ajudar o capital a acumular mais capital. Isso faz com que eles estejam sujeitos não apenas às tensões que afligem todos os trabalhadores modernos, mas também a uma zona de pavor que é só deles. Quanto mais se importam com seu trabalho, desejosos de que ele signifique alguma coisa, tanto mais se veem em conflito com os guardiões de planilhas. No século XX, os criadores de cultura começaram a entender o problema e a se organizar. Mas, como aconteceu repetidas vezes ao longo da história do capitalismo, a tecnologia aprendeu a se organizar numa escala muito mais ampla. No século xxi, a internet descortinou toda uma nova dimensão de conflito. Editoras de livros, jornais e revistas começaram a desmoronar. Hoje em dia, os intelectuais são forçados a combater numa “batalha pela democracia” que, vemos bem agora, será permanente: eles lutam para manter viva a cultura. Não sabemos no que dará essa luta. Muitos intelectuais começaram a enxergar as conexões e a se reconhecer como trabalhadores. Muitos, porém, ainda não. A maioria de nós pode perfeitamente conceber outras coisas que preferiria estar fazendo. Marx argumenta que, a não ser que aprendamos a nos organizar — e a permanecer organizados —, a não ser que aprendamos a lutar essa luta, grande é a chance de que nem nós nem ninguém jamais vai poder voltar a fazer essas coisas de que gosta.
Marx via um amplo horizonte. Ele era capaz de imaginar como a vida se desdobraria a milhares de quilômetros de qualquer lugar onde tivesse estado. Tendo vivido metade de sua vida em Londres, naquela que era à época a economia mais dinâmica do mundo, ele tinha especial sensibilidade para as ambiguidades do crescimento. Ao longo dos últimos vinte anos, a economia mais dinâmica do mundo tem sido a chinesa. Boa parte do poder da China emana de uma classe trabalhadora dotada de imensa energia e, no entanto, até muito recentemente, da mais completa passividade. Passei um mês lá, em 2005, perplexo. Participei de uma conferência em Hangzhou, na Universidade de Zhejiang, caminhei pelas ruas de várias cidades grandes, encontrei-me com intelectuais de diversas idades. Em minha palestra estavam presentes cerca de trinta chineses e três americanos. Os americanos eram os únicos dispostos a dar à Revolução Chinesa o crédito por ter feito coisas. A conversa dos chineses sobre a história de seu próprio país parecia ter regredido ao nível daquelas que se tinha nos Estados Unidos da década de 1950. As pessoas falavam como se os “comunistas chineses” fossem marcianos, em vez de seus pais, avós ou, em alguns casos, delas mesmas. Fiquei sabendo também que cursos escolares e universitários sobre o pensamento ocidental estavam proibidos de mencionar o nome de Marx. Falei sobre a vida e o trabalho na Inglaterra do final do século XIX e comparei a Inglaterra à China de hoje. Conversei sobre as metamorfoses da classe trabalhadora britânica e argumentei que, numa sociedade moderna dinâmica, era improvável que a passividade de classe durasse muito tempo. Argumentei também que um momento como o presente na China era exatamente o tipo de momento em que as passagens explosivas do Manifesto podiam se tornar proféticas. A maioria das pessoas com quem conversei me disse que a China não possuía um sistema de classes, que não havia ali uma estratificação e que, portanto, as categorias de Marx nada significavam no contexto chinês. Uns poucos sugeriram que ninguém acreditava naquilo, mas que hoje, como no passado, os chineses sabiam bem o que tinham de dizer.
Estudantes me contaram que, infelizmente, minha palestra tinha sido excluída das atas da conferência. Alguns me disseram que adorariam ler Marx, se pudessem. Disse-lhes que a ideia central era a de que eles também eram parte da classe trabalhadora, e que a classe trabalhadora tinha a capacidade de se organizar. Indiquei-lhes alguma bibliografia, o endereço de alguns sites na internet e desejei-lhes tudo de bom. Mais recentemente, em 2010, publicaram uma coletânea de textos mais elaborada, da qual constam não apenas eu, mas Marx também. Vi nisso um sinal de que os trabalhadores chineses tinham provavelmente começado a se organizar e a agir em larga escala. Quem é que sabe qual será o resultado? É possível, porém, que uma nova frente de batalha tenha sido aberta naquilo que Marx chamou de “a conquista da democracia”.
Marx vê a classe trabalhadora moderna como uma imensa comunidade mundial à espera de realizar-se. Possibilidades dessa envergadura dão à história das organizações gravidade e grandeza permanentes. O processo da criação de sindicatos não constitui apenas um item na política de grupos de interesse, mas é também parte vital do que Lessing chamou de “a educação da raça humana”. À medida que os trabalhadores começarem pouco a pouco a aprender quem são, Marx acredita que eles verão que precisam uns dos outros para ser quem são. Mais cedo ou mais tarde, os trabalhadores vão compreender isso, porque a sociedade burguesa os obriga a ficarem espertos, se quiserem sobreviver às constantes turbulências dessa mesma sociedade. Aprender a se dar a outros trabalhadores, que podem parecer e falar de um modo muito diferente do nosso, mas que, no fundo, são como nós, liberta a alma do pavor e dá a homens e mulheres um endereço permanente no mundo.
Isso é porção vital da visão moral subjacente ao Manifesto. Mas há outra dimensão moral, exposta em outro tom, mas tão urgente quanto essa, do ponto de vista humano. A começar com Platão, muitos movimentos comunistas ao longo da história procuraram promover ordens sociais nas quais o eu individual é esmagado por alguma forma de todo comunal. O mundo radical da década de 1840, aquele em que Marx cresceu, estava cheio de gente que pensava dessa maneira. Seus primeiros escritos estão repletos de imprecações contra o que ele chamou de comunismo “tosco”, de “parca elaboração”. Marx sempre insistiu que o comunismo significava a libertação do eu. E isso queria dizer que a revolução do futuro vai pôr fim às classes e à luta de classes, vai tornar possível desfrutar de um mundo em que “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Marx imagina o comunismo como um modo de fazer as pessoas felizes. Para ele, o primeiro aspecto da felicidade é o “desenvolvimento” — isto é, não uma experiência que se repete infinitamente, mas que passa por infinitos estágios de mudança e crescimento. Essa forma de felicidade é singularmente moderna, moldada pela economia burguesa em desenvolvimento incessante. Contudo, a moderna sociedade burguesa obriga as pessoas a se desenvolver de acordo com as demandas do mercado: o que vende é passível de desenvolvimento; o que não vende ou é reprimido ou jamais ganha vida. Contra esse desenvolvimento distorcido imposto pelo mercado, Marx luta pelo “livre desenvolvimento”, um tipo de desenvolvimento que o eu é capaz de controlar.
A insistência nesse livre desenvolvimento, em lugar daquele imposto pelo mercado, é um tema que Marx compartilha com o mais inteligente e nobre dos liberais do século xix: John Stuart Mill. Como Marx, Mill acabou por ver o “livre desenvolvimento” como um valor humano básico. Ao envelhecer, porém, ele se convenceu de que a forma capitalista de modernização — estrelada pela competição voraz, pela conformidade social e pela crueldade com os perdedores — bloqueava as melhores potencialidades. Na velhice, pois, o maior liberal do mundo se declarou socialista.
Ironicamente, esse terreno que liberalismo e socialismo compartilham pode ser um problema para os dois. Afinal, e se Mistah Kurtz não morreu? E se o autêntico “livre desenvolvimento” expuser profundezas horríveis da alma humana? Dostoiévski, Nietzsche e Freud nos fizeram encarar os horrores. Marx e Mill poderiam dizer que, enquanto não superarmos a dominação social, não há como saber quão fundo vai nossa degradação interior. O processo até chegarmos a esse ponto — em que Raskólnikovs não apodrecem na rua da amargura e em que Svidrigailovs não são possuidores de milhares de corpos e almas — há de bastar para garantir emprego fixo a todos nós. E, ainda que atinjamos esse ponto e cheguemos à conclusão de que nossos demônios interiores jamais vão nos deixar, teremos ao menos aprendido como colaborar uns com os outros para nossa defesa mútua. Trótski, na década de 1920, passou a acreditar que a psicoterapia era um direito revolucionário: o de nos protegermos de nós mesmos. O século XX terminou com a destruição em massa das efígies de Marx. Chamaram-no a “era pós-moderna”. Não precisávamos mais de narrativas grandiosas ou de grandes ideias.
Guardei minha história preferida sobre o Manifesto para o fim. Ela vem de Hans Morgenthau, o grande teórico das relações internacionais que foi para os Estados Unidos fugindo dos nazistas. Trata-se de uma história que eu o ouvi contar no início da década de 1970, na City University de Nova York. Ele rememorava sua infância na Baviera, antes da Primeira Guerra Mundial. O pai de Morgenthau, que havia sido médico num bairro operário de Coburg (habitado em sua maioria por mineiros, segundo disse), tinha começado a levar o filho em suas visitas domiciliares a pacientes. Muitos deles estavam morrendo de tuberculose. Naqueles anos, não havia muito que um médico pudesse fazer para salvar suas vidas, mas ele podia ajudá-los a morrer com dignidade. Coburg era um lugar em que muitos dos moribundos pediam que lhes enterrassem em companhia da Bíblia. Mas quando o pai de Morgenthau perguntava a seus trabalhadores quais eram seus últimos desejos, muitos deles diziam que preferiam ser enterrados com o Manifesto. Imploravam ao médico por cópias novas do livro, e para que não deixasse o padre se intrometer e, no último instante, trocá-lo pela Bíblia.
Vinte anos mais tarde, nós nos vemos nas garras de narrativas muito diferentes daquelas sobre os modernos “direitos do homem e do cidadão”: histórias sobre uma dinâmica sociedade global cada vez mais unificada por downsizing, pela dispensa do trabalho qualificado, pelos postos de trabalho que desaparecem — postos de trabalho que desaparecem para que as ações das companhias possam subir, para que os ricos fiquem mais ricos e possam se parabenizar pelo que fizeram por nosso mundo. Poucos de nós compartilham hoje em dia daquele sentimento de Marx da existência imediata de uma alternativa clara ao capitalismo. Muitos, porém, abraçam sua perspectiva radical, sua indignação, sua crença de que mulheres e homens são capazes de criar um mundo melhor. De repente, o icônico pode parecer mais convincente do que o irônico. Aquela clássica presença barbada, o ateu fazendo as vezes de profeta bíblico, ainda tem muito a dizer. No limiar do século XX, trabalhadores estavam dispostos a morrer em companhia do Manifesto comunista. No limiar do século XXI, é possível que muitos mais estejam dispostos a viver em sua companhia.
Vinte anos mais tarde, nós nos vemos nas garras de narrativas muito diferentes daquelas sobre os modernos “direitos do homem e do cidadão”: histórias sobre uma dinâmica sociedade global cada vez mais unificada por downsizing, pela dispensa do trabalho qualificado, pelos postos de trabalho que desaparecem — postos de trabalho que desaparecem para que as ações das companhias possam subir, para que os ricos fiquem mais ricos e possam se parabenizar pelo que fizeram por nosso mundo. Poucos de nós compartilham hoje em dia daquele sentimento de Marx da existência imediata de uma alternativa clara ao capitalismo. Muitos, porém, abraçam sua perspectiva radical, sua indignação, sua crença de que mulheres e homens são capazes de criar um mundo melhor. De repente, o icônico pode parecer mais convincente do que o irônico. Aquela clássica presença barbada, o ateu fazendo as vezes de profeta bíblico, ainda tem muito a dizer. No limiar do século XX, trabalhadores estavam dispostos a morrer em companhia do Manifesto comunista. No limiar do século XXI, é possível que muitos mais estejam dispostos a viver em sua companhia.
Sobre o autor
Marshall Berman teaches political theory and urbanism at CCNY/CUNY. He is the author of, among other books, Adventures in Marxism.
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