27 de agosto de 2009

O que importa: A classe supera a raça

Nos EUA, há (ou havia) uma organização chamada Love Makes a Family. Ela foi fundada em 1999 para apoiar o direito de casais gays de adotar crianças e desempenhou um papel central no apoio a uniões civis. ...

Walter Benn Michaels

Vol. 31 No. 16 · 27 August 2009

Who Cares about the White Working Class?
editado por Kjartan Páll Sveinsson.
Runnymede Perspectives, 72 pp., janeiro 2009, 978 1 906732 10 3

Nos EUA, há (ou havia) uma organização chamada Love Makes a Family. Ela foi fundada em 1999 para apoiar o direito de casais gays de adotar crianças e desempenhou um papel central no apoio às uniões civis. Alguns meses atrás, sua diretora, Ann Stanback, anunciou que, tendo "atingido suas metas", a Love Makes a Family encerraria suas operações no final deste ano, e que ela deixaria o cargo para passar mais tempo com sua esposa, Charlotte. Nosso "propósito principal", ela disse, foi "alcançado".

É possível, é claro, que esta declaração de missão cumprida se mostre tão imprudente quanto algumas outras foram na última década. O casamento gay é legal em Connecticut, onde o Love Makes a Family está sediado, mas certamente não é legal em todos os lugares dos EUA. Ninguém, no entanto, negaria que a luta pelos direitos gays fez avanços extraordinários nos 40 anos desde Stonewall. E o progresso no combate à homofobia foi acompanhado por um progresso comparável no combate ao racismo e ao sexismo. Embora a alegação ocasional de que a eleição do presidente Obama nos conduziu a uma sociedade pós-racial esteja obviamente errada, é bastante claro que o país que acabou de eleger um presidente negro (e que produziu tantos votos para a candidatura presidencial de uma mulher) é muito menos racista e sexista do que costumava ser.

Mas seria um erro pensar que, porque os EUA são uma sociedade menos racista, sexista e homofóbica, são uma sociedade mais igualitária. Na verdade, em certos aspectos cruciais, são mais desiguais do que eram há 40 anos. Nenhum grupo dedicado a acabar com a desigualdade econômica pensaria hoje em declarar vitória e ir para casa. Em 1969, o quintil superior de assalariados americanos ganhava 43% de todo o dinheiro ganho nos EUA; o quintil inferior ganhava 4,1%. Em 2007, o quintil superior ganhava 49,7%; o quintil inferior 3,4%. E embora essa desigualdade seja racial e de gênero, é menor do que você imagina. Os brancos, por exemplo, constituem cerca de 70% da população dos EUA e 62% daqueles no quintil inferior. O progresso na luta contra o racismo não lhes fez bem algum; nem mesmo foi projetado para lhes fazer bem algum. De forma mais geral, mesmo se tivéssemos sucesso em eliminar completamente os efeitos do racismo e do sexismo, não teríamos feito nenhum progresso em direção à igualdade econômica. Uma sociedade na qual os brancos fossem representados proporcionalmente no quintil inferior (e os negros representados proporcionalmente no quintil superior) não seria mais igual; seria exatamente tão desigual. Não seria mais justa; seria proporcionalmente injusta.

Uma questão óbvia, então, é como devemos entender o fato de que fizemos tanto progresso em algumas áreas enquanto retrocedemos em outras. E uma resposta quase igualmente óbvia é que as áreas nas quais fizemos progresso foram aquelas que estão em acordo fundamental com os valores mais profundos do neoliberalismo, e aquela em que não fizemos não está. Podemos colocar o ponto mais diretamente observando que a tolerância crescente à desigualdade econômica e a intolerância crescente ao racismo, sexismo e homofobia — da discriminação como tal — são características fundamentais do neoliberalismo. Daí os avanços extraordinários na batalha contra a discriminação e, portanto, também seus limites como contribuição para qualquer política de esquerda. As crescentes desigualdades do neoliberalismo não foram causadas pelo racismo e sexismo e não serão curadas por — elas nem são abordadas por — antirracismo ou antissexismo.

Meu ponto não é que o antirracismo e o antissexismo não sejam coisas boas. É que atualmente não têm nada a ver com a política de esquerda e que, na medida em que funcionam como um substituto para ela, podem ser uma coisa ruim. As universidades americanas são exemplares aqui: são menos racistas e sexistas do que eram há 40 anos e, ao mesmo tempo, mais elitistas. Uma serve como álibi para a outra: quando você pede mais igualdade, o que eles dão é mais diversidade. O coração neoliberal salta ao som de tetos de vidro quebrando e à visão de médicos, advogados e professores de cor tomando seu lugar na classe média alta. Daí as muitas corporações que buscam a diversidade quase tão entusiasticamente quanto buscam lucros, e proclamam repetidamente não apenas que os dois são compatíveis, mas que eles têm uma conexão causal – que a diversidade é boa para os negócios. Mas uma elite diversificada não se torna menos elitista por sua diversidade e, como uma resposta à demanda por igualdade, longe de ser política de esquerda, é política de direita.

O recente furor sobre a prisão por "conduta desordeira" de Henry Louis Gates ajuda a deixar isso claro. Gates, como disse um de seus colegas de Harvard, é "um homem negro famoso, rico e importante", um ponto que o próprio Gates tentou colocar ao policial que o prendeu - a maneira como ele colocou foi: "Você não sabe com quem está mexendo". Mas, apesar da dica útil, o policial falhou em reconhecer uma verdade essencial sobre a América neoliberal: não é mais suficiente se curvar diante de pessoas brancas ricas; agora você tem que se curvar diante de pessoas negras ricas também. O problema, como disse um escritor simpático no Guardian, é que "a raça de Gates extinguiu seu status de classe", ou como Gates disse ao New York Times, "não posso usar minha beca de Harvard em todos os lugares". Nos velhos tempos ruins, essa situação quase nunca acontecia - os policiais podiam tratar com confiança todos os negros, na verdade, todas as pessoas de cor, da maneira como tradicionalmente tratavam os brancos pobres. Mas agora que fizemos algum progresso real em direção à integração de nossas elites, você precisa dar um passo para trás e reservar um tempo para descobrir "com quem você está mexendo". Você precisa ter certeza de que o status de classe de ninguém seja apagado por sua raça.

Após a prisão de Gates, entre as centenas de pessoas protestando contra a injustiça do perfil racial, uma cardiologista branca casada com um homem negro colocou o ponto melhor quando lamentou que mesmo na "área diversa" onde ela mora (Hyde Park, o antigo bairro de Obama) ela ouvirá as pessoas dizendo nervosamente: "Olhe para aqueles caras negros vindo em nossa direção", ao que ela responde: "Sim, mas eles estão usando shorts de lacrosse e jeans Calvin Klein. Eles provavelmente são filhos do professor da rua." "Você tem que ser capaz de discernir as diferenças entre as pessoas", ela continuou dizendo. ‘É muito frustrante.’ As diferenças que ela quer dizer, é claro, são entre crianças ricas e crianças pobres, e a frustração que ela sente é com pessoas que não entendem que classe deve triunfar sobre raça. Mas enquanto é fácil simpatizar com essa frustração — crianças negras ricas são infinitamente menos propensas a assaltar você do que crianças negras pobres ou, nesse caso, crianças brancas pobres — é muito mais difícil ver isso como a expressão de uma política progressista.

No entanto, parece ser assim que vemos. O ideal neoliberal é um mundo onde pessoas ricas de todas as raças e sexos podem desfrutar alegremente de sua riqueza, e onde as injustiças produzidas não pela discriminação, mas pela exploração — há menos pessoas pobres (7%) do que negras (9%) em Harvard, e Harvard não é a pior — são discretamente enviadas para a porta dos fundos. Assim, todos estão indignados que um professor negro que vive na próspera Ware St (e aluga uma "mansão" de férias de verão em Martha's Vineyard que ele "brincando" chama de "Tara") possa ser tratado com desrespeito; ninguém está tão indignado com o sistema social que criou a lacuna entre Ware St ou "Tara" e os lugares onde a maioria dos americanos vive. Todos estão indignados com o fato de que Gates pode ser tratado tão mal; ninguém com o fato de que ele e o resto dos 10% dos maiores assalariados americanos estão se saindo tão bem. Na verdade, é exatamente o oposto. Os liberais — especialmente os liberais brancos — estão entusiasmados com o sucesso de Gates, pois ele atesta a legitimidade do seu próprio sucesso: o racismo não nos rendeu todo esse dinheiro, nós o ganhamos!

Assim, a primazia da antidiscriminação não apenas desempenha a função econômica de tornar os mercados mais eficientes, mas também desempenha a função terapêutica de fazer aqueles de nós que se beneficiaram desses mercados dormirem melhor à noite. E, talvez mais importante, tem, ‘por um longo tempo’, como Wendy Bottero diz em sua contribuição para a recente coleção do Runnymede Trust Who Cares about the White Working Class?, também desempenhado a função intelectual de focar a análise social no que ela chama de ‘questões de identidade racial ou sexual’ e em ‘diferenças culturais’ em vez de ‘na maneira como as economias capitalistas criam um grande número de empregos de baixa remuneração e baixa qualificação com baixa segurança no emprego’. A mensagem de Who Cares about the White Working Class?, no entanto, é que a classe ressurgiu: ‘O que aprendemos aqui’, de acordo com o editor da coleção, Kjartan Páll Sveinsson, é que ‘as oportunidades de vida para as crianças de hoje estão esmagadoramente ligadas à renda dos pais, ocupações e qualificações educacionais – em outras palavras, classe.’

Esta afirmação, por mais banal que pareça, representa um avanço substancial sobre o antirracismo multiculturalista, uma vez que a lógica do antirracismo requer apenas a correção de disparidades dentro das classes, e não entre elas. Se cerca de 1,5% da sua população é de ascendência paquistanesa, então se 1,5% de cada quintil de renda é paquistanês, seu trabalho está feito. O fato de que o quintil superior é quatro vezes melhor do que o quintil inferior — a vantagem que os filhos de paquistaneses ricos teriam sobre os filhos de pobres — não é problema seu. É por isso que, em uma sociedade como a Grã-Bretanha, cujo coeficiente GINI — a medida padrão de desigualdade de renda — é o mais alto da UE, a ambição de eliminar as disparidades raciais em vez da desigualdade de renda em si funciona como uma forma de legitimação e não como uma crítica. É também por isso que, quando uma organização como a Runnymede Trust, que há anos se dedica a promover "uma Grã-Bretanha multiétnica bem-sucedida abordando questões de igualdade racial e discriminação contra comunidades minoritárias", começa a se dirigir à classe, ela passou por uma mudança real. A igualdade racial requer respeito pela diferença racial; a igualdade de classe requer a eliminação da diferença de classe.

No entanto, o que Who Cares about the White Working Class? realmente fornece é menos uma alternativa ao multiculturalismo neoliberal do que uma extensão e refinamento engenhoso dele. Aqueles que escrevem nesta coleção entendem o "ressurgimento da classe" não como uma função da crescente injustiça de classe (quando Thatcher assumiu o cargo, a pontuação GINI era 0,25; agora é 0,36, a mais alta que o Reino Unido já registrou), mas como uma função da crescente injustiça do "classismo". O que os indigna, em outras palavras, não é o fato da diferença de classe, mas o "desprezo" e o "desprezo" com que a classe baixa é tratada.

Você tem uma noção perfeita de como isso funciona a partir da análise de Beverley Skeggs de uma história contada por um de seus sujeitos de pesquisa da classe trabalhadora sobre uma viagem que ela e suas amigas fizeram para Kendals em Manchester: "Você sabe, onde está a comida realmente chique, e nós estávamos rindo de todos os chocolates, e quantos poderíamos comer - se pudéssemos pagar por eles - e essa mulher apenas olhou para nós. Se olhares pudessem matar... Era como se fosse o lugar dela, e não pertencêssemos ali." O ponto que Skeggs levanta é que "o olhar que incorpora a leitura simbólica das mulheres as faz se sentirem "fora do lugar", gerando assim uma sensação de onde seu "lugar" deveria ser", enquanto seu ponto mais geral é que "a classe média" deveria ser "responsabilizada pelos níveis de violência simbólica que praticam em encontros diários" com as classes mais baixas.

O foco de sua indignação (na verdade, até onde podemos dizer pela história, o foco da indignação das próprias mulheres) não é o fato de que algumas pessoas podem pagar os chocolates e outras não, mas que as que podem são más com as que não podem. E isso representa uma espécie de inovação na política de esquerda. Embora todos sempre tenham desaprovado adicionar insulto à injúria, tradicionalmente tem sido a direita que busca tratar o insulto como se fosse a injúria.

É, portanto, um fato relevante sobre Who Cares about the White Working Class? que Ferdinand Mount, que já aconselhou Thatcher, é citado e elogiado duas vezes aqui por condenar o mau comportamento da classe média ao exibir seu desprezo aberto pelas "culturas da classe trabalhadora". Ele representa uma melhoria em relação àqueles que buscam culpar os pobres por sua pobreza e que consideram a cultura da pobreza, em vez da estrutura do capitalismo, como o problema. Essa é a visão do que poderíamos chamar de neoliberalismo de direita e, do ponto de vista do que poderíamos chamar de neoliberalismo de esquerda, não é nada além da expressão do preconceito de classe. O que os neoliberais de esquerda querem é oferecer alguma "afirmação positiva para as classes trabalhadoras". Eles querem que vamos além da raça para a classe, mas que façamos isso tratando a classe como se fosse raça e que comecemos a tratar a classe trabalhadora branca com o mesmo respeito que trataríamos, digamos, os somalis - dando "valor e significado positivos tanto à "classe trabalhadora" quanto à diversidade étnica". Onde os neoliberais de direita querem que condenemos a cultura dos pobres, os neoliberais de esquerda querem que a apreciemos.

A grande virtude desse debate é que, em ambos os lados, a desigualdade se transforma em um estigma. Ou seja, uma vez que você começa a redefinir o problema da diferença de classe como o problema do preconceito de classe — uma vez que você completa a transformação de raça, gênero e classe em racismo, sexismo e classismo — você não precisa mais se preocupar com a redistribuição de riqueza. Você pode simplesmente lutar sobre se os pobres devem ser tratados com desprezo ou respeito. E embora, em termos humanos, o respeito pareça o caminho certo a seguir, politicamente é tão vazio quanto o desprezo.

Isso é bastante óbvio quando se trata de classe. Kjartan Páll Sveinsson declara que "as classes trabalhadoras brancas são discriminadas em uma série de frentes diferentes, incluindo seu sotaque, seu estilo, a comida que comem, as roupas que vestem" — e isso é sem dúvida verdade. Mas a eliminação de tal discriminação não alteraria a natureza do sistema que gera "o grande número de empregos de baixa remuneração e baixa qualificação com baixa segurança no emprego" descrito por Bottero. Isso apenas alteraria as tecnologias usadas para decidir quem deveria fazê-los. E é difícil ver como até mesmo o entusiasmo social mais difundido por agasalhos e correntes de ouro poderia compensar as desvantagens produzidas por esses empregos.

A raça, por outro lado, tem sido uma tecnologia de mistificação mais bem-sucedida. Nos EUA, um dos grandes usos do racismo foi (e é) induzir pessoas brancas pobres a sentirem uma camaradagem crucial e inteiramente especiosa com pessoas brancas ricas; um dos grandes usos do antirracismo é fazer pessoas negras pobres sentirem uma camaradagem crucial e igualmente especiosa com pessoas negras ricas. Além disso, na forma da celebração da "identidade" e da "diversidade étnica", ele busca criar um vínculo entre pessoas negras pobres e pessoas brancas ricas. Então, a mulher afro-americana que limpa meu escritório deve se sentir não tão mal pelo fato de eu ganhar quase dez vezes mais dinheiro do que ela, porque ela pode ter certeza de que não sou racista ou sexista e que respeito sua cultura. E ela também deveria sentir orgulho porque o reitor da nossa faculdade, que ganha muito mais de dez vezes o que ela, é afro-americano, como ela. E já que a chanceler da nossa universidade, que ganha mais de 15 vezes o que ela, não é apenas afro-americana, mas também uma mulher (os frutos do antirracismo e do antissexismo!), ela pode se sentir duplamente bem sobre ela. Mas, e eu reconheço que esta é a mais tênue das evidências anedóticas, de alguma forma duvido que ela se sinta assim. Se a desvantagem da política antidiscriminação é que ela agora funciona para legitimar as crescentes disparidades não produzidas pelo racismo ou sexismo, a vantagem é o grau em que ela torna visível o fato de que o aumento dessas disparidades não tem nada a ver com racismo ou sexismo. Um analista social tão perspicaz quanto uma faxineira da Universidade de Illinois começaria por aí.

Walter Benn Michaels leciona na Universidade de Illinois em Chicago. Ele está trabalhando em um livro sobre autonomia estética e economia política, chamado A beleza de um problema social.

10 de agosto de 2009

É preciso um novo modelo agrícola para o país

É fundamental debater isto: de qual modelo agrícola precisamos para acabar com a pobreza, distribuir renda e garantir o desenvolvimento?

João Pedro Stédile

Folha de S.Paulo

OS PROBLEMAS do desenvolvimento do meio rural e da construção de uma sociedade menos desigual, que resolva os problemas da pobreza, da educação e do direito à terra, passam atualmente por duas iniciativas complementares.

De forma urgente, o governo precisa enfrentar os problemas mais agudos da pobreza no campo. O governo Lula está em dívida com a reforma agrária. Temos ao redor de 90 mil famílias acampadas à beira de estradas, passando por todo o tipo de necessidade por anos e anos.

Em 2005, o governo prometeu cumprir a lei agrária e atualizar os índices de produtividade para desapropriação, que são de 1975.

Até hoje, nada mudou. Em sete anos, apenas 40 mil casas em assentamentos foram construídas com crédito público. O pior é que, por causa da crise, cortaram pela metade os recursos do Orçamento para reforma agrária neste ano.

Em segundo lugar, o MST tem procurado debater com a sociedade e com o governo a necessidade de construirmos um novo modelo de produção na agricultura.

A partir dos anos 90, com a hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais, foi se implantando o modo de produzir do chamado agronegócio, totalmente dependente desses interesses.

O jeito de produzir do agronegócio está baseado em latifúndios voltados para a monocultura de cana, de café, de soja, de laranja, de algodão ou para a pecuária extensiva.

Os latifundiários, proprietários de áreas com mais de mil hectares, aliaram-se a empresas transnacionais, que fornecem os insumos -sementes transgênicas, fertilizantes químicos, venenos agrícolas e máquinas.

Depois disso, conglomerados estrangeiros passam a controlar o mercado com a garantia da compra das commodities, impondo os preços. A maior parte da produção se destina ao mercado externo e, por ter que repartir o lucro, fazendeiros procuram aumentar a escala, concentrando ainda mais terra e produção. Isso é perverso para os interesses da economia nacional e do povo brasileiro.

Esse modelo se sustenta no elevado uso de agrotóxicos, em vez de mão de obra e práticas agroecológicas. Não é por nada que o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de venenos agrícolas, que degradam o solo e contaminam as águas e os alimentos que vão para o estômago.

A classe média alta é sábia e busca consumir produtos orgânicos, mas o povo não tem alternativa. Além da intoxicação, causa desequilíbrio no ambiente, com a monocultura que destrói a biodiversidade.

O agronegócio é totalmente dependente do capital financeiro. O governo terá que disponibilizar R$ 97 bilhões em crédito para produzir R$ 120 bilhões, o valor do PIB do agronegócio, que não consegue sozinho comprar os insumos e produzir.

Ou seja, a poupança nacional é usada para viabilizar a produção e o lucro de latifundiários e empresas transnacionais. Esse modelo é inviável do ponto de vista econômico, pois nenhum país se desenvolveu exportando matéria-prima. Os Estados Unidos, usados como modelo, exportam apenas 12% de sua produção agrícola.

O país utiliza 200 milhões de hectares para criar 240 milhões de cabeças de boi de forma extensiva, que se destinam basicamente para a exportação, sem nenhum valor agregado.

Além do problema do efeito estufa, essas exportações rendem ao redor de US$ 5 bilhões por ano. Os 7.000 operários da Embraer, que produzem aviões e peças, exportam praticamente o mesmo valor por ano.

Infelizmente, o governo Lula fez uma composição com as forças do agronegócio, com a ilusão de que sustentariam o desenvolvimento do campo. No entanto, deveria dar prioridade à reforma agrária e à pequena agricultura, deixando o agronegócio para o mercado, que tanto defendem.

Os movimentos do campo, da Via Campesina, da Contag, das pastorais sociais, que compõem o Fórum Nacional pela Reforma Agrária, defendemos que o Estado e o governo priorizem uma nova política agrícola, com base na democratização da terra, cada vez mais concentrada e valorizada.

Em segundo lugar, a prioridade deve ser a produção de alimentos sadios para o mercado interno.

Em terceiro lugar, a interiorização de pequenas e médias agroindústrias sob controle de cooperativas de trabalhadores. Aliás, é nesse tipo de atividade que deveríamos aplicar os recursos públicos do BNDES.

Em quarto lugar, o Estado deve estimular a agroecologia, que respeita o meio ambiente e preserva os bens da natureza.

Em quinto lugar, é urgente um programa de universalização da educação, em todos os níveis, para povoados do meio rural.

É isto que a sociedade precisa debater com profundidade: de qual modelo agrícola precisamos no nosso país para acabar com a pobreza, distribuir renda e garantir o desenvolvimento?

Sobre o autor

JOÃO PEDRO STEDILE, 55, economista, é integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e da Via Campesina.

1 de agosto de 2009

Marx e montagem

O autor de Archaeologies of the Future desenterra fragmentos da "antiguidade ideológica" no recente filme de Alexander Kluge sobre O capital. Encontros com o equivalente não realizado de Eisenstein, à procura de uma transposição cinematográfica do fetiche da mercadoria

Fredric Jameson


58 • July/Aug 2009

Tradução / O lançamento de um novo Kluge é sempre uma boa notícia, desde que o espectador tenha noção do que o aguarda. Seu filme mais recente, Nachrichten aus der ideologischen Antike (Notícias da Antiguidade ideológica), com aproximadamente nove horas de duração, é dividido em três partes: I. Marx e Eisenstein na mesma casa; II. Todas as coisas são pessoas enfeitiçadas; e III. Paradoxos da sociedade da troca [1]. Segundo rumores, Kluge teria retomado o antigo projeto de Eisenstein (1927-28) de fazer uma adaptação cinematográfica de O capital, de Marx, mas na verdade apenas a primeira parte indica essa intenção. Os rumores foram espalhados pelas mesmas pessoas que acreditam que Eisenstein chegou a escrever um roteiro preliminar do filme sobre O capital. Na verdade ele apenas rabiscou cerca de vinte páginas de anotações em um período de seis meses [2]. Pelo menos algumas dessas pessoas sabem que ele estava muito entusiasmado com o Ulisses, de Joyce, mais ou menos na mesma época e “planejou” um filme sobre o livro, fato que relativiza suas fantasias sobre o projeto de O capital. Entretanto, se os planos de Eisenstein tinham a forma de anotações, até que alguns deles fossem transformados em filmes (ficcionais ou narrativos), é bom prevenir os espectadores que os filmes “reais” de Kluge se parecem mais com as anotações de Eisenstein.

Diversos intelectuais importantes acabaram – mesmo que postumamente – por endossar o marxismo: podemos pensar nos Espectros de Marx, de Derrida, ou no inacabado A grandeza de Marx, de Deleuze, assim como em inúmeras testemunhas contemporâneas da crise mundial (“somos todos socialistas agora” etc.). Seria o novo filme de Kluge uma retomada desse tipo? Ele ainda é marxista? Chegou a ser marxista? E o que significaria “ser marxista” hoje? O leitor pode até se indagar sobre a maneira como os alemães em geral se relacionam atualmente com seu grande clássico nacional, agora que há rumores de centenas de grupos de estudo sobre O capital surgindo aqui e ali sob os auspícios da ala estudantil do Linkspartei. Kluge afirma no texto que acompanha o DVD do filme: “A possibilidade de revolução europeia parece ter desaparecido; e com ela se foi a crença na ideia de um processo histórico que possa ser diretamente moldado pela consciência humana” [3]. No entanto, fica evidente que Kluge acredita numa pedagogia coletiva e na reapropriação de processos de aprendizado, no que se poderia chamar de uma reorientação da experiência através da reconstrução de “sentimentos” (um termo técnico chave para ele). O fato fica evidente não apenas em seus comentários interpretativos sobre seus diversos filmes e histórias, mas também em enormes volumes teóricos, como em seu Geschichte und Eigensinn (História e obstinação), escrito em colaboração com Oskar Negt.

Todos esses trabalhos refletem sobre a história. Poucos países tiveram uma história tão variada quanto a Alemanha. A obra de Balzac teria sido impossível sem a extraordinária variedade da experiência histórica dos franceses, da revolução ao império mundial, da ocupação estrangeira à reconstrução econômica, sem falar sobre as mais diversas formas de sofrimento, crimes de guerra e atrocidades. As histórias (ou anedotas, ou faits divers) de Kluge, que somam milhares de páginas, contam com uma massa de matéria histórica de proporções semelhantes.

Mas a história é algo que deve ser escavado: como no caso da protagonista Gabi Teichert, em Die Patriotin, de Kluge, que literalmente tira a pá da bolsa e começa a escavar freneticamente em busca de pistas sobre o passado em ossos e pedaços de vasos antigos. E não necessariamente em vão: em outro filme, o joelho do esqueleto de um soldado alemão relata algumas histórias de guerra “úteis”. Na verdade, o novo filme também tem seus momentos amalucados ou mesmo idiotas: dois atores lendo a prosa incompreensível de Marx em uníssono um para o outro; um professor da antiga Alemanha oriental explicando o que é “liquidez” para um aluno recalcitrante; e até um tipo de peça sátira na qual o (cansativo) comediante Helge Schneider atua em uma variedade de papéis inspirados por Marx, equipado com perucas, barbas falsas e todo tipo de parafernália circense. Pois, como nos lembra Kluge, “devemos deixar que Till Eulenspiegel passe por Marx e Eisenstein, com a intenção de criar uma confusão que permita que conhecimento e emoção sejam combinados de uma nova maneira” [4].

Enquanto isso, num nível menos jocoso, assistimos a uma série interminável de entrevistas – Enzensberger, Sloterdijk, Dietmar Dath, Negt e outras autoridades – nas quais as testemunhas respondem às provocações, perguntas e comentários de Kluge. Assistimos a um trecho curto do estranho projeto de Werner Schroeter, no qual Tristão e Isolda de Wagner é encenado como uma retomada da cena do conflito na ponte de Encouraçado Potemkin (“o renascimento de Tristão a partir do espírito de Potemkin”), além de passagens de óperas de Luigi Nono e Max Brand, para não falar dos clássicos. Vemos um curta-metragem de Tom Tykwer sobre a humanização de objetos, sequências sobre o assassinato de Rosa Luxemburgo e, num tom mais ameno, uma noite com Marx e Wilhelm Liebknecht. Tudo isso entrecortado por diversos trechos de filmes e fotografias, a maioria delas do período do cinema mudo, enquanto efeitos tipográficos dramáticos e coloridos com textos de Marx e Eisenstein deixam claro que os intertítulos do cinema mudo podiam ser eletrizantes. Trata-se da versão de Kluge da “montagem de atrações” de Eisenstein (ou talvez Kluge preferisse chamá-la de montagem de “sentimentos”). Espectadores desacostumados com esse tipo de prática podem muito bem ver nisso tudo uma inacreditável miscelânea. Mas também podem acabar por aprender a navegar nesse prodigioso local de escavação: não se trata ainda de um verdadeiro museu, organizado profissionalmente, mas de uma incrível confusão, com todos os tipos de pessoas, amadores e especialistas, perambulando em diversos estados e atividades, alguns enxugando a testa ou comendo um sanduíche, outros deitados no chão, enquanto outros ainda organizam diversos itens em caixas sobre mesas protegidas por uma tenda, ou cochilando, talvez conversando, todos passando por uma trilha estreita, tomando cuidado para não pisar nas provas do crime. É nosso primeiro contato com a Antiguidade ideológica.

A versão de Eisenstein

Entre os fragmentos mais reconhecíveis está, é claro, o “novo trabalho baseado num libreto de Karl Marx”, o “tratado cinematográfico” que supostamente seria o próximo projeto de Eisenstein depois de Outubro, o filme sobre O capital. Caracteristicamente, as anotações de Eisenstein são reflexões sobre suas próprias práticas, passadas e futuras, assim como releituras de seu próprio trabalho como uma progressão de formas, num movimento semelhante ao progresso no campo das experiências científicas. Esse narcisismo é a origem de grande parte do entusiasmo pedagógico e didático de seus escritos, mas não é preciso que aceitemos as avaliações que ele fez de sua própria carreira, especialmente pelo fato de que elas variaram enormemente durante sua vida.

Neste caso, por exemplo, ela lerá seu trabalho nos termos da abstração, como uma conquista gradual da abstração desde Potemkin, passando por Outubro até chegar ao projeto atual (talvez fosse preferível que ele tivesse caracterizado esse caminho como a ampliação de sua conquista do concreto que inclui a abstração, mas tudo bem). Como era de esperar, partimos dos leões que se levantam em Potemkin para aquele “tratado sobre as deidades” que é a sequência dos ícones/ ídolos em Outubro [5]. Tais momentos são vistos como interrupções verticais, que se aproximam da forma do ensaio, da narrativa horizontal, e é precisamente por esse motivo que a discussão sobre Eisenstein e Joyce é irrelevante neste caso.

Diversos comentadores – e não apenas o próprio Kluge – enfatizaram a fórmula “um dia na vida de um homem” como prova de que Eisenstein imaginou um enredo da ordem do “um dia na vida de Bloom”, de Joyce [6]. Mais adiante, eles apontam a adição de um segundo “enredo”, o da reprodução social e “das ‘virtudes domésticas’ da mulher de um trabalhador alemão”, à qual se soma um lembrete: “durante todo o filme a esposa cozinha uma sopa para o marido que retorna”, de modo a transformar o “homem” não específico da sequência anterior num trabalhador. Essas intercalações – às quais devemos adicionar um dia na vida de um capitalista ou comerciante – estão sendo ruminadas precisamente no mesmo momento histórico em que, como lembra Annette Michelson, Dziga Vertov está filmando O homem com a câmara na mão [7].

É verdade: “Joyce pode ser útil para meus propósitos”, aponta Eisenstein. Mas o que se segue é completamente diferente da fórmula “um dia na vida de”, pois Eisenstein adiciona: “de um prato de sopa aos navios britânicos afundados pela Inglaterra” [8]. O que aconteceu é que esquecemos da presença, em Ulisses, de capítulos estilisticamente bem diferentes do formato da descrição da rotina de um dia. Mas Eisenstein não esqueceu: “No Ulisses de Joyce há um capítulo notável desse tipo, escrito à maneira de um catecismo escolástico. Perguntas são feitas e respostas são dadas” [9]. Mas a que ele está se referindo quando diz “desse tipo”?

Fica claro que Kluge sabe a resposta, pois em sua discussão cinematográfica das anotações a panela de sopa se transformou numa chaleira que ferve a água e apita: a imagem reaparece em diversos momentos na exposição (as anotações de Eisenstein aparecem projetadas em legendas), de modo que esse objeto simples é “abstraído” num símbolo típico de energia. Ela ferve impacientemente, veementemente exige ser utilizada, controlada, e pode ser o sinal que inicia o período de trabalho, o final do período de trabalho, o chamado para a greve, ou o motor de toda a fábrica, uma máquina da produção futura... Ao mesmo tempo, essa é a própria essência da linguagem do filme mudo, sua repetição e insistência em transformar seus objetos em símbolos maiores, num procedimento intimamente relacionado ao “close up”. Mas é exatamente isso que Joyce faz no capítulo do catecismo: a primeira grande afirmação de Ulisses, o primeiro estrondoso “sim”, aparece aqui e não nas últimas palavras de Molly: trata-se da força primitiva da água jorrando do reservatório em Dublin até encontrar seu caminho até a torneira de Bloom [10]. (Em Eisenstein, o equivalente seria a máquina de separar leite de A linha geral.)

A esposa do trabalhador alemão

É nesse ponto que descobrimos o que Eisenstein realmente tem em mente: algo como uma versão marxista da livre-associação de Freud – a cadeia de ligações escondidas que leva da superfície da vida e da experiência cotidianas à própria origem da produção. Como em Freud, este é um mergulho vertical no abismo ontológico, o que ele chamava de “umbigo do sonho”, que interrompe a banalidade da narrativa horizontal para montar um conjunto de associações investidas de afeto.

Vale a pena citar a anotação completa de Eisenstein (1987, p.129) nesse ponto:

Durante todo o filme a esposa prepara a sopa para o marido que retorna. NB Poderia haver dois temas associados: a esposa que cozinha e o marido que retorna. Completamente idiota (útil nos primeiros estágios de uma hipótese de trabalho); na terceira parte (por exemplo), a associação parte da pimenta com que ela tempera a comida. Pimenta. As ilhas Cayenne. A ilha do Diabo. Dreyfus. O chauvinismo francês. O Figaro nas mãos de Krupp. A guerra. Os navios afundados no porto. (Não em quantidades tão grandes, é claro!!). NB Bom em sua não banalidade – transição: pimenta-Dreyfus-Figaro. Seria bom cobrir os navios ingleses afundados (de acordo com Kushner, 103 DIAS NO EXTERIOR) com a tampa da frigideira. Poderia até não ser pimenta – mas querosene para o forno e a transição para o petróleo.[11]

Eisenstein se propõe a fazer aqui aquilo que Brecht tentou fazer na sequência do debate sobre o café no metrô, em Kuhle Wampe: traçar o caminho que leva dos sintomas visíveis às suas causas ausentes (ou não totalizáveis). Mas a tentativa do dramaturgo é frustrada pela nossa inevitável atenção aos personagens que discutem, enquanto Eisenstein pretende, ainda que cruamente (“completamente idiota”, mas é apenas um primeiro rascunho) desenhar e trazer à tona toda uma rede complexa na forma de uma montagem de imagens. (As referências mais apropriadas sempre foram a omissão de comentários nas constelações das Passagens de Benjamin, ou mesmo os ideogramas de Pound – ambos também projetos de um tipo de representação histórica sincrônica.) A teorização de Eisenstein do que ele chama de “filme discursivo” se centra na “de-anedotalização” como processo central e encontra sua analogia na “teoria dos sobretons” [12], que ele viria a desenvolver um ano mais tarde em seu ensaio “A quarta dimensão do filme”, no qual uma formulação nos termos de “estímulos fisiológicos” procurará substituir a doutrina amplamente aceita do formalismo russo da renovação da percepção, da ostranenie estética, do “tornar estranho”. Neste caso, haveria não apenas um conflito entre a temporalidade do filme (montagem) e a simultaneidade das relações e associações causais, mas também uma tensão entre o afetivo e o cognitivo. Assim, ele escreve sobre A linha geral:

Esta montagem não é construída sobre dominantes específicos, mas toma como sua linha mestra o estímulo total através de todos os estímulos. Esta é a rede original de montagem dentro da tomada, surgindo da colisão e combinação de estímulos individuais inerentes a ela [13].

A teoria dos “sobretons” tende não apenas a enfatizar a natureza corpórea do sentimento puro – “a qualidade fisiológica de Debussy e Scriabin” – mas também, através de termos técnicos musicais como “dominante” e “contraponto”, assim como sobretons e subtons “visuais”, tende a precisar toda a complexidade dessa “quarta dimensão”, que inspirou uma enorme atividade contemporânea na chamada teoria do afeto. É provável que o velho mito da “persistência da visão” – a imagem anterior subsistindo brevemente na retina enquanto a nova percepção se sobrepõe a ela e a substitui, uma concepção que tem seu análogo musical – sugira uma síntese possível entre a sucessão temporal do cinema e os conteúdos das imagens individuais. Mas não resolve a tensão que os modelos de afeto mais altamente desenvolvidos estabelecem com o conteúdo cognitivo desses complexos; ou, em outras palavras, a ênfase marxista na produção, distribuição e consumo por trás da superfície fenomenológica da vida cotidiana e da experiência – a tentativa de investigar os bastidores da cena, como diz Marx em O capital. O antigo problema da arte didática não é resolvido aqui, a não ser que pensemos que há uma convergência entre o conhecimento sobre o capitalismo e a raiva (Potemkin) ou entre a construção do socialismo e uma alegria sublime, como na visão transcendental do separador de leite em A linha geral.

Kluge não tenta reproduzir a sequência da pimenta, mas elabora outro motivo de Eisenstein:

as meias das mulheres cheias de buracos e uma meia de seda num anúncio de jornal. Tudo começa com um movimento brusco, que se multiplica em 50 pares de pernas – Revista, Seda, Arte. A luta pelo centímetro da meia de seda. Os estetas são a favor dela. Os bispos e a moralidade são contra. [14]

Mas a tentativa decorativa de Kluge de mostrar esse objeto social multidimensional – ele poderia ter incluído o “ornamento de massa” de Kracauer – mal dá conta das complexidades alegóricas que Eisenstein vislumbrou:

Nesse nível, pode-se imaginar a seguinte solução:

Ein Paar seidene Strumpfe* – arte.
Ein Paar seidene Strumpfe – moralidade.
Ein Paar seidene Strumpfe – comércio e competição.
Ein Paar seidene Strumpfe – índias forçadas a incubar o casulo de seda carregando-os debaixo do braço! [15]

Este último detalhe nos leva de volta ao nível anedótico, que havia sido supostamente neutralizado por essa nova linguagem cinematográfica “discursiva”. Entretanto, é o elemento que radicaliza essa montagem vertical, do mesmo modo que a relação entre a Ilha do Diabo e Dreyfus faz com a sequência da pimenta. Na verdade, as anotações estão repletas de detalhes anedóticos, de faits divers que nos levam ao coração do capital. Gosto desta: “Em algum lugar do oeste. Uma fábrica onde é possível roubar peças e ferramentas. Os trabalhadores não são revistados. Em vez disso, há um ímã no portão de saída” [16]. Chaplin teria adorado o espetáculo dos parafusos, martelos e alicates voando dos bolsos dos trabalhadores.

Antiguidades

Afinidades eletivas: o trabalho de Kluge é bastante anedótico nesse sentido, a dupla visada narrativa, o punctum inesperado no centro daquilo que parecia à primeira vista uma ocorrência banal, um gosto pela incongruência que é abstraída na lida com as grandes ideias. A fórmula extraordinária de Deleuze – “um Marx imberbe, um Hegel barbudo” – não seria estranha a Kluge, que incansavelmente sugere novas reformulações da tradição e dos estereótipos: a futura reconstrução da experiência, unindo afetos e conhecimento de novas maneiras.

Trata-se de um futuro que exige a constituição de uma Antiguidade que lhe seja apropriada. Entretanto, essa “Antiguidade ideológica” não seria apenas outro modo de dizer que Marx, e com ele o marxismo, está superado? As sequências cômicas do filme de Kluge, o jovem casal em diversos momentos da história atormentando um ao outro com a récita repetitiva das abstrações de Marx, poderia nos levar a essa conclusão. Nem mesmo Eisenstein estaria livre de estar fora de moda, com sua bagagem de melodrama antiquado, os paradigmas do filme mudo antiquado, os métodos de montagem antiquados. Lênin e intertítulos! Aparentemente uma perspectiva desinteressante para a pós-modernidade digital...

No entanto, podemos lembrar dos próprios sentimentos de Marx pela Antiguidade: a teoria do valor de Prometeu e Aristóteles, as reflexões de Epicuro e Hegel sobre Homero. Também há a questão com a qual a grande introdução de 1857 inicia os Grundrisse: “a dificuldade não está em entender que a arte grega e a poesia épica estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que elas ainda nos dão prazer estético e são em certos aspectos consideradas como um padrão e um modelo inatingíveis” [17]. Marx não era nostálgico e compreendeu que a pólis era uma formação social limitada e por isso contraditória à qual não se podia retornar e que também qualquer futuro socialista seria bem mais complexo que o próprio capitalismo, como observou Raymond Williams.

O conceito de Antiguidade pode ter a função de nos colocar numa nova relação com a tradição marxista e com o próprio Marx – assim como com Eisenstein. Marx não é nem contemporâneo nem antiquado: ele é um clássico, e toda a tradição marxista e comunista, mais ou menos igual em duração à era de ouro de Atenas, é justamente a era de ouro da esquerda europeia, para a qual se retorna constantemente, com resultados espantosamente complexos, produtivos e contraditórios. [18] E para quem levantar a objeção de que seria abominável glorificar uma era que criou as execuções stalinistas e a morte por fome de milhões de camponeses, um lembrete da truculência da história grega pode ser útil – a eterna vergonha de Megara, para não falar das abomináveis práticas ligadas à sociedade escravocrata. A Grécia incluiu tanto Esparta quanto Atenas e a União Soviética também marcou a queda do nazismo e o primeiro sputnik, assim como a República Popular da China representou o despertar de inúmeros milhões de novos sujeitos históricos. A categoria da Antiguidade clássica pode ser uma perspectiva produtiva a partir da qual uma esquerda global pode reinventar um passado energizante para si mesma.

Notas

1 Alexander Kluge, Nachrichten aus der ideologischen Antike (News from Ideological Antiquity), 3 dvds, Frankfurt 2008.
2 These are published as Eisenstein’s ‘Notes for a Film of Capital’, translated by Maciej Sliwowski, Jay Leyda and Annette Michelson, in October: The First Decade, Cambridge, ma 1987, pp. 115–38; they first appeared in October 2, 1976; hereafter nfc.
3 Kluge, Nachrichten, p. 4.
4 Kluge, Nachrichten, p. 16.
5 nfc, p. 116.
6 nfc, p. 127.
7 nfc, p. 127, fn 19.
8 NFC, p. 127. Esta referência enigmática é retomada na citação maior da p.129 mencionada adiante.
9 nfc, p. 119.
10 See 'Ulysses in History', in The Modernist Papers, London and New York 2007.
11 NFC, p. 129. Sobre a parte da sopa, Eisenstein (1987, p.128) anotou: "as 'virtudes domésticas' da esposa do trabalhador alemão representam o maior mal, o mais forte obstáculo a um levante revolucionário. A esposa de um trabalhador alemão sempre terá algo quente para o marido, nunca o deixará ficar completamente com fome. Também é preciso observar a raiz de seu papel negativo que desacelera o ritmo do desenvolvimento social. No enredo, isso poderia tomar a forma de uma ‘sopa rala’ e seu significado em 'escala mundial'": NFC, p. 128.
12 nfc, pp. 116–7.
13 Eisenstein, ‘The Filmic Fourth Dimension’, in Film Form, New York 1949, p. 67.
14 nfc, p. 129
15 nfc, p. 137.
16 nfc, p. 121.
17 Marx and Engels, Collected Works, vol. 28, New York 1986, p. 47.
18 Algo assim é o que se pode dizer que Estética da Resistência de Peter Weiss está tentando.

Sobre o autor

Ensaísta e crítico literário norte-americano, autor de vários livros traduzidos para o português, entre os quais Pós-modernismo, Modernidade singular, As marcas do visível etc. Membro do conselho de colaboradores estrangeiros de Crítica Marxista desde sua criação.

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