20 de janeiro de 2013

Sobre democracia e socialismo

Uma resposta a "O vermelho e o negro", de Seth Ackerman.

Tyler Zimmer

Jacobin


Tradução / O texto de Seth Ackerman, “O vermelho e o negro” está repleto de imaginação e frescor. Simpatiza com o desprezo de Marx pela “invenção de livros de receitas para as cozinhas do futuro” enquanto oferece, ao mesmo tempo, um tipo de inspiração que só pode ser extraído de visões alternativas radicais. Minha esperança é que ele gere uma grande variedade de respostas críticas, mas aqui eu gostaria de explorar apenas um tema: a democracia.

Deixe-me ser claro: quando falo em “democracia”, tenho em mente algo completamente diferente das instituições eleitorais que existem nas sociedades capitalistas contemporâneas como os Estados Unidos ou o Brasil. Estas instituições dão à vasta maioria da população pouco controle real sobre as estruturas básicas da sociedade. Sempre que falo de democracia no texto que segue, tenho em mente uma coisa mais simples e mais radical – uma associação em que as pessoas governam conscientemente seus assuntos em comum na base da igualdade genuína através da razão e do debate público.

Ackerman fala bastante sobre mercados e sobre a experiência do planejamento central burocrático, mas tem muito menos a dizer sobre a tradicional demanda socialista do controle pela classe trabalhadora sobre a vida econômica. Apesar dele dizer que seu tópico principal é “o conflito entre a busca de lucro privado e a satisfação das necessidades humanas,” eu não pude deixar de imaginar como energias democráticas radicais se encaixam nesse quadro.

O socialismo, no fim das contas, não é somente sobre satisfazer as necessidades humanas ou “distribuir os bens” – é também sobre colocar a estrutura econômica da sociedade sob controle democrático. Um jovem Alasdair MacIntyre escreveu que “é típico da sociedade de classes que a vida social apareça como uma coisa dada, fora do nosso controle, em que nós podemos desempenhar apenas um papel pré-arranjado.” O Socialismo, pelo contrário, seria “a vitória da consciência sobre sua escravização anterior pela atividade econômica e pela política. Todas as outras formas de sociedade foram sofridas pelos seres humanos; o socialismo é para ser vivido por eles.”

A ideia central aqui é que o socialismo é sobre criar relações sociais que nos permitiriam auto-governar coletivamente nossos assuntos em comum – econômicos e outros – de uma forma racional e consciente, livre de todas as formas de opressão e de exploração. Para mim, Ackerman deixa subdesenvolvido este importante tema socialista.

É claro, existe uma tradição – podemos chamá-la de “Socialismo Vindo de Cima” – que no bom estilo tecnocrático, tem demonstrado uma tendência a rejeitar a democracia, modelando o socialismo em termos de uma alocação de bens distribuídos por uma agência burocrática sobre a qual a população não tem controle. Ackerman deixa claro que rejeita esta abordagem de-cima-para-baixo em prol de um socialismo construído de-baixo-para-cima, mas sua discussão de socialismo de mercado toca apenas indiretamente neste tópico do controle democrático sobre a vida econômica.

Não acho que esta seja uma questão secundária, na medida em que o mercado e o foro democrático são duas formas fundamentalmente diferentes de organização social.

Compare e diferencie: o consumidor individual no mercado tem apenas a capacidade de “sair do mercado”, ou seja, de se recusar a comprar o que já foi produzido – enquanto que o cidadão democrático possui “voz” sobre uma decisão coletiva ainda não resolvida. O consumidor individual em um mercado age na base de preferências íntimas, enquanto que o participante em uma assembleia democrática apresenta argumentos públicos fundamentados sobre como resolver alguma questão de preocupação coletiva.

Interações no mercado se baseiam em estratégia e interesse próprio – a barganha procede sob a premissa de que os participantes querem comprar algo barato e vender caro – enquanto que participantes em um foro democrático interagem sob a premissa de que compartilham um interesse em resolver um problema coletivo de um jeito que avance com o bem comum. Mercados despolitizam questões de escolha social enquanto a democracia politiza as decisões ao elevá-las ao nível da crítica e do debate públicos. Provavelmente existem mais diferenças que merecem ser observadas, mas acredito que já deu para entender o ponto.

A resposta progressista tradicional a essa tensão entre mercados e democracia é dizer que cada um tem sua hora e lugar apropriados: o mercado seria o mecanismo apropriado para a esfera econômica enquanto que o foro seria o dispositivo apropriado para a esfera política do Estado. Os socialistas, entretanto, se opõem firmemente à essa separação entre a esfera (alegadamente) privada da vida econômica e o reino público oficial da política. Ao invés disso, eles têm lutado para repensar e expandir nossa concepção do que é político para incluir não apenas as alavancas do Estado, mas a sociedade como um todo. Então, dado que Ackerman visualiza os mercados exercendo um papel significativo no socialismo, ele nos deve uma explicação sobre como eles podem ser politizados e domados pela vontade popular.


Ackerman afirma que

“A autonomia das empresas para escolher seus produtos e métodos de produção significa que elas podem se comunicar diretamente com os consumidores e adaptar seus produtos às necessidades deles – e com a entrada livre nos mercados, os consumidores podem escolher entre os produtos de diferentes produtores: nenhuma agência precisa definir o que precisa ser produzido.“

Interpretada como uma metáfora, eu vejo como esta afirmação pode fazer sentido; mas, tomada literalmente, ela me parece falsa. Em um mercado, os consumidores não se comunicam diretamente com os produtores sobre suas necessidades – sua escolha é apenas se comprarão ou não o que já está na prateleira. Uma maneira mais técnica de dizer isso seria que consumidores em um mercado não têm voz, eles apenas conservam a capacidade de sair da transação – ou seja, de individualmente se recusar a comprar o que já foi projetado, posto à venda e produzido em nome deles.

Um mercado simplesmente não é o tipo de coisa que permite que consumidores tenham entradas deliberativas diretas nas decisões sobre quais necessidades socialmente reconhecidas se refletirão na produção econômica. Valorizar a comunicação direta e a coordenação consciente é desejar outra coisa, não mercados.

Ackerman reconhece isso, quando discute as maneiras pelas quais os mercados facilitam divisões complexas de trabalho entre pessoas que não possuem interações comunicativas diretas, por completo. Como ele sem dúvidas concordaria, é um aspecto definidor do mercado que ele coordena o comportamento indiretamente, “por trás das costas” daqueles envolvidos. As pessoas no mercado não se juntam e se comunicam coletivamente para formular planos gerais coerentes; ao invés disso, elas todas lidam de maneira privada com seus interesses, em busca de compradores e vendedores individuais. As consequências gerais que surgem destas atividades no mercado, mesmo se forem benéficas, não são o resultado de vontade consciente ou de comunicação direta da parte daqueles envolvidos.

Entre outras coisas, esta dimensão não-comunicativa dos mercados revela o fato de que eles não exigem que justifiquemos nossas preferências consumistas aos outros. No mercado, não importa porque tenho uma preferência de consumo – só importa que eu a tenho. Esta talvez seja uma das virtudes dos mercados, se é que há alguma. Afinal de contas, quem gostaria de ser obrigado a tentar justificar para outra pessoa porque quer um sorvete de um sabor ao invés de outro? E o que possivelmente poderia ser ganho ao tentar deliberar coletivamente sobre qual é a melhor forma de macarrão?


Talvez no caso do macarrão e dos sabores de sorvete, as coisas devam ser assim mesmo. O problema é que os mercados, em termos de informação, reduzem todas as nossas visões, julgamentos e princípios econômicos ao modelo de preferências de consumo (possivelmente frívolas e irrefletidas). A narrativa econômica padrão nos ensina que preferências individuais são “reveladas” através das atividades dos agentes no mercado. Quando compro uma bola de sorvete por um certo preço, eu “revelo” uma preferência individual por ela – e o preço que pago registra a intensidade dessa preferência em relação a outras preferências de consumo que eu poderia ter.

Assim, no que diz respeito ao mercado, decisões profundamente importantes sobre prioridades de investimento, impacto ambiental, taxas de crescimento, equilíbrio entre poupança para o futuro e consumo atual, escala e localização da produção, nível de emprego e assim por diante devem ser todas determinadas exatamente da mesma maneira que as decisões sobre quais sabores de sorvete se produzir – na base de um agregado de preferências individuais despolitizadas.

Agora, há muito em jogo – socialmente, economicamente e ambientalmente – em como estas grandes decisões são tomadas. São questões políticas urgentes que precisam ser pensadas criticamente e discutidas coletivamente por nós para que possamos compreendê-las e lidar com elas direito. E, o que é mais importante, estes temas têm ramificações de longo prazo – pense nas questões ambientais urgentes em jogo – o que as torna inadequadas para processos de decisão que dependem de preferências individuais de curto prazo por certas formas de consumo privado. Portanto, deixar problemas tão urgentes para serem resolvidos pelas maquinações das forças de mercado, ou seja, decidí-las na base de uma coleção de preferências pessoais íntimas e mal examinadas não é aconselhável, pra dizer o mínimo.

É exatamente por isso que os socialistas têm frequentemente defendido um planejamento consciente e democrático como uma alternativa razoável ao mercado. A ideia é dar prioridade a processos de tomada de decisão que sejam racionais – responsivos ao discurso e ao debate públicos sobre o bem comum – e democráticos, no sentido de atrair as massas da população para participar neles, tanto quanto for possível.

Na deliberação democrática, as entradas básicas de informação usadas para se tomar a maioria das decisões sobre investimento, emprego, produção e alocação não seriam preferências individuais, mas argumentos públicos fundamentados. Como qualquer um que já participou de um debate genuinamente democrático pode atestar, nossas preferências individuais muitas vezes mudam enquanto enfrentamos os argumentos e propostas trazidos pelos outros. Às vezes a exigência de que nos justifiquemos para os outros nos leva a revisar nossas próprias visões. A filósofa política Elizabeth Anderson coloca da seguinte maneira: “o diálogo democrático não toma as preferências como pré-definidas, mas as transforma, não apenas no sentido de mudar as opiniões individuais sobre o que cada um quer, mas de mudar nossa visão sobre o que queremos quando agimos coletivamente.”

No seu melhor, a democracia socialista seria um processo participatório, racional e experimental no qual “nenhuma força além da força do melhor argumento” determinaria o que decidiríamos fazer juntos. Isso tornaria possíveis amplos processos de aprendizagem social pelos quais a avaliação coletiva de decisões anteriores nos permitiria melhorarmos como co-legisladores com o passar do tempo. O aspecto participatório tem o potencial para nutrir um senso de responsabilidade compartilhada pelos resultados e, talvez, um sentimento de que estaremos cooperando com os outros em termos de igualdade para promover o bem comum. Estes são benefícios que os mercados – lidando com nada além de agregados de preferências individuais que dizem respeito apenas a cada um – não podem gerar.

Isso não significa que o planejamento democrático de alguma maneira eliminaria todos os conflitos e discordâncias sobre prioridades sociais; significa menos ainda que uma democracia verdadeira exigiria uma harmonia de interesses – ou premissas selvagens sobre motivações humanas – para ser capaz de ter sucesso. Ao invés disso, a democracia nos dá uma estrutura dentro da qual podemos discutir e debater juntos – embora iremos discordar – sobre quais deveriam ser os objetivos básicos de nosso sistema social e econômico. Desta maneira, a democracia desperta uma questão-chave que os mercados, como tais, não nos permitem levantar: o que devemos fazer juntos?


Como isso pareceria, na prática? Penso que é uma força do texto de Ackerman que ele coloque esta questão e nos dê uma resposta séria a respeito de como os mercados poderiam operar em uma sociedade socialista. Estou curioso para saber como ele poderia integrar os elementos da democracia em seu modelo, mas enquanto isso, penso que vale a pena dizer (brevemente) alguma coisa concreta sobre como uma economia democraticamente planejada poderia parecer.

Os fugazes experimentos históricos sobre planejamento democrático que temos à disposição são inspiradores e instrutivos. Porém, são radicalmente incompletos, dado que praticamente todos eles foram esmagados externamente enquanto ainda estavam em sua infância. Isso não tem impedido os socialistas de visualizar alternativas concretas, entretanto. O livro do economista radical Pat Devine, Democracy and Economic Planning [“Democracia e Planejamento Econômico”], por exemplo, apresenta uma proposta imaginativa que merece consideração e debate sérios entre os socialistas.

A proposta de Devine envolve corpos de planejamento econômico democraticamente eleitos e operados em múltiplos níveis diferentes – locais, regionais e nacionais. Debates num nível nacional poderiam focar em prioridades gerais em relação à escala de tempo e às quantidades de investimento em infra-estrutura, meios de produção, comunicação, saúde, educação, transporte, pesquisa científica, e assim por diante. Corpos regionais e locais tomariam decisões sobre questões mais particulares. Devine propõe que estes diferentes corpos interajam na forma de uma “coordenação negociada”, que equilibre formas centralizadas e descentralizadas de tomada de decisão democrática.

E sobre as especificidades destas entidades e as relações entre elas? Uma resposta completamente desenvolvida à essa pergunta certamente está fora do escopo desta curta resposta crítica. Além do mais, eu, como Ackerman, tomo o partido de Marx em pensar que nos arriscamos a bolar manuais de instrução tecnocráticos se tentarmos ser muito específicos sobre o funcionamento detalhado de algo que ainda sequer existe. Seja como um diagrama ou não, espero ter dito o bastante para desfazer a preocupação geral de que a governança democrática da vida econômica seria irremediavelmente impraticável ou que não seja atraente em princípio.


Algumas coisas afirmadas acima podem precisar de esclarecimento. Não acho que o contraste entre o mercado e o foro democrático significa que precisamos ir 100% na direção de um ou de outro. Como disse, penso que o núcleo democrático radical do projeto socialista implica em que o mercado não deveria ser a instituição organizativa fundamental da sociedade. E concordo com Ackerman que os resultados de planejamento dentro do “capitalismo realmente existente” e das sociedades burocráticas da antiga União Soviética provam – mesmo que de uma maneira distorcida – que já temos exemplos de alternativas viáveis ao mercado.

Mas certamente isso não significa que não poderia haver nenhum papel – nem mesmo periférico – para os mercados em uma sociedade socialista. Nisso eu concordo com Ackerman. Mas a não ser que façamos uma distinção apropriada entre o mercado e o foro – e evitemos misturá-los – não estaremos em uma posição para compreender porque os cidadãos de uma sociedade socialista poderiam querer encontrar um equilíbrio entre eles segundo suas avaliações. No fim, contudo, as pessoas em uma sociedade socialista devem ser capazes de decidir por si mesmas como encontrar o equilíbrio certo entre planejamento democrático e os mercados.

É importante também manter os dois separados porque alguma coisa se perde quando escolhemos os mercados ao invés da organização democrática, assim como algo pode se perder – digamos que eficiência ou anonimato – quando trocamos os mercados pela democracia. Porém, os socialistas têm tradicionalmente mantido uma forte premissa em favor de organizações democráticas e conscientes, ao invés das alternativas. Fica com Ackerman o ônus de explicar em maiores detalhes como suas recomendações são compatíveis com este objetivo socialista básico.

Sobre o autor

Tyler Zimmer é professor visitante de filosofia na Northeastern Illinois University.

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